Entreconversas: Duas pessoas com a mesma obsessão musical

Esta conversa nasceu de várias trocas de mensagens que tive com a Ana sobre música brasileira. Na altura, ela acabara de lançar o seu livro Tropicália, da coleção Genre: A 33 1/3 Series, e eu, Matilde, publicava uma entrevista com o artista brasileiro emergente MONCHMONCH. Percebemos que habitávamos o mesmo universo musical, embora em décadas diferentes, o que nos levou a aprofundar ideias e referências.

Apesar de me ter perdido no vasto mundo da música brasileira atual, havia muito que me escapava. Foi graças à investigação incessante da Ana sobre o tropicalismo e o pós-tropicalismo que consegui recuar e compreender melhor essa história. Começámos por Raul Seixas e o seu viciante primeiro disco Krig-Ha, Bandolo (1973), passámos pela série biográfica Raul Seixas: Eu Sou (2025) e daí seguimos para outras camadas da música brasileira.

Neste Entreconversas, eu e a Ana decidimos tornar pública uma das nossas conversas para refletir sobre o movimento da Tropicália, a sua influência na música contemporânea, o rock brasileiro, novos artistas e, claro, Raul Seixas.

[Matilde Inês] Acabei a série Raul Seixas: Eu Sou, mas não entendi bem a crítica negativa que lhe estão a fazer. Para mim, é um ótimo trabalho de introdução ao mundo do Raul Seixas.

[Ana Leorne] Compreendo um bocado o hate porque os biopics são muito difíceis de serem bem conseguidos. Ou tu fazes de um ponto de vista único ou então fica sempre muito camp – e não no bom sentido.

[Matilde] Referes-te a quando a narrativa se torna demasiado cinematográfica e acaba por não corresponder ao que ele era? Também senti que algumas partes retratavam o misticismo de forma pouco realista.

[Ana] Ele tinha mais relações com a O.T.O [Ordo Templi Orientis] do que era retratado na série. Parte da letra da “Sociedade Alternativa” é retirada de Aleister Crowley [antigo líder da O.T.O]. Acho que é também importante perceberes quem é que fez a série. Isto é uma série da Globoplay – um canal conhecido essencialmente pelas novelas – que foi feita para celebrar os 80 anos do Raul Seixas. A série nunca podia ser uma coisa super polémica. Achei engraçado perceber que a personagem do Paulo Coelho, que eu achava irritante, está retratada exatamente como ele era – até a forma de falar!

[Matilde] Sim, concordo! Ele tinha uma postura tão lenta [risos]. A certa altura, comecei a duvidar se o ator era mau ou efetivamente o Paulo Coelho era mesmo assim. Senti que não era muito fluido.

[Ana]  Não, ele é mesmo assim! Lembras-te de te ter falado do documentário sobre o Raul Seixas que se chama O início, o fim e o meio (2012)?

[Matilde] Sim.

[Ana] Foi feito em 2012 e foi uma co-produção da MTV Brasil. Foram até à Suíça entrevistá-lo – provavelmente o motivo de ter morado lá tanto tempo foi ser um paraíso fiscal. Estavam a falar do Raul e, de repente, entra uma mosca. O Paulo diz: “Mas na Suíça não há moscas, como é possível?” E logo a seguir: “Ah, deve ser o Raul!”

[Matilde] Isso é tão amoroso!

[Ana] Ele é fofo! Depois a relação deles descambou, porque quando foram presos, o Paulo suspeitou que tinha sido Raul a denunciá-lo. O que não é verdade – mais tarde soube-se que não tinha sido ele.

[Matilde] Mas tenho a sensação que o exílio de Raul não é bem retratado. Porque pareceu que esteve lá pouco tempo. Ou seja, parece que ele ficou-se pelo interrogatório – 

[aparece uma mosca na câmara da Matilde]

[Ana] Ah, o Raul também está aqui connosco! [Risos]

[Matilde] [Risos] Quer juntar-se à conversa!

[Ana] [Risos] Mas sim, ele foi preso. Aparece uma parte em que é preso. O Paulo Coelho, além disso, foi mais torturado porque havia outro Paulo Coelho ligado ao Partido Comunista e houve confusão. Mas ambos foram enviados para o exílio nos EUA. E há até uma história do Raul ter conhecido o John Lennon.

[Matilde] Tens razão. Ainda assim, achei estranho que depois de se separarem tenham voltado a encontrar-se num concerto, para cantar a “Sociedade Alternativa. A forma como foi mostrado [na série] pareceu pouco clara. Não se percebe se voltaram a ser amigos ou não.

[Ana] Eles afastaram-se por vários motivos. E depois o Paulo Coelho começou a compor com a Rita Lee.

[Matilde] Que, por acaso, aparece na série, mas sem grande semelhança.

[Ana] O Paulo Coelho compôs para o Fruto Proibido, da Rita Lee.

[Matilde] Aliás, na série vê-se que ele estava a compor esse tema no estúdio.

[Ana] Gostei muito de alguns momentos mais poéticos: a cena dele a cantar a “S.O.S.” — que é basicamente uma versão da “Mr. Spaceman”, dos The Byrds — mostra bem a influência. Também gostei das cenas mais oníricas, quase de realismo fantástico. A sequência com o irmão, em miúdos, a brincar com lanternas. Achei incrível a brincadeira. 

[Matilde] Super! E quando já em adultos fizeram exatamente o mesmo. Achei tão querido.

[Ana] Imagina os pais do género: “vocês não podem estar a fazer barulho”. E eles: “Ok, vamos fazer batalhas de espadas com lanternas, cada um dentro da sua cama”.

[Matilde] Achei muito interessante a relação com os pais. Como é que os pais eram tão progressistas na educação naquele tempo? Era raro existir. A cena em que o Raul e o irmão vestiram todas as roupas do armário para se protegerem das chicotadas. E afinal o pai também não lhes queria fazer mal, então encenou tudo para que a mãe achasse que estavam a ser castigados. Acho que esta série tem pequenos pormenores muito queridos e acredito que sejam efetivamente reais. Portanto, faz dela uma boa série pelo cuidado que foi colocado.

[Ana] Sabes que vejo imensas novelas brasileiras e tropecei nesta série sem esperar. Descobri-a quando procurava Homem com H [biopic do Ney Matogrosso, 2025]. Aqui em Paris há uma comunidade grande de brasileiros e ouvi falar do filme através de amigos. Foi exibido num festival, integrado na Saison Brasil–França, que também apresentou documentários indígenas e o filme da Fernanda Torres Ainda Estou Aqui. A sessão de encerramento era o Homem com H. Como não consegui ir, fui procurar online e encontrei a série do Raul. Foi até melhor assim, porque não tinha expectativas. E não conhecia muito da vida dele para além do primeiro álbum Krig-Ha, Bandolo (1973), que já tinha estudado para o meu livro. Como tu dizes, acabou por ser uma ótima introdução.

[Matilde] Exato. Aliás, o primeiro disco é só a ponta do iceberg para o misticismo do Raul, porque só foi crescendo nos outros álbuns.

[Ana] O Há 10 Mil Anos Atrás (1976), se não me engano, é o último álbum com o Paulo Coelho.

[Matilde] Exato. Apesar de já ter ficado obcecada pelo primeiro disco, quando me recomendaste, com esta série fui mesmo puxada para dentro do buraco negro do Raul Seixas.

[Ana] Sim! Também andei a ouvir imenso!

[Matilde] O primeiro disco só se consegue ouvir do início ao fim porque é mesmo muito viciante.

[Ana] É muito fixe. O Raul era um artista que não tinha explorado muito. E isto vai de encontro à nossa conversa porque ele é o pai do rock brasileiro. E a Rita Lee é a mãe. E eu percebo porquê. Porque o rock brasileiro como género surge através do Raul. Mas mesmo assim, sei lá, conhecia uma coisa ou outra.

[Matilde] Mas é curioso, porque fala-se imenso de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, mas sinto que não se fala muito do Raul, apesar de toda a importância que ele tem para a música brasileira.

[Ana] Ele é importante para o Brasil, mas não é tão importante para nós, portugueses. Hoje tens algum controlo sobre o que exportas, mas antes não. Algumas coisas batiam, outras não. A música brasileira exportada sempre foi, sobretudo, bossa nova e MPB [Música Popular Brasileira]. Tropicália, por exemplo, nem toda a gente fora do Brasil conhece. Os Mutantes são exceção, porque chamaram a atenção dos EUA e músicos como o David Byrne. Mas o Raul, não. O rock dele faz sentido sobretudo dentro da identidade brasileira. Para o estrangeiro havia sempre a pergunta: o que é que isto nos acrescenta? Por isso é que o Tom Jobim foi exportado e o DJ Ramon Sucesso nunca seria.

[Matilde] E mesmo hoje, quando surge um artista brasileiro novo, a comparação imediata é com a Tropicália. Lembro-me de quando estava a fazer pesquisa sobre Boogarins, que diziam em entrevistas que não gostavam dessa comparação. Quando li o teu capítulo “End of the century and everything after” no Tropicália, percebi que sim, a Tropicália é fonte de inspiração, mas muitos artistas querem marcar distância.

[Ana] É como dizer a uma banda britânica de pop-rock que soa a Beatles. Eles respondem: sim e não, porque tudo vem dos Beatles. Se compararmos a duração e a produção artística dos Beatles com a da Tropicália, é mais fácil perceber a diferença em termos temporais. Eu própria tive essa conversa com o editor da Mojo Magazine, quando ele incluiu o meu livro no especial sobre a Tropicália. Na altura, ele estava a preparar um top de discos e queria apenas um álbum por artista. Mas incluiu alguns que, para mim, já não eram Tropicália. Eu disse-lhe: “Se fores restrito, se te cingires só aos discos do movimento, ficas com uns 13, talvez menos.” Ele respondeu que precisava de mais do que 13 discos, para selecionar um por artista. E é isso: uma coisa são álbuns que pertencem ao movimento, outra são discos que têm elementos tropicalistas. Os primeiros são poucos, é aquele outpouring inicial que descrevo no livro. Depois há quem recorra a elementos, como o Raul Seixas, já no pós-Tropicália, mas ainda nesse espírito de fusão entre o brasileiro e o internacional. Tropicalismo é identidade. E mesmo bandas recentes, como Boogarins ou Ana Frango Elétrico, herdam isso. No meu livro explico que não são Tropicália, mas reconhecem a influência. Os Boogarins, por exemplo, têm no primeiro disco As Plantas Que Curam (2013) um som bem diferente do que fizeram depois.

[Matilde] É por ser o primeiro disco. Tens sempre aquela fase de experimentar onde tentas encontrar a tua identidade. É o álbum mais experimental deles, na minha opinião.

[Ana] E foi gravado em casa. E ainda não existia o Ynaiã Benthroldo na bateria.

[Matilde] Que faz uma mudança na orientação da banda.

[Ana] Mas tem mais a ver com o contexto. Na altura, lembras-te que era tudo neo-psicadélico?

[Matilde] Sim, sim. Muito Tame Impala, Foxygen e Temples.

[Ana] Sim, exato. Eu fui a Londres em 2013 e era tudo psicadélico: a estética, os concertos, até em Portugal. Lembro-me das festas Kaleidoscope, no Sabotage, organizadas pelo DJ A Boy Named Sue. Eram noites inteiras só de rock psicadélico. Eu cheguei a passar som numa delas. Não durou muito tempo, mas eram umas festas que eram psych também.

[Matilde] É, mas nós sabemos que já não é bem a cena do Tropicália. Isso acontece em todo o lado. Por exemplo, em Portugal também tens umas ondas de género musical.

[Ana] Claro. O que eu queria dizer é que, como a Tropicália foi o grande movimento psicadélico do Brasil, sempre que surge uma nova vaga psych associam logo os brasileiros a esse legado, mesmo que não seja exato. Há também muito rock progressivo e underground brasileiro da época que não é Tropicália. Mas no mainstream, o equivalente brasileiro ao Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) é a Tropicália.

[Matilde] Tens razão. Mas quando falamos de Boogarins ou Ana Frango Elétrico ainda se percebe a ponte. Já Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo é outra coisa. É rock, mas não sei bem que rock.

[Ana] É rock paulista. Quando escrevi sobre Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo para a Spin, incluí-os em “Artists to Watch” e disse exatamente isso: vêm da herança do rock paulista – Os Mutantes, Legião Urbana, Cansei de Ser Sexy. [Estes últimos] são o “Brazilian take” do electroclash. Tal como Lucy and the Popsonics, com quem cheguei a tocar em Portugal: electroclash com um toque tropicalista.

[Matilde] Enquadraria a Sophia Chablau no novo rock que está a florescer em São Paulo. O mesmo acontece com MONCHMONCH. Misturam referências americanas com rock paulista, criando algo próprio.

[Ana] Diria que é mais rock do que MPB. Embora a definição de MPB também seja um bocado questionável. MPB é a música popular brasileira. Supostamente o rock também é MPB. Todo o rock é MPB, nem todo MPB é rock. Mas repara: hoje em dia, tudo o que pertence ao universo do pop-rock, por causa da globalização, as referências já se tornaram tão misturadas. Lá está, para mim, aquilo que define a Tropicália, além da mistura de sons, é uma vontade identitária. É como digo no meu livro. Havia a vontade de criar uma identidade cultural que se assemelhasse mais àquilo que os brasileiros querem transmitir do que à ideia romantizada do que é brasileiro. Daí a questão de justapor, por exemplo, à bossa nova.

[Matilde] Sim, ficou na posse dos americanos.

[Ana] Isso. É apropriação cultural. A revolução da Tropicália é eles dizerem-nos: somos muito mais que isso e nós somos uma mistura de tudo isto. Se tu estiveres a fazer música com essa atitude de consciência de identidade cultural, mesmo que não estejas a fazer de propósito, será que consegues desassociar-te? Lá está, a cena do Caetano Veloso dizer que o funk carioca é a Nova Tropicália. No fundo, é. Aliás, para mim Tropicália está no que o DJ Ramon Sucesso está a fazer!

[Matilde] [Risos] Uau. Bem, de certa forma ele criou um beat e um género novo de funk chamado beat bolha.

[Ana] Ele pega em ferramentas dadas pela globalização e pelo imperialismo e faz a identidade brasileira através daquilo, só que mega-remixado ao ponto de what the actual fuck?

[Matilde] Eu li um artigo que dizia que ele ia buscar as samples dele a vídeos todos distorcidos do TikTok.

[Ana] Ou seja, o que quero dizer é que, se estivermos a falar da sonoridade, não é Tropicália, claro, mas a nível de ethos, identidade, é Tropicália. Tu vês no set dele do Boiler Room como é que ele lida com isto. Enquanto estão todos aqueles nómadas digitais da tosta mista desconstruída à volta dele a dançar, o gajo está só a esporrar-se na cara deles.

[Matilde] [Risos] Para não falar que ele vem de um contexto de pobreza. Toda a sua história é só inédita. Ele ficou famoso graças aos vídeos distorcidos que fazia no Instagram na sua casa com o seu irmão.

[Ana] Isso só ajuda a comprovar que ele está a mostrar, na cara dos gringos, uma realidade que eles ou romantizam ou ignoram – exatamente como fez a Tropicália. Ao abordar a questão da ditadura, a própria música “Tropicália”, do Caetano Veloso, em que ele fala da criança triste, feia e morta, retratava uma realidade brasileira que o estrangeiro não queria conhecer. Preferiam exportar a imagem da praia de Copacabana, da água de coco, da bossa nova. A banda sonora, para eles, será sempre Tom Jobim, e nunca DJ Ramon Sucesso. Mais do que isso, a Tropicália representa a subversão de quem não aceita encaixar-se nos moldes que os outros querem impor, assim como acontece com o DJ Ramon Sucesso. E não estou a falar de género.

[Matilde] Mas estou curiosa para onde é que a fama pode levar DJ Ramon Sucesso.

[Ana] Acho que ele não está muito preocupado com isso. Mas eu também não sou especialista em funk.

[Matilde] Sim, nem eu.

[Ana] Não conheço nomes, nem nada. Conheço um ou outro que ouvi e gostei.

[Matilde] Mas é impressionante a mutação e a multiplicação de sub géneros que o funk está a desenvolver.

[Ana] Já faz alguns anos. A exportação foi feita pela Anitta. No entanto, tens imensos artistas, como por exemplo a Beyoncé, a irem buscar inspirações ao funk. No fundo, é apropriação cultural também. Ao mesmo tempo, o funk carioca já vai também buscar elementos internacionais. Trata-se da tal antropofagia que faziam no tropicalismo. Queria fazer-te também uma pergunta. Tu que tens entrevistado muitos artistas brasileiros, antes de mergulhares nesse universo, qual era o teu contacto com a música brasileira, especificamente com o rock? Não falo de ver Ivete Sangalo no Rock in Rio.

[Matilde] Só em casa, por influência do meu pai, que sempre foi fã da Rita Lee, do Caetano Veloso e do Gilberto Gil. Mas era um contacto muito superficial, sempre com os nomes mais conhecidos.

[Ana] Pois, tu és de 2002, cresceste já sem aquela “monocultura”. Eu, por exemplo, nos meus 10, 11 anos, estava sempre exposta a música brasileira, tanto pela televisão, como pelos meus pais. O meu pai chegou a viver no Brasil, no final dos anos 70. E ainda houve fenómenos como os Mamonas Assassinas, que tu já não apanhaste.

[Matilde] Conheço por amigos mais velhos que gostavam imenso, mas nunca ouvi. No meu caso, cresci em Torres Vedras e lá o Carnaval é muito forte.

[Ana] Isso faz sentido. Então não tinhas grande relação com o rock brasileiro antes de Sophia Chablau?

[Matilde] Não mesmo. Antes disso, talvez Boogarins, mas mais pela via do indie. A primeira interação com o rock brasileiro, feita só por mim, foi quando andava à procura de inspirações para a minha banda e encontrei a música “Fora do meu quarto” da Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo. Só no momento em que entrevistei Sophia Chablau e fiz a minha viagem até São Paulo é que se abriu um portal para conhecer com grande facilidade novos artistas brasileiros emergentes. Hoje em dia também é mais fácil: os artistas vêm com frequência a Portugal, fazem colaborações, têm contratos com editoras daqui. E isto é algo que te gostaria de perguntar – porque és alguém que já esteve muito próximo deste ambiente artístico – se achas que a ponte entre Portugal e Brasil está mais reforçada?

[Ana] Quando tu estás interessada em alguma coisa e começas a prestar atenção, aparece tudo relacionado com o teu interesse. É as tais synchronicities que teoricamente não existem. É o caso do Raul Seixas. A Internet trouxe muita coisa boa e veio facilitar-nos a redescoberta de artistas como ele. Dou-te outro exemplo com Lucy and the Popsonics. Eu e o Carlitos abrimos para eles [com The Clits], porque o Carlitos descobriu-os na altura no MySpace. Assim como muita gente nos descobriu a nós. Na altura, ele falou com eles os dois para virem a Portugal, e marcou concertos a contar que nós abríssemos para eles. Eles vieram do Brasil sem apoio de nenhuma editora, pagaram a viagem do bolso, ficaram em casas de amigos nossos, venderam merchandising para não perder dinheiro. Hoje o intercâmbio é muito mais ágil, embora também haja mais “poluição”, mais distração e concorrência. Eles queriam que nós fôssemos ao Brasil porque iam fazer a mesma coisa connosco. Na altura nós estivemos em conversações com o Fabrício Nobre [diretor do festival] para tocar no Bananada, que é um festival muito grande no Brasil. Mas depois acabamos por não fazer porque ficava muito caro. Mas fez-se o intercâmbio. Os concertos que fizemos em Portugal estavam cheios. Fazia-se, percebes? Não era uma coisa impossível. Só que agora as coisas fazem-se mais rápido.

[Matilde] Há também um factor que ajuda bastante. Como é que, apesar do Brasil ser um país tão grande, diferentes bandas de diferentes estados conseguem ter ligações fortíssimas? Por exemplo, vejo pela amizade de Sophia Chablau, de São Paulo, com Tangolo Mangos, de Salvador da Bahia. O MONCHMONCH é super próximo dos Tangolo Mangos e outras bandas emergentes de São Paulo, como os Nigeria Futebol Clube.

[Ana] Porque o mundo é um bidé. E o mundo da música ainda mais o é. Quando começas a perceber que aquela pessoa conhece aquela outra pessoa… Esquece. Tu achas que o mundo é grande e não é. Estou sempre a ver as mesmas pessoas nos concertos, e estamos a falar de Paris, que tem 10 milhões de habitantes.

[Matilde] Sim, mas também estamos a falar de nichos.

[Ana] Mas não são assim tão nicho. Se falarmos de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, não é super mainstream, mas eles acabam por ter ligações. Mas tens que ser curioso e pesquisar. Hoje em dia é mais difícil as coisas virem até nós, porque o algoritmo está de tal maneira fucked up que tu não podes estar à espera de uma boa recomendação. 

[Matilde] Mas, para mim, não tem sido difícil, porque a partir do momento que tu conheces um artista, vais sempre procurar mais dentro do universo dele. Quer seja por colaborações ou estarem na mesma editora. O que é super positivo.

[Ana] Sim, e é super insidioso. A Sophia Chablau e o Filipe Vaqueiro vêm cá a Portugal ao MIL, certo?

[Matilde] Sim, a Sophia vem num projeto em conjunto com o Filipe Vaqueiro, dos Tangolo Mangos, fazer uma tour por Portugal, onde vão tocar temas que compuseram juntos.

[Ana] E repara que eles não têm o apoio a nível de nepotismo. Que por exemplo, Bala Desejo tem.

[Matilde] Sim, exato. Esse grupo vem de famílias de músicos de nome.

[Ana] Bala Desejo no fundo é um supergrupo de nepo babies. Digo isto com todo o amor que eu tenho pelos Bala Desejo.

[Matilde] Sem dúvida. E eles têm noção disso porque é público.

[Ana] O Miguel é que me contou quando falou com Ana Frango Elétrico, porque foi quem produziu o disco SIM SIM SIM (2022).

[Matilde] Sim. Sim.

[Ana] Sim, sim, sim. Sim, sim, sim, sim, sim [risos]. Embora Ana Frango Elétrico, por muito que adore, o verdadeiro legacy delu vai ser na produção.

[Matilde] Pois, mas tenho pena. Tenho reparado que tem produzido muito mais para outros artistas do que para elu. O que é uma pena, porque adoro a sua voz e como artista. É também impossível desligarmos um bocado as parecenças de Ana Frango Elétrico com Rita Lee. 

[Ana] Sempre achei um paradoxo na Rita Lee, porque ela é muito rockeira, mas depois começa a cantar e é uma voz muito doce.

[Matilde] Ela tem um poder da sensualidade e liberdade na voz e na presença.

[Ana] Ana Frango Elétrico tem uma voz mais nasal, que gosto. Mas tem um talento incrível a nível principalmente de arranjos e produção. Ana Frango Elétrico ganhou um Grammy Latino como co-produtor do álbum SIM SIM SIM dos Bala Desejo, por exemplo.

[Matilde] E é super jovem. É impressionante.

[Ana] Tem muita terra para lavrar, muita coisa para aprender e nem quero imaginar onde estará daqui a 10 anos.

[Matilde] Sem dúvida. Adoro o estilo de letra que compõe. É um estilo absurdista.

[Ana] Mas isso é tropicalismo. A cena do absurdismo é tropicalismo. Não sei, eu gosto muito do álbum Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua (2023). E está milhões de quilómetros à frente da produção do Little Electric Chicken Heart (2019).

[Matilde] Concordo.

[Ana] Apesar de ser mais fã das músicas do Little Electric Chicken Heart. Mas isso é uma questão de gosto pessoal.

[Matilde] Sinto que prefiro mais as letras do Little Electric Chicken Heart do que no Me Chama de Gato Que Sou Sua. Eu gosto muito da sonoridade do Me Chama de Gato Que Sou Sua, mas as letras são, sei lá, absurdas. Elu recentemente lançou um single com o Marcos Valle [“Não tem nada não”].

[Ana] Chamo isso de vibe intelectualizada da música brasileira, e, no fundo, Bala Desejo também é. Por isso acho que a questão de a Ana Frango Elétrico produzir Bala Desejo é um paradoxo, mas, ao mesmo tempo, faz sentido. Porque Bala Desejo carrega justamente essa vibe cosmopolita da música brasileira: os nepo babies, os termos da vida. Tudo isso faz parte dessa mesma atmosfera cosmopolita. Já Ana Frango Elétrico não tem vibe de colégio privado. Os Boogarins também não têm essa vibe de colégio privado. Não é uma questão de retirar valor, mas de reconhecer que a visão que se tem do Brasil, e até da própria música brasileira, é diferente. Muitos desses artistas vão estar, metaforicamente, na penthouse do Caetano Veloso, percebes?

[Matilde] Certo. Eles refletem a bolha que viveram, não é? É impossível condenar, não vão fingir que vieram de outro contexto.

[Ana] É imenso, sim, mas ao mesmo tempo não sei qual é o background de Ana Frango Elétrico a nível de educação musical, percebes? Se estudou mesmo produção, ou se foi uma cena mais intuitiva.

[Matilde] Quando estive à conversa com elu, percebi que tinha opiniões e visões concretas sobre produção e a qualidade do som. Falava sobre a questão que agora se discute cada vez mais. Os níveis de compressão exigidos pelas plataformas de Spotify, etc. Elu criticava que o som estava demasiado alto e que perdia a qualidade toda.

[Ana] Isso tem de ser todo um outro debate, porque quando apareceu a gravação em digital e apareceu o formato do MP3, a própria compressão do digital já era uma bosta. Mesmo assim, tens artistas a dizer que gravam ainda em fita. Por exemplo, o Jonathan Rado é um purista de gravação em fita. Foxygen são puristas, assim como Lemon Twigs. Mas depois, vais ouvir nas plataformas e aquilo está comprimido.

[Matilde] Sinto que para fechar esta conversa, devíamos perceber como é que fomos aqui parar a esta conversa. Sinto que isto é quase um encontro destinado [risos].

[Ana] Foi uma coincidência nós estarmos subitamente ligadas à música brasileira, quando é uma coisa que é um entusiasmo temporário, não é uma coisa que tenhamos estado obcecadas a vida toda, percebes? Aconteceu na mesma altura.

[Matilde] Sinto que o que tu tens para me dar servirá como base para trabalhos futuros. Então eu sinto que a tua investigação sobre a música brasileira dos anos 70 e 80, ajudou-me bastante a criar um outro olhar sobre as coisas.

[Ana] Sim. E quando tu começaste a entrevistar artistas brasileiros, começaste a apresentar-me novos artistas. Aliás, é assim que eu conheço muitos artistas portugueses e brasileiros que aparecem na Playback, porque como não estou a viver em Portugal, muita coisa passa-me ao lado. Mas como sou “obrigada” a editar, acabo por conhecer artistas novos. É o que acontece quando as pessoas conversam e lêem o trabalho uns dos outros. Não concordo com aquelas pessoas que dizem que o pessoal mais novo tem sempre que aprender com quem já cá está há mais tempo. Quem já cá está há mais tempo também tem muito que aprender com o pessoal mais novo.

[Matilde] Claro! Só temos de agradecer a Raul Seixas. 

[Ana] Toca Raul! 

[Risos] 

[Ana] Tu conheces a história disso? 

[Matilde] Não, conta-me. 

[Ana] Pelos vistos quando vais a um concerto qualquer no Brasil, há sempre alguém que grita do nada: Toca Raul! Ou seja, têm de tocar uma música do Raul.

[Matilde] É o mesmo que em Portugal dizerem: Toca as “Dunas”?

[Ana] Sim! Sim sim sim.

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Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
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Com a participação pontual de Raul Seixas.

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