Vivemos tempos muito estranhos. Os tempos sempre foram estranhos, mas agora temos acesso a tudo ao mesmo tempo. Com a Internet e a avalanche constante de informação, vemos notícias a cada segundo, tragédias em direto, crises a estalar nos quatro cantos do mundo. E mesmo com tantas formas de comunicar, com tanto acesso facilitado ao que realmente importa, parece que cada vez mais escolhemos desviar o olhar da injustiça. Fingimos que não vimos, que não é connosco. Se não fosse assim, não teríamos um partido de extrema-direita no parlamento, nem países a serem massacrados diante dos nossos olhos, enquanto o mundo segue em silêncio.
Quando comecei a ouvir música, acreditei que a cultura podia ser uma ferramenta real para a mudança. Não apenas a música em si, mas acima de tudo a liberdade de expressão que (alegadamente) temos. O universo ruidoso e apaixonado da rebeldia sonora sempre me entusiasmou. Facilmente apaixonei-me por artistas que pareciam ter o coração no sítio certo e a alma em combustão. As bandas que não só tocavam contra o sistema, como viviam à margem dele. Via na música anti-sistema e de intervenção um caos honesto, uma anarquia com propósito. Nem sempre por amor à música, mas muitas vezes por devoção a ideais maiores que ela própria: a paz, a liberdade, a implosão do fascismo. Com o tempo, no entanto, tornou-se difícil manter essa fé de que ainda haveria pessoas interessadas nesta campanha. Há algo de profundamente desencorajador em ver aqueles que um dia foram bandeiras da resistência a perderem o fio à meada e a fazerem como o resto da sociedade–virarem costas aos ideais ou pior, declararem silêncio.
Hoje, o silêncio tornou-se quase tão ensurdecedor quanto a hipocrisia. Muitos artistas, confortavelmente instalados em palcos dourados, escolhem calar-se diante da opressão. Esse silêncio, vindo de quem tem voz, não é neutralidade: é indiferença mascarada de prudência. É um luxo que só quem nunca teve de gritar pode pagar.
Já há algum tempo que não ouvia falar de artistas verdadeiramente anti-sistema que conseguissem manter a genuinidade na sua luta pela liberdade, muito menos de artistas que estivessem dispostos a pôr a sua reputação em jogo pelas causas. Há umas semanas, no entanto, sem saber o que esperar, sentei-me no cinema para ver uma biopic ficcionalizada de uma banda que me trouxe esperança num mundo feito de plástico. Estou a falar dos Kneecap e do filme homónimo que estreou em 2024 no Sundance e que venceu o prémio de audiências.
Para perceber quem são os Kneecap, basta começar por um detalhe: estes três senhores são irlandeses até à medula. E não é só uma questão de passaporte ou sotaque, é uma herança cultural que carregam com orgulho e insolência. O nome da banda é uma referência direta a uma prática associada ao Exército Repulicano Irlandês (vulgo, IRA): a de alvejar os joelhos de quem era considerado um traidor ou criminoso.
Mo Chara, Móglaí Bap e DJ Próvaí – ou, fora dos palcos, Liam Óg Ó hAnnaidh, Naoise Ó Cairealláin e J. J. Ó Dochartaigh – são de Belfast, e o seu rap é um espelho dessa identidade rebelde. Misturam inglês com gaélico irlandês, uma língua que poucos falam e menos ainda usam em música, mas que na cadência crua e acelerada do hip-hop é uma lufada de ar fresco na cena do rap europeu.
Os Kneecap estrearam-se musicalmente em 2017 com o single “C.E.A.R.T.A.”, que nasceu de um episódio de confronto com a polícia. Logo com o primeiro lançamento, a polémica não se fez esperar. “C.E.A.R.T.A.” foi banida da rádio irlandesa por “conteúdo obsceno” – seja lá o que isso for. Em pleno século XXI nunca tinha ouvido falar de uma música ser banida por conteúdo obsceno, mas aconteceu. E aconteceu na Irlanda, numa altura em que se lutava com unhas e dentes pela preservação da língua irlandesa.
Na realidade, o pretexto para banir “C.E.A.R.T.A” e afirmar que a música continha conteúdo obsceno surgiu de uma questão profundamente cultural. Muita gente não achou piada ao ver o gaélico, símbolo de identidade nacional e língua em vias de extinção, ser usado para rimar sobre MD e charros. Foi como se os Kneecap estivessem a profanar algo sagrado. Porém, o grupo estava a fazer precisamente o contrário. Os Kneecap mostraram que aquela língua estava bem viva e que podia ser tão válida num comício como num clube debaixo de luzes intermitentes.
Chamar-lhes ofensivos é fácil. O mais difícil é aceitar que, por detrás desta história, há um retrato desconfortável de um país que ainda tem medo da sua própria voz. Perante este cenário desconfortável, os Kneecap, que por essa altura ainda estavam a começar enquanto banda, não mostraram medo e avançaram com uma petição para colocarem a música de volta no ar – conseguiram. Ironicamente, o tema foi nomeado para os NÓS Music Awards (prémios dedicados às canções cantadas em irlandês) nas categorias de Canção do Ano e Videoclipe do Ano. O trio foi também nomeado para Revelação do Ano.
No ano seguinte a todos estes acontecimentos – 2018 – os Kneecap apresentaram ao mundo 3cag, o seu primeiro longa-duração. O título do álbum é uma piscadela de olho ao mundo das drogas. 3cag vem de trí chonsan agus guta, que se traduz para “três consoantes e uma vogal”- a sigla para MDMA. É aí que começa algo ainda mais invulgar: os Kneecap não se limitam a usar a língua gaélica. Passam também a reinventá-la.. Pegam numa das línguas mais antigas da Europa e dão-lhe uma modernização urgente. Como falar de ketamina e cocaína num idioma que nunca teve palavras para isso? Inventa-se. Nasce “snaois” para cocaína, “capaillín” para ketamina. Surge, assim, vocabulário novo. Neste álbum incluem o supracitado primeiro single, “C.E.A.R.T.A.”, a música perfeita para conduzir em direção a destinos mal intencionados. Destacam-se ainda “Amach Anoch”, que sampla o grito da “Get Off” do Prince, um sinal de algo que surge praticamente em todo o disco: a groove. Ao longo de 3cag, encontramos muito instrumental dançável com cheirinhos psicotrópicos. Com este álbum de estreia estupidamente divertido os Kneecap demonstram que na Irlanda não se dança só ao som do fiddle.
Porém, eis a questão: será que os Kneecap não sabem falar de mais nada além de drogas? Como já tinha referido, eles são irlandeses. E ser irlandês, especialmente vindo do Norte, é carregar nos ossos muito mais do que um vício em Guinness. É crescer com um espírito de luta entranhado no ADN, uma raiva antiga que ainda ferve. Se as drogas são só a casca das canções, a gema é política. É pessoal. Além de terem uma presença ativista, tendo já participado publicamente em várias manifestações a favor de causas sociais na Irlanda, demonstram isso liricamente nos seus temas.
Nenhum tema do grupo expõe isso melhor do que “Brits Out”. A canção, lançada em 2019, trouxe o grupo de volta à controvérsia. Durante um concerto, DJ Próvaí subiu ao palco com as palavras “Brits Out” escritas nas nádegas, que mostrou ao público orgulhosamente, com a ajuda da coragem e de alguns estupefacientes. Infelizmente, a identidade de DJ Próvaí, que desde o começo usava uma balaclava com as cores da Irlanda, precisamente para evitar ser reconhecido, acabou por ser descoberta e levou vermelho direto da escola onde trabalhava como professor de música.
Ainda em 2019, a maré continuou a subir e um vídeo viral do trio a entoar “Brits Out” no Empire Music Hall, em Belfast, acabou por vir à tona, no mesmo palco que no dia anterior tinha acolhido os então Duques de Cambridge. O Partido Unionista Democrático (DUP) não se poupou em críticas (como seria de esperar de um partido de direita conservadora). Nem por isso o volume baixou e os Kneecap continuaram na luta.
Até ao final de 2019, relatamos apenas situações que surgiam meramente pelo espírito revolucionário irlandês inerente à banda. Contudo, aí surgiu o momento que marcaria a carreira dos Kneecap até aos dias que correm. A partir de 2020, os Kneecap começaram a apresentar-se solidários com a causa palestiniana, começando a exibir bandeiras do país nos seus concertos e a declarar publicamente o seu apoio a uma Palestina independente – mais um lembrete que a subjugação do estado palestiniano não começou a 7 de outubro de 2023. Desde então, têm mantido uma posição firme de boicote ao Estado de Israel e utilizado a sua plataforma para angariar fundos para iniciativas como um ginásio voluntário no campo de refugiados de Aida na Palestina. Mas como tudo o que envolve os Kneecap, as vitórias vêm sempre com muito desafio.
Em fevereiro de 2024, meses antes do lançamento do seu 2º álbum, o grupo foi selecionado para receber um apoio de 14 250 libras através do programa britânico Music Export Growth Scheme. Até que Kemi Badenoch, então Secretária de Estado para Negócios e Comércio, travou o apoio (e aposto que não vão acreditar que partido que esta senhora lidera), alegando que não era “apropriado financiar pessoas que se opõem ao Reino Unido”. Mas os Kneecap não são de engolir sapos: contestaram a decisão nos tribunais e, em novembro, o Tribunal Superior de Belfast deu-lhes razão, classificando a decisão do governo como “ilegal e processualmente injusta”. Mais um capítulo na já longa história em que a música deles se cruza com a política e vence.
Em junho, veio o golpe de mestre: Fine Art. O segundo longa-duração dos irlandeses surgiu permeado por uma produção ambiciosa e foi um sucesso. Se havia dúvidas de que o trio sabia fazer música para além da polémica, em Fine Art ficaram arrumadas: um disco que sabe a casa feito para curtir numa cave subterrânea e como sempre, para incomodar. Nele podemos ouvir faixas como “3CAG” e “Parful” que nos levam para uma rave em que protestantes e católicos conseguem coexistir. Podemos sacar do nosso fato de treino da Nike e cantar grime com um take envenenado em “I bhFiacha Linne” e “Fine Art”. Conta ainda com uma colaboração de peso em “Better Way to Live”: Grian Chatten, vocalista dos Fontaines D.C., outra banda irlandesa que não esqueceu o genocídio a acontecer na Palestina.
Agora, mesmo depois de tantas vitórias face à adversidade e ao escrutínio, os Kneecap estão novamente a ser atacados pelo governo britânico pelo seu comportamento nos últimos meses. Contudo, em comparação com os acontecimentos anteriores, saírem totalmente ilesos desta tentativa de manchar a sua reputação e de triunfarem perante o sistema que os pretende silenciar pode ser mais complicado do que parece para os Kneecap.
Em abril, subiram ao palco do Coachella e, fiéis à sua natureza, projetaram mensagens como “Israel is committing genocide against the Palestinian people” e “F*** Israel. Free Palestine”. O impacto foi imediato e a pressão teve consequências: o patrocinador que lhes garantia os vistos para estarem nos Estados Unidos retirou-lhes o apoio e a digressão norte-americana ficou em risco. As polémicas não ficaram por aí. Ainda no mesmo mês, começaram a circular vídeos de uma atuação em Londres, em novembro de 2024, onde Mo Chara foi visto a segurar uma bandeira do Hezbollah e a gritar “Up Hamas, up Hezbollah”. Estas são declarações explosivas, considerando que ambos os grupos são considerados terroristas pelo Reino Unido. Como consequência, neste mês de maio, Mo Chara foi formalmente acusado de terrorismo e a banda rapidamente respondeu, negando qualquer apoio a grupos terroristas e condenando, de forma inequívoca, todos os ataques a civis. Ainda assim, Mo Chara terá de comparecer em tribunal a 18 de junho. Face a isto, mais de 100 artistas assinaram uma carta aberta em apoio aos Kneecap e em nome da liberdade de expressão, e que conta com assinaturas de artistas como Tom Morello, Brian Eno, Pulp, IDLES, Massive Attack ou The Pogues – tudo artistas que, de alguma forma ou outra, têm o cunho de ativismo e de consciência de classe nas suas carreiras.
Todavia, os Kneecap claro que não iam ficar de braços cruzados. Afinal, a música é a sua arma. Portanto, para meu enorme agrado, aconteceu o que eu mais desejava: os Kneecap lançaram uma música de resposta a estas alegações. “RECAP” é exatamente o que se esperaria de um grupo que está sob ataque público: agressiva e possuidora de um refrão bem orelhudo onde passam perfeitamente a mensagem de que isto não vai ficar por aqui, de que a sua luta irá continuar.
Será que Mo Chara devia ter levantado uma bandeira do Hezbollah e ter feito os cânticos que fez? Diria que não porque esse momento pode fazer com que o desfecho seja aquele que os críticos dos Kneecap tanto desejam: o seu fim ou, pelo menos, o seu hiato. Porém, surge aqui uma outra questão: o que deveria aparecer nas primeiras páginas dos jornais? Um grupo de hip hop estar a denunciar um genocídio ou o genocídio?
Vivemos num mundo ao contrário onde os mais poderosos são fracos com a injustiça e implacáveis com quem ousa falar demais, e isso nunca vai mudar. Contudo, talvez o mais desconfortável desta situação seja isto: os Kneecap não estão a fazer nada de extraordinário. Estão apenas a usar a sua voz para dizer o óbvio. Para se recusarem a ser cúmplices pelo silêncio. E, nesse gesto, tocaram num nervo exposto da nossa era: a criminalização da empatia e da solidariedade. Serão perfeitos? Longe disso.
Tenho plena noção que não estamos a falar de nenhum grupo de Bob Dylans ou de Zeca Afonsos irlandeses. Os Kneecap sabem que não pretendem ser profetas e assumem que eles próprios não são perfeitos. Nunca procuraram definir-se por esse rótulo; apenas utilizaram a sua música para declarar a sua empatia pelos ostracizados. Precisamos de mais bandas que, como os Kneecap, não têm qualquer medo de o fazer. Nos tempos que correm ser empático e decente é um dos atos mais radicais que podemos ter. Sejamos todos radicais.
Fotografia de destaque: Peadar Ó Goill