10 edições de Black Bass: uma história de resiliência DIY

Novembro foi mês de tempestade e aguaceiros por todo o país, inaugurando a época fria do ano. No entanto, no fim de semana de 14 e 15 de novembro, floresceu desse temporal um oásis do rock alternativo nacional em Évora: a décima edição do Black Bass.

Batizado em 2014 de Évora Psychedelic Fest, o festival organizado pela Pointlist desde a fundação da agência e produtora eborense percorreu outras localidades antes de chegar à cidade alentejana. Passou no dia 7 por Odeceixe, nova paragem precedida por um verão de produções da agência no Bar do Toy, e dia 8 pelo CAE Portalegre (Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre), destino regular do festival desde 2023. Esta expansão, segundo os elementos da Pointlist entrevistados Carolina Brandão (baterista de Sunflowers) e Francisco Cabrita (fotógrafo e vocalista da banda Chat GRP), visa estimular novos públicos em sítios descentralizados. De acordo com Carolina, procuraram “fazer uma coisa divertida que idealmente se mantenha nos próximos anos, que seja aquele dia para projetos mais novos.”

Na cidade berço da Pointlist, decorreram dois dias de festa e barulho, descrito por Carolina como “bom barulho, que é cuidado, curado, pensado do início ao fim”. Ambos os músicos concordam que quem vai pela primeira vez ao Black Bass acaba sempre por regressar — como frequentador habitual sou prova viva desse fenómeno, e desloquei-me então mais uma vez do Porto até Évora.

Dia 1 — 14 de novembro

Os festejos começaram mais cedo este ano, ocupando durante a tarde a sociedade histórica eborense Bota Rasa com uma feira de tatuagens e serigrafia, acompanhada por um DJ set da Pointlist que transbordou das paredes da Bota para a Praça Giraldo até anoitecer. A música cessou para a apresentação de Fora de Horas, livro do jornalista Hugo Geada que retrata dificuldades do circuito musical português, em que quem vos escreve teve o prazer de moderar a conversa entre o jornalista e Pedro ‘Jimmy’ Feio, que tocaria no Black Bass enquanto integrante do Colectivo Pointlist e dos OFFTIDES. As tardes de sexta e sábado foram marcadas por este ponto de encontro na Bota Rasa, descrito por Francisco Cabrita como um contexto onde “as pessoas sabem que podem encontrar as suas pessoas, dedicado a atividades culturais sem ser só a música”.

OkA. Fotografia: André Cruz
OkA. Fotografia: André Cruz

A noite de sexta-feira prosseguiu na porta ao lado, onde João Modas começou a fazer programação cultural antes de fundar a Pointlist. Os corredores da Sociedade Harmonia Eborense (SHE) foram habitados por artistas de serigrafia, sócios regulares, participantes de um torneio de snooker e amigos a reencontrarem-se mais uma vez no festival que mantém até hoje uma forte ligação ao espaço.

Apesar de reconhecer o potencial da SHE, Carolina Brandão identifica fragilidades. “Se não há interesse em fazer uma programação ou ter o mínimo de curadoria, é muito difícil conseguires criar um público”, afirma a baterista dos Sunflowers. O acolhimento de concertos com condições justas depende da capacidade de atrair espectadores, dificultada pela ausência de uma programação consistente e pelas dificuldades financeiras quase constantes que assolam o espaço. Aponta com preocupação que “devia haver mais cuidado pela parte destes sítios históricos de não deixar morrer a cena”, não sendo suficiente acolher eventos pontuais como o Black Bass ou o Capote Fest.

No entanto, reforça a vontade de continuar a trabalhar com a SHE, palco para o concerto do ruidoso trio OkA. Munidos do EP de estreia ombu, o power trio assumiu os seus instrumentos acompanhado pelo burburinho curioso de um público incerto, que foi rapidamente cativado pela singularidade da performance, desde logo marcada pela balaclava DIY de coelho punk utilizada por Alexandre Bandola (bateria), com um microfone dentro. Por trás da guitarra distorcida, João Moreira (guitarra, voz) gritava letras impercetíveis, a servir-se da voz como elemento rítmico e textural. A soar bem, tocar alto e mandar pinta, os OkA entregaram um noise com momentos para dançar, surpreendendo pela positiva.

A espera entre concertos fez sentir o cansaço de um dia de viagem, característico da experiência comunitária que se apodera da SHE anualmente. Para animar os espíritos, entrou em campo o supergrupo Colectivo Pointlist, a jogar em casa. Reunidos pela primeira vez numa residência em 2019, Carlos de Jesus (Sunflowers), Fred Ferreira (Sunflowers, 800 Gondomar), Pedro Feio (Fugly, OFFTIDES, Evols) e Vitor Silva (El Señor) regressaram este outono para os warm-ups do festival em Odeceixe, Lisboa e Porto.

Colectivo Pointlist. Fotografia: André Cruz
Colectivo Pointlist. Fotografia: André Cruz

O repertório de originais apresentado, uma manta de retalhos com elementos característicos dos projetos de cada músico, foi recebido por um mosh que se manteve entre falhas de som e luz. A colaboração entre amigos que torna o projeto divertido acaba por ser o seu ponto fraco — apesar de tocarem com pujança, faltou a química que vem com mais estrada. Parece um projeto preso a 2019, mas é também esse o espírito do Black Bass: celebrar amizade e projetos passados e presentes, para além do talento emergente. Num festival que é uma reunião familiar da Pointlist, quem marcaria a ocasião melhor do que o próprio Colectivo Pointlist?

Durante os concertos, elementos da produção do festival integraram o público, a quebrar como já é habitual a barreira artista – espectador – organização. A dinâmica manteve-se no dia seguinte com a continuação da festa na Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar (SOIR JAA), onde “a sala é escura, o público mal dá para perceber” e “toda a gente é igual”, como descreve Francisco Cabrita.

Dia 2 — 15 de novembro

Assim que se subia as escadas da SOIR, era evidente o trabalho investido nesta edição, com uma atenção aos detalhes notável. O salão estava decorado de uma ponta à outra com luzes discretas convidativas, e na parede encontravam-se expostos todos os posters de edições anteriores. Foram ainda afixadas regras e um código de conduta, a reafirmar o compromisso do Black Bass em criar um espaço onde todas as pessoas são bem-vindas e se podem divertir em segurança, valorizando a entreajuda e o cuidado com os outros. O bar regia-se por um sistema de senhas e oferecia água e chá gratuitamente, que, apesar de parecer um gesto simples, é raro de ver em Portugal.

O lisboeta Yung Xalana abriu a noite em formato banda, para uma sala ainda vazia mas quentinha, declarando a sua atuação e o Black Bass como sendo “do coração” — alinhado com a descrição de Carolina Brandão de que até à data o festival funcionou sempre por amor à camisola. Tocaram um set sucinto e incisivo, de refrões fortes guiados por uma guitarra de tom invejável. Recorreram a todas as ferramentas para transmitir um rock ruidoso emocional, inclusive uma chave de fendas utilizada como slide.

Lesma. Fotografia: André Cruz
Lesma. Fotografia: André Cruz

Seguiram-se os OFFTIDES, que têm apresentado pelo país fora o disco de estreia LAP YEAR, com músicas sobre angústias laborais, amor e… comer rabo. Apelaram à participação de um público ainda disperso, ajudando a aquecer quem foi chegando. O vocalista Henrik Beck saltou até o palco abanar que nem um trampolim, com uma energia que contagiou os espectadores mais investidos, culminando num moshpit espaçoso, dirigido pela banda.

Em contraste geracional, as jovens Lesma vindas de… Lisboa? Barreiro? Mafra? Como o trio diz, “de todo o lado”, cantaram sobre não querer ver mais reels. Convenceram os corpos a mexerem-se com um repertório animado — nota-se que estão nisto há pouco tempo, mas vieram para partir tudo. O público demonstrou interesse crescente, a aproximar-se do palco e entoar em coro “eu sou uma colher / não tenho garfo”. Formou-se outro mosh pequeno, num concerto que já terminou com aplausos mais calorosos que os anteriores.

Entretanto, aproximou-se a meia-noite e a lotação do espaço deixava a desejar. Ao conversar com Carolina no bar, afirmou sentir dificuldades em alcançar o público local. Apesar do cuidado investido na décima edição do festival, não estiveram presentes muitos espectadores para o apreciarem.

A noite continuou na mesma, com MONCHMONCH a trazer ao palco colegas de banda que mais pareciam integrar um culto, vestidos de negro com máscaras estranhas. O rock bizarro hiperativo cativou a audiência entre guitarras orelhudas e ritmos irregulares. Acompanhado por sintetizadores siderais, o vocalista viajou a Marte e pelo público adentro, que apesar da dispersão sustentou momentos de crowdsurfing. Tudo terminou com o súbito rapto do músico por forças marciano-capitalistas, deixando uma sala a querer mais ruído.

A vontade foi rapidamente saciada por bbb hairdryer, que continuam a romper tímpanos três anos depois de atuarem pela primeira vez no Black Bass, agora de costas para o público. Comprometidos a partir qualquer ruína que restasse da noite, tocaram a volume máximo o seu mais recente álbum A Single Mother / A Single Woman / An Only Child (2024), auto-descrito como ‘trans satanic guitar shit’. Elisa, vocalista e guitarrista, insistiu em declarar “girls to the front, queers to the front, shorties to the front”. O silêncio do grupo entre músicas contrastou com o ruído de fundo persistente. Depois de uma versão de Nirvana que deixou o público em êxtase, Elisa virou-se para enfrentar a sala e bater com a guitarra na cabeça durante “HATE”. Perto do final, o som da testa da vocalista a atingir o microfone até sangrar ecoou pela SOIR, sucedido pelo mantra de “isto não é violência gratuita”.

bbb hairdryer. Fotografia: André Cruz
bbb hairdryer. Fotografia: André Cruz

Após cinco concertos e muitas horas de pé, chegou a vez de Sunflowers, projeto da Pointlist com mais de uma década de existência. O trio portuense levou ao festival o recente You Have Fallen… Congratulations!, editado na semana anterior pela Fuzz Club. Pediram para o som estar alto antes de depositarem toda a energia que tinham num set construído para rebentar tudo. Infelizmente, até este concerto de encerramento, com fama de ser quase místico, não conseguiu interessar a plateia como nos últimos anos. Ainda assim, quem esteve presente testemunhou a comunhão de pratos de bateria, guitarra e vozes distorcidas, e linhas de baixo incansáveis fundidas num só feedback. A banda guardou “Oscillations” para o fim, responsável por um moshpit agregador de artistas, produção e público do festival numa massa de calor humano, alegria e cerveja.

Terminou a música, ligaram-se as luzes, e assim se encerrou mais uma edição do Black Bass, ou como Carolina e Francisco diriam, «a dor de cabeça mais agradável que tenho anualmente».

*

Regressei a casa a pensar no próximo Black Bass — terá a falta de tração sido uma exceção ou indício de (mais) um desafio futuro? Apesar de não ter resposta, sei os passos que a Pointlist tem tomado com consciência e dedicação.

A agência e produtora esteve nas mãos de João Modas durante vários anos, cujo trabalho é agora reconhecido numa profissionalização levada a cabo por Carolina Brandão e Francisco Cabrita. O projeto é lhes entregue com uma confiança valorizada por ambos, agradecidos pela oportunidade de construir sobre uma base tão especial. “Tudo isto também começou por conseguirmos pegar e manter o Black Bass de maneira viável e sustentável”, conta Carolina, “não faz sentido estar a criar mais uma coisa só para fazer um festival, quando o que nós queremos é que a Pointlist funcione por ela própria, como um todo”.

Fotografia: André Cruz
Fotografia: André Cruz

Sem largar a ética DIY de fazer acontecer, formaram uma empresa. Carolina encarrega-se de papeis e logística, “a tomar conta da casa” para não desabar, e a garantir as condições para Francisco estar na rua a realizar contactos e concretizar ideias. No entanto, não deixam de considerar João Modas uma peça fundamental: “acabamos por ser as pessoas a falar mais pela Pointlist, mas o Modas é uma parte absolutamente essencial. Se não fosse o Modas não estávamos a fazer isto”, refere Carolina.; “Continua sempre a ser o Pai Modas, e não existia Black Bass nem Pointlist sem o Pai Modas”, indica Francisco.

Mencionam planos futuros, entre um espaço para residências, internacionalização de bandas e dar continuidade à expansão do conceito do Black Bass. No entanto revelam uma ambição cautelosa que promete sucesso. “É importante não mostrarmos as cartas todas neste momento, porque querer, queremos muita coisa. Agora, fazer acontecer já é outro passo, que envolve muito mais”. Por agora, basta reiterar: longa vida à Pointlist e ao Black Bass. O futuro logo se vê.

Nascido no Porto em 2003, Afonso Mateus sempre demonstrou um grande interesse pela música, como fã e instrumentista. Integrou a banda Call Me Alice durante a adolescência, até se mudar para Lisboa para frequentar a licenciatura de Ciências Musicais, na Nova FCSH. Durante este período, integrou o projeto de escrita musical 'Ruído Mudo' e contribuiu com críticas, entrevistas e reportagens para a Threshold Magazine. Em 2024 regressou ao Porto onde realizou o curso de Music Business da ARDA Academy, quando começou também a trabalhar com a editora, agência e produtora Maternidade.
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