O corpo guarda memórias
O corpo guarda memórias. A minha infância cheira a pão quente no forno, ao perfume floral da minha mãe e ao cheiro da casa dos meus avós, nas Azenhas do Mar. Ser criança cheira ao balneário da escola de natação, a caril de amendoim e ao perfume Chanel da minha tia, em forma de sapato.
É engraçado como os nossos olhos guardam os lugares mais bonitos do livro da nossa vida. O quintal da minha antiga casa ainda parece tão grande como quando o víamos como um gigante campo de futebol, e as ruas anteriores à nossa ainda parecem cenários ideais de um filme de terror quando percorridas à noite. Os meus pais continuam a ser os mais bonitos do grupo, e o meu irmão mais novo parou no tempo. Não acho que os olhos enganem — acho que eles nos desmontam e desmentem.
O som das coisas ainda faz bandas sonoras nos meus dias. A playlist do casamento dos meus pais ainda é feita dos meus temas preferidos de R&B, e os primeiros álbuns da Alicia Keys ainda me levam ao espelho, com um pente a fazer de microfone. A cara da minha crush de adolescência ainda é nítida quando ouço aquela kizomba específica, e a minha pele ainda se arrepia quando ouço aquele álbum do George Michael.
O corpo guarda memórias. Ainda ontem era eu uma criança, com tão pouco para temer e tanto para escrever. Hoje, ainda escrevo muito — mas já tenho um pouco mais desse medo de viver. O meu corpo já não relaxa quando ando sozinha à noite, e o meu ouvido parece ter ganho um quê de alerta quando estou em sítios muito movimentados. O meu nariz já não ignora o mau cheiro de situações comprometedoras, e os meus pés já não pousam por completo em terreno perigoso.
Acho que chega a ser infeliz o corpo guardar todas as memórias. Se fosse eu a programá-lo, deixava-o guardar apenas algumas — mas não todas. Podem passar muitas semanas sem eu me lembrar do arrepio de ter uma mão desconhecida a percorrer o meu corpo, mas aqui estou eu, no meio de um dos momentos mais felizes da minha vida, numa mesa rodeada de amigos… e o meu corpo decidiu lembrar-se.
Aqui estou eu, a rir-me das piadas secas do meu pai, enquanto penso no que tenho para fazer amanhã, e — ao sentir uma brisa tocar levemente nas minhas pernas — sem querer, eu lembro-me. Estava a correr tão bem. Meses e meses de terapia, formas novas de guardar as memórias em caixinhas trancadas… mas hoje, no dia mais improvável de todos, eu lembrei-me. E o meu olhar paralisou. As minhas pernas bloquearam. A minha motivação acabou por hoje.
O corpo guarda todas as memórias. Desde o pequeno-almoço que a avó trazia para comermos antes de ir para a escola, à primeira música que cantei num concerto da escola de música, às tardes de cinema com as minhas amigas — e ao consentimento que eu nunca dei.
Mas, feliz ou infelizmente, o corpo guarda todas as memórias. E por isso, eu nunca me esquecerei.
Entrelinhas, o disco de estreia de Nayr Faquirá, pode ser escutado nas plataformas de streaming habituais.