Sentada no balcão do Passos Manuel acendo um cigarro e conto as garrafas de whisky velho que se seguram na prateleira dianteira – é 2019 e ainda se fuma no foyer. Reparo no Macallan de 30 anos que o Becas trouxe há umas semanas e questiono a existência de um whisky que vive preso dentro de uma garrafa de vidro mais antiga do que o meu próprio corpo – o que é que acontecia em 1989? Além da queda do muro de Berlim, o lançamento da “Good Life” dos Inner City, e o nascimento da minha irmã, Portugal estava sob a alçada do governo de Aníbal Cavaco Silva, um dos momentos pós-revolução mais tristes a que se assistia e que deflagrou num país envelhecido pelo conservadorismo que pairava na assembleia. Sobre o início dos anos noventa não sabia muito mais, nem apreciava propriamente o sabor a whisky velho – parecia-me demasiado fumado, como se o antigo fosse impedido de conhecer o novo.
Inquieta a pensar sobre tudo isto, ouço Catarina a dirigir-se a mim para pedir uma bebida (que não era whisky). No queixume comum de uma noite apaziguada na invicta, Catarina desabafava sobre a saudade indescritível que sentia das “festas nos castelos”, dizia, “Maria, tu não imaginas o que era aquilo, milhares de pessoas no castelo de Santa Maria da Feira, ou até em Coimbra, onde fosse!”. Falava sobre o tempo e sobre como a música de dança era cíclica, na expectativa de que o drum’n’bass voltasse e de que todos os fins-de-semana se tornassem nas festas a que ia “quando era jovem”.
Enquanto escutava atentamente o desabafo de uma das clientes mais antigas daquele bar, continuava na reflexão e questionava-me se era possível de facto ter havido raves em castelos naquele que era um país (cronicamente) à beira de um abismo económico, político e social. Enquanto os anos noventa se desdobravam nas consequências do thatcherismo e do cavaquismo conservador do PSD, havia milhares de pessoas que se reuniam em lugares secretos – para dançar sem pudor, para expressar libertação, para reiterar esta patente atribuída por Rob di Stefano chamada “a paradise called Portugal”. Foi preciso chegar a 2025 para finalmente entender, ainda que com um grande distanciamento, aquilo que me tinha sido contado. Sentada na sala principal do Cinema São Jorge, assisti ao documentário Paraíso – dirigido por Daniel Mota, produzido por João Erverdosa (Shcuro) e Maria Guedes (Maria Amor), montado minuciosamente por Henrique Frazão, e apoiado por uma equipa de pessoas que se juntaram a um sonho, aparentemente quase utópico, de reviver na tela toda esta era.
Em 2015, quando este projeto nasceu de um programa de rádio informal na Rádio Quântica, João e Maria mal conseguiam imaginar o acervo de narrativas que iriam acumular – um contributo arquivístico que viria a resultar num documentário único e nunca antes produzido. Ao longo de uma década de trabalho vivo sobre a história da música de dança em Portugal, Paraíso transformou-se em matéria, um documentário cuja urgência em preservar memórias da cena eletrónica nacional resultou em 38 testemunhos de figuras-chave — nacionais e internacionais — e imagens raras, muitas delas recuperadas de cassetes VHS esquecidas. Mais do que um documentário, “Paraíso” nasce para reescrever aquela que é uma carta de amor a uma cultura que moldou toda uma geração e que continua a inspirar quem nela se revê.
No princípio, a rave fez-se no Convento de São Francisco de Assis em Coimbra, era 13 de Fevereiro de 1993 e, hoje, ainda é considerada como o arranque da cena rave portuguesa.
Simon Reynolds não estava errado quando via a cultura como um arquivo infinito, mas parece-me certamente possível contrariar a paralisia criativa que nos mencionava, e este trabalho é um reflexo disso. A possibilidade de reviver a história e tudo o que subjaz nos segredos dos marginalizados é algo que deve ser visto como fonte de proatividade e não como um bloqueio. Além disso, a noite em Portugal nos anos 90 era construída por uma comunidade excluída da realidade e expectativa social: sair à noite não se coadunava com aquilo que era esperado de cada indivíduo e Lisboa, no auge da sua criatividade, reinventou-se em clubes como o Kremlin, Alcântara-Mar e o Frágil.
No entanto, aquilo que conseguimos perceber em Paraíso é que as consequências pós-revolução, que tanto indicavam um baixar de braços e a precarização do povo, acabaram por se tornar numa brecha de luz na noite na escuridão dos corpos suados que procuravam uma batida, um ritmo, para se conseguirem exilar das rondas de imposições governamentais.
Mas, passados trinta anos, o que é que resta?
Como Bernardo Vaz de Castro mencionou no seu artigo no À Pala de Walsh “sair à noite há 30 anos era um acto transgressor”, e à época, “ser DJ era estar à margem de uma sociedade do trabalho absolutamente estratificada e estagnada”. Contudo, como se pode perceber, as raves portuguesas caíam nas mãos de um público sedento, pessoas de outros países que não Portugal, que chegavam cá e colocavam estas festas ao nível das de Ibiza. Fosse pela loucura, pelas romarias, pela vontade que movia cada pessoa. Portugal entregou-se a uma cultura que hoje parece estar reservada apenas a alguns, cada vez mais poucos. O direito a não sermos compreendidos, a “opacidade” de Glissant, como uma recusa consciente da lógica do tornar transparente, permitiu às raves que se fizeram no mundo inteiro afirmarem uma identidade e diferença que se prezava pela ausência de explicação, e o próprio filme fragmenta a história de forma a deixar respirar um espaço para debate e reflexão.
O documentário Paraíso inaugura com um momento jamais inesquecível de José Rodrigues dos Santos em 1992, em pleno noticiário, a não conseguir sequer explicar o que eram as “raven parties” – erguido o pendor do tempo, sentimos aquilo que o gatekeeping tem feito sobre a noite em Portugal e que, quem trabalha nela, sabe que é um dos maiores desafios. É incompreensível a forma como uma ferramenta de subversão do poder do sistema continua a ser encostada a um canto do prato e a ser desviada da atenção do público em todo o dia-a-dia, uma comodificação da revolução da qual Debord já nos tinha alertado para. Para mais, existe o elefante no meio da sala, ou seja, a pressão financeira e a gentrificação que andam de mãos dadas e que têm vindo a engolir a luta que decorre dentro destes espaços que hoje ainda desafiam o status quo.
Assistimos à chacina de espaços como o Watergate (Berlim) e o De School (Amsterdão), aguardamos o encerramento do Renate (Berlim), e também não podemos ignorar os quase 400 clubes noturnos em Inglaterra que acabaram por não resistir desde a pandemia. Mas o cenário inóspito para a vida nocturna não é estrangeiro. Em Portugal, o pior acontece, espaços como o Planeta Manas – que vai encerrar em julho – e as Damas tentam sobreviver, e lugares como Café au Lait e o Lounge já foram levados.
Conquistada a evidência de que as raves portuguesas foram um lugar de contracultura, e sendo impossível negar que o declive económico ecoa pela Europa e afeta quem resiste ao capital, pergunto se velar os mortos é a nossa prioridade. Como dizia Darin Pappas em “So Get Up”, canção dos Underground Sound of Lisbon que em 1994 se tornou no hino da música de dança nacional: “The end of the earth is upon us, pretty soon it will all turn to dust. So, get up!”
Veludo toca a 24 de maio no Pérola Negra, no Porto, a fazer a primeira parte para John Talabot. Bilhetes aqui.