Não É Mentira: precisamos de bandas como as Lesma

Algo de extraordinário acontece quando vou ver uma banda ao vivo e sinto: “Finalmente, percebo”. Ocorre um clique. É maravilhoso. Senti isso a semana quando fui ao Musicbox assistir ao concerto das Lesma, jovem power trio oriundo de Sintra e da Margem Sul, a abrir para os excitantes Alomorfia

Os Alomorfia deram um excelente concerto, o esperado de uma banda que é uma espécie de supergrupo do underground lisboeta e que toca rock que soa virtuoso sem ser desnecessariamente pretensioso. Porém, por muito que tenha gostado do concerto dos Alomorfia, passei os dias seguintes a pensar no concerto das Lesma, que fazem rock que é o total inverso dos Alomorfia. Zero virtuoso, zero pretensioso. Punk do mais cru que há, rock q.b. pós-irónico que só podia ser feito por um trio de zoomers terminalmente online – ou assim parecem. Foi um dos concertos mais divertidos a que assisti em 2025 e justificou o hype – no qual, muito sinceramente, não acreditava – de alguns amigues que me tinham falado dos espetáculos ao vivo destas três jovens.

Em abril, foi esse hype que me fez escutar imediatamente É Mentira, o álbum de estreia das Lesma. Sinceramente, não gostei muito do disco à primeira. Notei potencial na banda, mas senti que estas canções não eram para mim. Não sou o maior fã de punk cru e as Lesma fazem isso mesmo. Canções feitas com três acordes (e às vezes, nem isso), malhas que parecem que foram gravadas sem auxílio de equipamento numa garagem – e que provavelmente foram. O rock deve ser assim, atenção. Contudo, o rock que as Lesma apresentam em É Mentira não é particularmente o rock que geralmente procuro. Tenho a mesma relação com os primeiros álbuns dos Glockenwise ou com o primeiro EP de 800 Gondomar. Consigo escutar as virtudes desses discos, mas não é exatamente música que escute todos os dias.

As Lesma são herdeiras desses primórdios do punk, sem dúvida. Porém, também são herdeiras de projetos como Vaiapraia (para quem abriram em março nas Damas), Pega Monstro, The Raincoats, Jay Reatard, PJ Harvey ou as várias bandas de Kathleen Hanna. As Lesma são muito riot grrrl e isso nota-se em É Mentira. Isto são canções feitas por uma banda punk, feminista, queer (“Maria”), que gosta de fazer música porque são amigas a fazerem música e não porque querem ser uma banda x, y ou z. Daí as canções de É Mentira soarem tão no limite, tão vivas. Nas Lesma, não existem artifícios. O que é, é, e o que será, será. No seu primeiro álbum, Leonor Casimiro (voz, guitarra), Rita Mira (baixo) e Beatriz Sobralinho (voz, bateria) experimentam para descobrirem que tipo de banda de rock querem ser – algo incomum nos dias de hoje, quando as bandas parece que já começam pré-programadas para chegar a um determinado fim. As Lesma não são assim. Utilizam o punk como artefacto para explorarem múltiplas vertentes do rock, para imaginarem uma utopia onde podem ser quem quiserem e onde todes podemos acompanhá-las nesse processo.

Nada disto é novo, obviamente, mas a música das Lesma é divertida e excitante em quantidade suficiente para garantir que já têm um culto a acompanhá-las pelo seu cada vez maior número de concertos. “Farei eu agora parte desse culto?”, perguntei-me no final do seu concerto no Musicbox. No dia seguinte, meti a tocar É Mentira e concluí que sim. Aquelas canções faziam muito mais sentido após tê-las escutado ao vivo. De repente, os refrões ficam-me presos na cabeça, de repente queria voltar a ouvir o álbum com todas as qualidades (que são várias) e defeitos (que são alguns). Mas não queremos que o rock e o punk sejam assim? Com defeitos? Jovial, juvenil, no limite do ridículo?

Em É Mentira, as Lesma ora tocam algo próximo de um misto entre hardcore e thrash metal servido à moda da Margem Sul (“Breakdown”), ora estão a experimentar com declamações bizarras que nem é spoken word nem é sprechgesang (“Barreiro”, candidata à música mais engraçada de sempre pró-Barreiro e anti-Mafra). Às vezes, até cantam coisas cujas melodias ficam no ouvido (“Eu sou uma (colher)”, “Heroína”). E claro, gritam. Gritam porque são punk, gritam porque precisam (“Homem”), porque são jovens que precisam de meter cá fora tudo e mais alguma coisa. Afinal, as Lesma são tão novas que, em 2024, a Time Out Lisboa indicava que eram uma “banda de gajas” acabadinhas de sair “do secundário”. 

O mundo, portanto, é a ostra destas três raparigas. Potencial não lhes falta e canções parece que também não. As Lesma vieram para ficar e ainda bem que assim o é. Como as próprias admitem em “Barreiro”, elas são “de todo o lado” e esperemos que a sua música chegue a todo o lado. Precisamos de bandas como as Lesma porque precisamos de vozes no underground que não sejam só do homem branco a tocar guitarra e a fazer barulho. A música das Lesma é para todes e esperemos que inspirem miúdas a pegar em guitarras e a fazer barulho com as amigas. Mais punk e necessário do que isso? Impossível. 

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Riot grrrl a roçar no ridículo e ainda bem que assim o é.

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