É curioso pensar que, quando falamos de hyperpop em Portugal, o primeiro nome que nos vem à cabeça é, muito provavelmente, o de Filipe Sambado e do seu álbum mais pessoal e disruptivo: Três Anos de Escorpião em Touro (2023). Sobre esse disco, pairava a influência de nomes estrangeiros ligados à PC Music, mas também de artistas portugueses que fervilhavam com devoção a A.G. Cook ou SOPHIE nas catacumbas do SoundCloud e do Bandcamp.
Entre esse nomes estão Bejaflor – um dos responsáveis pela produção de Três Anos de Escorpião em Touro -, Vert Gum (aka Tonya Nina), Adler Jack ou Carolina Miragaia, malta que hoje se encontra ligada ao coletivo/editora Æ. Neste cenário de constante mutação, há figuras que parecem emergir de repente, mas que, na verdade, sempre estiveram por perto: a produzir, colaborar, ou atuar nos bastidores. É o caso de Falcona, ou Inês Falcão, presença familiar em concertos de artistas como Vert Gum, Bejaflor ou Sreya.
Fascinada desde sempre pelo universo pop, Inês nunca se sentiu totalmente encaixada nele. O vasto leque de possibilidades do universo fragmentado do hyperpop permitiu-lhe, então, abrir fissuras nesse mundo e construir o seu próprio espaço. Um que reflete identidade, vulnerabilidade e libertação, e que agora surge condensado em MCFalcona9500, o EP de estreia da artista nascida nos Açores. Talvez o mais interessante neste género seja justamente isso: a sua ligação direta à exploração da sexualidade e do género, onde a sonoridade é fluida, emocional e, acima de tudo, livre. Assim o é este MCFalcona9500.
A insularidade como motor criativo
Para entender quem é Falcona, é preciso recuar aos Açores – mais precisamente, à ilha de São Miguel. Era 2014, e pelas ruas ecoava “Born This Way”, de Lady Gaga. O som saía de um quarto forrado com posters da “mãe dos gays” e de Britney Spears — muitos deles brindes da revista Bravo. Deitada na cama, com o leitor de CDs ao lado, Inês Falcão cantava cada verso e recorda que “o hyperpop esteve comigo desde sempre, porque eu sempre amei [música] pop”.
Com o tempo, o brilho da pop deixou de bastar. O glamour parecia distante da realidade de uma jovem queer que vivia numa ilha periférica e insular ao “centro” cultural do país. “Quando era mais nova, odiava viver na ilha. Sempre me disseram que aquilo era o fim do mundo e que nunca iria ser ninguém”, conta. Aos 15 anos, Inês já sentia o peso do oceano. No secundário, no curso de artes, uma professora de Multimédia mostrou-lhe o movimento underground de São Miguel, e foi aí que “percebi que havia pessoas que faziam coisas pela arte e pela cultura”. Esse foi *o* ponto de viragem para Inês. A partir daí, fez parte da banda punk Diabo é uma brasa, voluntariado no festival Tremor, e, mais tarde, envolveu-se na produção cultural local.
Durante esse período, surgiu o projeto Atelineiras, “um coletivo transdisciplinar” de “paneleiras”, como lhe chama, e pouco depois o Vaga, um espaço de exposições e performances que se tornaria o epicentro criativo da juventude micaelense. “A Vaga foi uma casa para nós, porque foi um espaço onde conseguimos criar laços com outros coletivos da ilha.” Entre esses coletivos, como o Plug e o Cara Lavada, formou-se uma espécie de família artística queer. Inês diz, com um sorriso cúmplice, que “a arte e a cultura” lhe salvaram a vida.
Após o término do secundário, contudo, o grupo dispersou-se. Inês, ainda que relutante, mudou-se para Lisboa. “É preciso sair da ilha para se ver a ilha”, repete, citando um provérbio açoriano. Na capital, começou a compreender não só a sua terra, como também a sua identidade. “Vir para Lisboa foi como sair de mim. Tive de decidir quem queria ser.” O hyperpop tornou-se o espelho desse processo: uma fusão entre trap, pop e eletrónica, desafiando fronteiras sonoras e de género. E, com ironia e humor, comenta que “se este tipo de música tivesse um género, seria não binário”.
Porém, a sua exploração musical começou ainda em São Miguel, numa residência da Rádio Vaivém. “Disseram-me para vir fazer essa residência e que trouxesse artistas que eu estava a ouvir. Escolhi a Sreya, que depois me apresentou à Bejaflor, que viria a ser a nossa produtora.” Dessa colaboração nasceu Estrela (cujo EP nunca chegou a ser lançado) e, mais tarde, MCFalcona9500. O nome, uma ideia da DJ PIPA DE MA$$A, que convidou Inês para ser MC numa das suas festas, combina o apelido Falcão com o código postal da cidade de Ponta Delgada. Assim nasceu Falcona, a artista queer açoriana que transformou o isolamento insular em força criativa.
Quem é a MC que ouvimos no EP?
“O processo criativo começou com um som que não está no disco. Era um cover da “Devia Ir” dos Wet Bed Bang”. Assim revela Inês, numa tentativa de explicar que, dentro do estúdio, o ambiente era de amizade e zero expectativas. Ela e Bejaflor passaram horas no estúdio a conversar sobre todo o tipo de música e a experimentar sons, mas também foram ouvintes um do outro sobre as suas inseguranças e questões de identidade e sexualidade. “Quando comecei a gostar de meninas, achava que devia ser mais masculina. Para mim, isso significava que não podia ser uma pessoa que ouvia pop. Mas quando cheguei a Lisboa, consegui criar a minha própria forma”, explica a artista.
O EP MCFalcona9500 reflete esses confrontos identitários e emocionais, vividos tanto na ilha como fora dela. A faixa “Miúda” abre o disco como um retrato da juventude queer açoriana – quase uma trilha sonora de Lobo e Cão, filme de Cláudia Varejão em que Inês chegou a participar como figurante. “Ser queer na ilha foi difícil porque não pude ter muitas experiências com pessoas da minha idade. Por isso, a ‘Miúda’ fala sobre como essas pessoas mais velhas me tratavam como se fosse uma criança imatura.” Inês explica que escolheu ser essa miúda fazendo uma birra para mostrar a fragilidade feminina, “já que me meteram nessa caixa. Se estás a dizer que sou uma mulher, então vou chorar”, afirma.
Já em “Ben 10”, Inês descobre a sua outra persona. Começou como um jogo de palavras: OD10 (ódio) rima com Ben 10, a personagem de desenhos animados. Depois, Bejaflor percebeu logo o instrumental que Falcona desejava para a faixa, e Vert Gum entrou em estúdio para acrescentar um verso que faz parte de “Faz Acontecer” (sim, do TT). “Naquela canção consegui trazer o meu lado mais flirty e dizer aquilo que me vai na cabeça, o que me ajudou a desconstruir a ideia de que só os homens é que podem dizer este tipo de coisas, e ainda assim ser um banger.”
A faixa “Tuning” continua essa desconstrução da binaridade de género. “Sempre gostei de carros, mas achava que isso era uma coisa de homens. É sobre gostar de ser passenger princess, mas também de estar ao comando.” Curiosamente, “Tuning” e “Miúda” foram feitas nos Açores, logo após o concerto de Estrela na edição de 2024 do Tremor.
O EP fecha com “Holiday no Total”, uma faixa de total libertação. “Escrevi esta música toda cega”, diz entre risos. “Na minha moca, pensei que, se fosse uma peça de roupa, estaria pendurada no estendal. E eu não queria que as pessoas me deixassem pendurada”, conta entre risos. “Depois percebi que estava numa pose como Jesus Cristo, então senti-me a pessoa mais importante do mundo”, remata. Para Inês, “é a roupa que vou usar nas minhas celebrações”, o símbolo de um ciclo que se fecha com humor, coragem e vulnerabilidade.
O EP MCFalcona9500 é, no fundo, uma viagem sonora e emocional que reflete a construção de identidade e o amadurecimento de uma artista queer açoriana. De São Miguel a Lisboa, do isolamento à celebração, Inês Falcão transforma cada som, cada memória e cada confronto numa afirmação: ninguém a deixa pendurada no estendal.
Fotografia de destaque: Francesca Rocha
