Nem toda a música é confortável. santos da minha mente, o primeiro longa-duração das redoma, não quer entreter – quer abalar. Um disco que rasga o silêncio, que reclama território e que exige escuta. Um corpo de resistência feito a duas mãos.
Carolina Viana e Joana Rodrigues, dupla do Porto, não surgiram do nada. Antes deste álbum, já tinham lançado singles e projetos que mostravam a sua assinatura única: uma fusão de hip-hop, electrónica e spoken word, sempre com um olhar atento ao que pulsa nas margens. Desde cedo, deixaram claro que estavam ali para fazer mais do que ocupar espaço: Carolina a dar corpo e voz às palavras e Joana a moldar o som com precisão e instinto – juntas a construir algo que não cabe em moldes pré-fabricados.
Agora, com santos da minha mente, chegam com (ainda mais) maturidade artística. Mais do que escutado, este disco pede para ser vivido. Cada faixa é um santo particular. Uma dádiva feita de memórias, de dores e de perguntas. Uma reza sussurrada. Um grito de resistência. Um abraço que tanto acolhe como desafia. E, acima de tudo, um testemunho feroz sobre o lugar das mulheres na música portuguesa: não como figuras decorativas, mas como forças criadoras, arquitetas de som, voz e futuro. O que as redoma fazem aqui não é apenas criar canções – é abrir caminho. E este é apenas o começo.
O disco abre como quem sussurra para si mesma no escuro. Em “contas à vida”, a batida é contida, quase a segurar o fôlego, enquanto a voz de Carolina traz palavras afiadas, uma espécie de inventário íntimo. Aqui, já sentimos a assinatura delas: não há medo do silêncio, nem de criar espaço entre som e palavra. É uma faixa que pede atenção, não grita – mas quem ouve, fica preso. A faixa-título (“santos da minha mente”) expande o universo: a produção joga com camadas, ecos e texturas que lembram um labirinto emocional. Liricamente, é quase um diário espiritual: quem são os santos que habitam a mente? São memórias, medos, figuras que sustentam ou que esmagam? Aqui, as redoma não se limitam a contar, criam também uma atmosfera onde quem ouve pode projetar os próprios fantasmas.
“voo lento” tem um balanço curioso: a batida sugere leveza, mas a letra arrasta uma certa melancolia. É um voo que não tem destino certo, um querer ir e um ficar preso ao mesmo tempo. E talvez seja esta contradição que define muito do que as redoma fazem: elas sabem trabalhar o contraste entre o que o corpo sente e o que a cabeça grita. Minimalista, densa, quase sufocante, é assim “2572”. Esta faixa corta fundo com poucas palavras, apoiada numa produção crua, quase industrial. A letra fala de cansaço, de desilusão e de sentirmos que estamos a caminhar numa cidade cinzenta, rodeados de muros invisíveis. Aqui, o hip-hop não é só ritmo, é espaço de denúncia e ferramenta de resistência.
Um momento de pausa, mas não de repouso. O “interlúdio” aqui não serve apenas para dividir: serve para criar tensão, para deixar o ar pesado. Sons abstratos, fragmentos de voz – uma espécie de respiração antes do mergulho final. “lugar” é o manifesto urbano do álbum. A batida mais marcada e a letra a apontar o dedo ao desaparecimento de espaços, e ao apagamento de identidades. Aqui, as redoma lembram-nos que fazer música é também fazer política. Não é só canção, é intervenção. E o Porto, cidade delas, não é apenas cenário: é personagem.
Finalmente, libertação. Depois de tantas faixas contidas, “folia” explode numa energia inesperada. A batida acelera, o flow ganha corpo e há uma sensação de celebração – mas uma celebração consciente, talvez até irónica. Não é festa vazia, é dança como resistência, como sobrevivência. Voltamos à introspeção com “fuligem”. O som aqui é denso, quase pegajoso. Há uma escuridão que se cola à pele, como a fuligem do título. As palavras são poucas, mas carregadas. É como se a canção fosse feita de restos, de cinzas e de memórias queimadas. E mais uma vez, as redoma mostram que sabem usar o espaço negativo – aquilo que não é dito pesa tanto quanto o que é.
Em “delírios II” entramos num território mais experimental. A estrutura foge ao convencional, a produção é fragmentada e a letra mergulha a fundo no caos mental. Esta faixa é desconfortável, mas é suposto ser. Estamos a assistir a uma espécie de colapso controlado, um delírio que nunca perde a mão firme da produção. O fecho do álbum é quase um renascimento. Depois de atravessar tantas sombras, “outro lado” abre uma janela. A batida é mais suave, a melodia mais luminosa e as palavras falam de passagem, de atravessar, de chegar. Não é uma conclusão fácil, mas é uma promessa.
santos da minha mente é importante não apenas pelo som, mas pelo gesto. Pela coragem de não seguir fórmulas fáceis. Pela recusa de suavizar a mensagem para caber em rádios, em playlists e em algoritmos. Quando uma mulher produz, escreve, interpreta, constrói, grava e lança, não está apenas a fazer arte – está a romper com uma cadeia longa de silêncios impostos, de portas fechadas e de lugares pré-definidos. Quando são duas mulheres, então, que se unem para criar algo tão coeso, tão poderoso e tão livre como santos da minha mente, não estão só a fazer um álbum, estão a abrir uma clareira para outras passarem.
No presente, este álbum já é uma afirmação. No futuro, poderá ser visto como uma semente. Talvez daqui a uns anos, quando olharmos para trás, possamos reconhecer santos da minha mente como um daqueles pontos de viragem: um momento em que duas mulheres mostraram que o underground português podia ser mais vasto, mais feminino e mais arrojado. Um momento em que, sem pedir licença, elas construíram o seu altar e convidaram-nos a ajoelhar, não em submissão, mas em reconhecimento.
Porque no fundo, o que as redoma nos lembram é simples, mas urgente: o lugar das mulheres na música não precisa ser criado. Ele já existe. É uma questão de quem tem coragem para ocupá-lo, e aqui, Carolina e Joana fazem isso com uma força que não pede desculpa.