Num panorama musical português que tantas vezes recai sobre fórmulas seguras e repetições estéticas, ICARO surge como um sopro de ar estranho – no melhor sentido da palavra. DESCULPA QUALQUER COISA, o seu EP de estreia lançado a 28 de março, é um manifesto artístico sincero, intuitivo, emocional e, acima de tudo, invulgar. Gonçalo Ícaro, aveirense de gema, parece chegar com a vontade de fazer as coisas à sua maneira. E isso nota-se desde o primeiro segundo. Se CONAN OSIRIS abriu uma fenda na cena pop portuguesa, ICARO continua por esse caminho – sem mapa, mas com rumo.
Este não é um trabalho que tenta agradar a todos, antes pelo contrário. ICARO convida-nos para o seu mundo com uma linguagem sonora muito própria, onde as formas não são lineares, as melodias têm tempo para respirar e a produção vive num espaço entre o pop alternativo, o soul electrónico e algo que ainda não tem nome. Há algo de caseiro e artesanal no som, mas nunca amador. É meticulosamente desalinhado, como se cada faixa fosse um recorte de diário colado com cola UHU e samplado com cuidado. E talvez seja aí que o EP realmente brilha: na recusa de se encaixar num molde.

Logo na abertura, somos lançados em “MOLICEIRO”, um tema que mais do que uma canção é quase um cartão de visita emocional. O título não é apenas uma referência identitária a Aveiro – belíssima cidade de barcos, salinas e melancolia escondida. É também uma metáfora para o deslocamento: ICARO conduz-nos num barco que navega por entre géneros, com batidas que se desfazem em delay, vocais distorcidos, adlibs dispersos e uma groove que nunca se impõe, mas vai sussurrando uma presença inquietante. A produção de Beiro acerta em cheio na textura: é como se estivéssemos a escutar um rádio numa praia deserta, onde a nostalgia se mistura com o ruído do vento.
Em “CONTO FRANCO”, a narrativa ganha ainda mais corpo. Liricamente, é uma espécie de divagação – um “conto” sem final fechado. A colaboração entre Beiro e Blaeckfull dá origem a uma batida mais marcada, com tons electrónicos que cortam o espaço como lâminas de luz. A mistura entre o digital e o humano é clara: há sintetizadores etéreos, mas também há calor na voz, há falhas que não são corrigidas, há uma crueza pensada. É o tema mais críptico do EP, mas também um dos mais ricos, onde o espaço entre os sons é tão importante quanto o som em si.
“LINDA” é talvez o momento mais nu do EP, não por falta de complexidade, mas por uma escolha estética de espaço e respiro. A produção de Tsubasv constrói um ambiente leve, quase suspenso. Os silêncios dizem tanto quanto as palavras, há reverb suficiente para nos perdermos dentro dele. É um tema de amor, mas longe do clichê; há fragilidade, admiração e medo misturados num retrato íntimo que só se consegue com vulnerabilidade. A repetição serve como mantra – ICARO não canta para impressionar, canta para confessar.
Segue-se um pequeno delírio pop, mas com um pé no sonho e outro na electrónica lo-fi, chamado “CÉU NA TUA BOCA”. O título já antecipa uma lírica mais abstrata e poética, e a produção – mais uma vez assinada por Beiro – responde com uma paleta sonora que remete ao dream pop e ao soul ambiental. É uma faixa que soa a desejo e a contemplação. O instrumental é construído em camadas suaves, com sintetizadores que vão e vêm como ondas pequenas, enquanto a percussão, suave mas constante, mantém-nos ancorados. ICARO canta como quem beija em palavras, sem pressa, quase em câmara lenta. É aqui que a estética do EP atinge um pico de delicadeza.
A fechar, “SENTIDO DE HUMOR” vira o jogo – e bem. Traz consigo uma batida mais frisada, quase dançável, mas com um tom agridoce. É aquele tipo de faixa que dá vontade de dançar de olhos fechados – sozinho, no quarto, às três da manhã. Há groove e ritmo. A letra é perspicaz, com ironia e ternura a coabitarem no mesmo verso. Um encerramento perfeito.
Uma viagem curta mas intensa, feita de pequenas confissões e dilemas afetivos. DESCULPA QUALQUER COISA não é um EP que grita para ser ouvido – ele convida, lentamente, como quem acende uma luz baixa num espaço confortável. Fala com segurança no seu tom e talvez por isso mesmo cause impacto. ICARO apresenta-se como um artista que valoriza o detalhe, o silêncio, a escolha estética e que, acima de tudo, tem algo a dizer, mesmo quando não diz tudo. Num país onde muitas vezes a música segue direções previsíveis, é uma lufada de ar fresco ver alguém a abrir um caminho novo, ainda que o terreno esteja cheio de pedras. ICARO pode estar só a começar, mas já sabe muito bem o que quer dizer e fazer. E diz com uma voz e uma sonoridade que são só dele. Se este EP é um pedido de desculpas, então aceitamos – por tão bom que é.