Uma boneca aparentemente abandonada no meio de uma floresta com um sorriso misterioso. Sons metálicos distorcidos, uma canção de embalar. O cenário começa a formar-se para billy woods pintar um quadro de horror(core) capaz de deixar qualquer ouvinte desconfortável. “Jumpscare”, a primeira música de GOLLIWOG, o novo álbum do rapper estabelecido em Nova Iorque, faz uma excelente introdução ao que se irá suceder ao longo do álbum: horror e histórias desesperantes. Uma one-liner que representa magnificamente billy woods e o tipo de artista que é aparece no último verso desta música: “The English language is violence, I hotwired it”.
Desde que começou a sua carreira no início dos anos 2000, billy woods tem vindo a mostrar ao mundo a sua capacidade de retratar situações de verdadeiro desespero que acontecem maioritariamente a pessoas de raça negra, mas que podem acontecer a qualquer pessoa. Através da sua poesia distópica, o rapper norte-americano fala de temas como a violência colonial e a sua repercussão até aos dias de hoje, e o problema da manutenção das estruturas capitalistas que permitem a perpetuação dessa violência, fatores integrais à experiência afro-americana vivida ao longo da história dos Estados Unidos. Podemos encontrar excelentes exemplos destas experiências em toda a sua discografia (que é longa, rica e diversa), mas quero destacar discos como History Will Absolve Me (2012) ou, mais recentemente, Aethiopes (2022).
No seu novo disco GOLLIWOG, woods volta a lançar um álbum em nome individual, depois de colaborações recentes com ELUCID (os dois artistas formam a dupla Armand Hammer), Kenny Segal (produtor do álbum Maps e também de algumas músicas de GOLLIWOG) e Preservation (produtor de Aethiopes que, tal como Segal, também tem créditos de produção em alguns sons de GOLLIWOG). O próprio nome do álbum dá-nos logo algumas pistas sobre os temas abordados. Golliwog é uma boneca criada por uma cartoonista americana que trabalhava em Londres no fim do século XIX, e que acabou por se tornar numa caricatura racista de pessoas de raça negra. O facto dessa mesma boneca aparecer com um sorriso na capa dá azo a várias interpretações. Quer seja uma crítica ao racismo estrutural ou apenas uma maneira de deixar o ouvinte inquieto, o que é certo é que ninguém fica indiferente.
Ao longo de GOLLIWOG, billy woods não se coíbe de relatar o desespero e de explorar alguns dos sons mais escuros da sua discografia. Em “STAR87”, malha produzida por Conductor Williams, produtor conhecido pelas suas inúmeras colaborações com os membros do coletivo Griselda (composto por Benny the Butcher, Conway the Machine, Westside Gunn, entre outros), woods trata os seus amigos mortos como zombies – “‘It should’ve been you,’ whispered by dead friends” – comparações que surgirão com maior preponderância ao longo do álbum.
Em “BLK XMAS”, billy woods conta com a feature de Bruiser Wolf (membro da label e crew Bruiser Brigade de Danny Brown) que, com o seu típico flow fora do beat (muito influenciado por E-40), conta parte da sua história pessoal e começa a dar vida à música – “Street life adopted me, dying young was the prophecy (That was the prophecy) / I was raised improperly in poverty / Malnourished, food a commodity (Yeah)”. A dura realidade de nascer e crescer pobre nos Estados Unidos mostra-se um ponto fulcral da sua rima, mas Bruiser Wolf vai mais longe: “It’s a thriller if you can pay the rent/ Direct threats at people trying to evict (Ah) / This flick as real as it gets (Real as it gets) / Depicting it after living it, it’s sickening”. Mesmo com este flow incomum e adlibs feitos quase de forma irónica, Bruiser Wolf volta a mostrar àqueles que estão dispostos a ouvi-lo que nem tudo o que diz é parvoíce ou envolve conotações sexuais, características pelas quais é mais conhecido.
Bruiser dá a abertura perfeita para o terror que billy woods relata no início do seu primeiro verso – “Neighbors just got evicted / How you gon’ put folks out a week before Christmas and they got kids? / Them people sick in they head, it’s sickening.” A instabilidade económica e social dos Estados Unidos (e, em geral, do mundo) leva woods a criticar atitudes de senhorios com base em situações que o próprio muito provavelmente presenciou. O desespero de uma família expulsa da sua casa, forçada a levar o maior número de pertences possíveis em dois carros dos seus primos, obrigada a deixar para trás mobília, tachos, panelas e roupa, é demasiado familiar para aqueles cuja vida está a ser impactada pela especulação imobiliária aparentemente infinita. Os vizinhos, que vivem igualmente numa situação precária, vão lentamente, um-a-um, apanhar os “restos” deixados pela família que abandonou o seu lar. Aqui, novamente, woods introduz a comparação entre os vizinhos desesperados e zombies a “comer” os tais “restos” – como se fossem restos humanos.
A genialidade de histórias como esta não vem apenas da maneira como é contada mas também da sua universalidade. De acordo com um artigo da Forbes publicado em 2024, um estudo de 2023 revelou que 78% dos norte-americanos vivem de salário a salário, um aumento de 6% face ao período homólogo de 2022. Viver de “salário em salário”, segundo o estudo, significa “um cenário financeiro em que o rendimento de um indivíduo ou de uma família mal cobre as despesas essenciais da vida, como habitação, serviços públicos, mercearias e transportes.” A leitura que se pode fazer destes dados é que billy woods não aborda este tema apenas como um problema que o próprio vivenciou ou ouviu histórias de pessoas próximas: trata-se de uma tendência crescente, e a mensagem torna-se cada vez mais assustadora pela possibilidade de afetar qualquer um de nós.
Na minha música preferida do álbum, “Corinthians”, billy woods junta Despot (lendário rapper do underground nova-iorquino) e El-P (rapper e produtor ligado aos Run The Jewels que nesta malha apenas assume a cadeira de produtor). Um beat com um piano forte, synths distorcidos e um crescendo que acompanha perfeitamente o desespero que se vai sentindo nos versos, criam o ambiente perfeito para o conteúdo. “Twelve billion USD hovering over the Gaza Strip / You don’t wanna know what it cost to live”, rima woods, lembrando onde o governo americano decide gastar parte do seu orçamento. Desde janeiro de 2025, o governo americano já aprovou mais de 12 milhares de milhões de dólares em vendas militares a Israel, números apresentados pelo próprio governo norte-americano. Estes dois versos impõem uma reflexão inevitável sobre um genocídio que todos testemunhamos. Ainda assim, woods não termina o seu verso sem “piscar o olho” a mais um problema derivado da megalomania de certos bilionários – “Best believe them crackers won’t make it to Mars”.
É assim que woods abre as portas para Despot manifestar a intenção de conhecer o “seu criador”, afirmando que terá algo “na manga” para perceber se este “sangra” da mesma maneira que ele. Esta traição ao próprio criador pode significar um estatuto de poder, quase como se Despot quisesse tirar as dúvidas de que é ele o responsável pelo seu destino. Simultaneamente, representa também o desespero sentido pelo rapper, de tantas vezes que se ajoelhou a pedir ajuda e as suas preces foram em vão. (Um aparte sobre este tema para destacar dois dos meus versos preferidos do álbum: “Take what’s yours and I make it all mine ‘til the money’s so long like it’s sayin’, / “Bye-bye,” to you”. Achei-os um verdadeiro throwback às rimas mais antigas de Despot).
“BLK ZMBY”, que conta com produção do produtor nova-iorquino Steel Tipped Dove (também responsável pelo instrumental de “Jumpscare”, a tal primeira faixa do disco), continua a tendência de usar o termo zombie tanto metaforicamente como literalmente. Uma das teorias sugeridas para a utilização deste termo com tanta frequência nesta música é a sua associação à música “Zombie” (1976) de Fela Kuti. Para quem está familiarizado com o lendário artista nigeriano, um dos principais responsáveis pela criação e divulgação do afrobeat, saberá que grande parte das suas criações envolvem temas como resistência colonial, luta pela liberdade e soberania do povo. É em “Zombie” onde percebemos a utilização do afrobeat como meio de libertação do povo nigeriano. Kuti utiliza a palavra zombie para descrever os soldados nigerianos que executavam ordens cegamente, incluindo a prática de atrocidades em nome dos seus ditadores. Paralelamente, billy woods descreve os zombies como os estados africanos pós-coloniais dormentes, que praticamente “forçaram” estudantes e trabalhadores qualificados a procurar melhores condições de vida devido à instabilidade política e conflitos armados. Esta ideia é acentuada novamente a meio da sua rima – “Universities empty, the troublemakers is drowned or drivin’ Uber overseas”. Mais uma vez, uma crítica universal que não se fica apenas pelas fronteiras norte-americanas.
Uma outra característica admirável de billy woods é a sua capacidade de escolher features de artistas que fazem parte do seu meio, mas que não são tão conhecidos. Um exemplo disso é a escolha de Cavalier, membro da Backwoodz Studioz, a label de billy woods, que já tinha aparecido também em “I Keep A Mirror In My Pocket” (2024) do álbum We Buy Diabetic Test Strips (2024) de Armand Hammer, para surgir na malha “Lead Paint Test”. Na penúltima canção de GOLLIWOG, Cavalier consegue encapsular sucintamente a experiência negra nos EUA no seguinte verso: “These ain’t pains, these the regular aches”. Neste tema em concreto, Cavalier refere-se à dificuldade de ter crescido em situações precárias com as semelhança das dificuldades que sente na sua vida adulta. Outra escolha artística foi a decisão de woods colaborar com os Human Error Club em “Dislocated”, a última faixa do álbum. Este grupo de jazz experimental de Los Angeles composto por Mekala Session (bateria), Jesse Justice (piano e sintetizador) e Diego Gaeta (também piano) relembra que não é preciso estar-se estabelecido enquanto grupo para se ser brilhante no que se faz. É uma faixa radiante que termina um disco estonteante – mais um disco ímpar para a discografia de billy woods.
Costumo dizer a brincar que seria necessário escrever uma dissertação de doutoramento para compreender verdadeiramente toda a complexidade de billy woods. Embora seja um rapper relativamente conhecido, esconde a cara em entrevistas e fotos, e até nos seus concertos presenciamos um ambiente com luzes escuras ou esbatidas, lembrando outro grande do hip hop esquisito e fantástico: MF DOOM. Curiosamente, em GOLLIWOG há várias referências ao autor de MM..FOOD. Na música “Born Alone”, woods utiliza uma sample da música “Fazers” (2003) de King Geedorah, um dos vários alter-egos de Daniel Dumile Thompson.
Para adensar ainda mais esta curiosidade, o próprio relata numa entrevista ao Bandcamp Daily a sua proximidade com DOOM: “Quando ele era vivo, por vezes estávamos apenas separados por alguns graus de parentesco. Ele é de origem zimbabuense-caribenha e os pais dele conheceram-se em Nova Iorque, o que é a mesma história para mim e para os meus pais”. Tal como MF DOOM na sua altura, billy woods quer continuar com esta irreverência de não mostrar a cara na arte que produz. O próprio indica nesta entrevista ao Bandcamp que é mais fácil conhecê-lo verdadeiramente devido à riqueza da sua produção e lírica do que muitos outros rappers dos quais conhecemos em profundidade (alguns até em demasia) os detalhes das suas vidas pessoais. Há um verso do Conway The Machine que resume esta ideia bastante bem: “Just focus on the lyrics, don’t focus on my appearance”. Muito do que billy woods partilha nos seus versos é honesto e revela bastante da sua personalidade, como o próprio afirma nesta entrevista. A beleza de um artista assim, à semelhança de MF DOOM, é mostrar que a verdadeira identidade não está no rosto que esconde, mas nas palavras que nos deixa, uma poesia distópica mas crua que cria uma intimidade própria com todos os seus ouvintes. Em GOLLIWOG, é isso que poetiza. Nós só temos de ouvir.