BRAT: A queda e ascensão de Charli XCX

Estamos em 2014 e um grupo de estudantes sai eufórico das aulas. Surge a pergunta: “Querem ir ver um filme a minha casa?”. Em conjunto, escolhem ver The Fault in Our Stars (2014), um sucesso que acabou por marcar a minha geração. Uns, pela sua sofrida história de amor; a mim, pela trilha sonora, que incluía uma certa canção: “Boom Clap” de Charli XCX.  Este foi o meu primeiro contacto com a artista britânica e acabou a incentivar-me a descarregar, mais tarde, o álbum SUCKER (2015) para o meu MP3 da Hello Kitty.

Exatamente dez anos depois, Charli XCX lançou, no início de junho, BRAT, um álbum que já se afirmou como a soundtrack dos meus 20s. Embora Sucker seja um disco pop corriqueiro, para muitos fãs tem um valor nostálgico referente à adolescência. Nesta equação, BRAT é o gatilho que nos faz voltar a esses momentos. Quando combinada a frase “I’m just living that life” com o icónico grito da atriz Addison Rae no remix de “Von dutch”, esta ressuscita o movimento de libertação e adrenalina das “pirralhas” (brat) que temos dentro de nós.

Musicalmente, Charlotte Emma Aitchison tem tido um percurso sólido, reconhecido por derrubar os padrões convencionais da pop. Para deixar o legado de True Romance (2013) e Sucker para trás, em 2016, a artista iniciou a sua colaboração com o artista e produtor A. G. Cook, um dos principais nomes ligados à PC Music e à popularização  do microgénero hyperpop, com o lançamento do EP Vroom Vroom. Além de A.G. Cook, em Vroom Vroom Charli colaborou também com a produtora e artista escocesa SOPHIE, que mais tarde viria a surgir como uma das principais fontes de inspiração de Charli nos seus projetos experimentais seguintes: Pop 2  (2017), Charli (2019) e how I’m feeling now (2020).

Em 2022, Chali lançou o seu sétimo longa-duração CRASH, que fugiu ao registo experimental explorado nos projetos anteriores. Em CRASH, a cantora londrina trouxe-nos de volta às tendências da pop mais dançável e direta, como é o caso do êxito “Beg For You”, com feature de Rina Sawayama. No entanto, havia uma intenção por trás de Charli largar, por um momento, o seu lado disruptivo e experimental. Como disse numa entrevista à Billboard, CRASH era “sobre o facto de eu ter assinado contrato com uma grande editora e sentir que nunca tinha jogado aquele jogo tradicional e estereotipado da estrela pop das grandes editoras”. Ou seja, em CRASH Charli estava a desempenhar apenas um papel: o de ser uma estrela pop como as outras. “Queria desempenhar esse papel satírico, por isso estava a hipersexualizar-me”, disse.

De ironia, BRAT traz-nos uma imagem e mensagem mais crua e real da indústria pop e da própria artista. Na mesma entrevista à Billboard, a artista explica que toda esta sua nova “era” é baseada no conceito de ser uma pirralha: “Ser uma pirralha tem algumas nuances. Acho que muitas pessoas pensam que significa apenas ser mal-humorada e um bocado merdosa. O que eu acho que justifica o comportamento de pirralha vem de inseguranças, porque as pessoas quando estão stressadas levantam as suas muralhas. Por isso, acho que é uma combinação de ultra confiança e ultra vulnerabilidade”.

“Ultra Confiança”

BRAT abre com “360”, um mote introdutório para a personagem forte e convicta da artista: “I’m your reference, baby”, canta. Uma apresenta que é ilustrada através de uma batida à medida que não só alimenta a sua autoconfiança, como também nos contagia. Sem percebermos, somos convencidos a ir para a pista dançar ao som de “Club classics”, malha que diz muito do percurso da artista e os tempos em que tocava em raves ilegais londrinas no final da era do MySpace: “Nasci para fazer música dançável… Vim dos clubes…xcx6 [BRAT] é o álbum que sempre quis fazer”, comentou a artista na sua conta no Twitter.

A atitude “mal-humorada e um bocado merdosa”, de piralha é intensificada em “Von Dutch”. “Why you lyin’? You won’t fuck unless he’s famous” ou “It’s so obvious, I’m your number one” são alguns dos versos que glorificam a vaidade de Charli e a sua posição na indústria musical, acompanhados por sintetizadores levados ao extremo. Embebedados por todo o egocentrismo, chegamos a “Mean girls”, uma ode não só a Charli, mas também ao Tumblr e a todas as mulheres que não têm medo de ser pirralhas.

“Ultra Vulnerabilidade”

BRAT é o disco em que Charli constrói uma party girl persona e é o mesmo em que ela a destroi por completo. A queda da personagem começa em “Sympathy is a knife”, onde a cantora desabafa abertamente sobre as suas inseguranças na relação com o seu noivo George Daniel, baterista dos The 1975: “This one girl taps my insecurities” e “George says I’m just paranoid”, canta.

Enquanto em CRASH Charli ridicularizava o formato convencional das músicas e letras pop na balada “I might say something stupid”, acompanhada apenas por um sintetizador, a cantora decide tirar todos os esqueletos do armário. Esta é uma faixa que sucede depois da artista ter sofrido uma crise existencial em uma das festas, tal como contou à Rolling Stone. Aqui, Charli revela-se conformada às suas inquietações e defeitos: “Guess I’m a mess and play the role / Used to live just for the party, door is open / I’m famous but not quite / But I’m perfect for the background”.

São essas inseguranças  cantadas por Charli nos momentos mais delicados de BRAT que chegaram a atravessar-se nas relações com os seus. Em “I think it about all the time”, Charli questiona se quer mãe (“Should I stop taking my birth control?”) e o impacto que isso pode ter na sua vida e carreira (“’Cause my career feels so small / In the existential scheme of it all”). Já no remix de “Girl, so confusing”, assistimos a um momento de partilha e conciliação entre Charli e Lorde, artistas que tinham (supostos) conflitos e mal-entendidos por resolver. “Cause, I ride for you Charli”, canta Lorde. “You know I ride for you too”, responde Charli.

A nuance entre a auto-glorificação e a auto-sabotagem da artista revela-se notoriamente na nostálgica faixa “Rewind”. A artista confessa, num instrumental desalinhado com o seu estado, que gostaria de regressar aos momentos quando não era atormentada pelas suas inseguranças (“I’d go back in time to when I wasn’t insecure / To when I didn’t overanalyze my face shape”).

Mas se há momento em BRAT que captura a vulnerabilidade presente no disco, é “So I”. É uma homenagem a SOPHIE, que partiu deste mundo há cerca de três anos. Em “So I”, o amor e admiração por SOPHIE de Charli são eternizados (“You’re a hero and a human”), através de versos saudosos, harmonizados com pequenas samples do tema “It’s Okay to Cry” de OIL OF EVERY PEARL’S UN-INSIDES (2018). O luto pelo génio de SOPHIE é eterno (“Guilty feelings keep me fractured/ Got a phone call after Christmas / Didn’t know how I should act”), numa carta que mantém viva a ideia de que se não fosse SOPHIE, talvez a carreira de Charli não teria tomado o rumo que tomou no pós-Vroom Vroom.

O fim de uma era

BRAT é o ponto final de uma era. Além da artista ter expandido os limites do que se pode entender como hyperpop esta dá-nos a conhecer a verdadeira imagem de uma personagem totalmente manipulada pela indústria, que foi destruída, num ato corajoso, pela própria. Para uma pessoa que cresceu na era de Sucker, ouvir BRAT foi como voltar a viver memórias de uma adolescente rebelde e emancipada, que ouvia “Break the Rules” e “London Queen” como uma filosofia. A grande diferença é que BRAT menosprezou uma indústria pop, que formatou muito a nossa maneira de olhar para as coisas. Charli descomplicou o conceito de pop star ao som de grandes malhas, e ensinou-nos que pode existir uma matriz onde o excesso de confiança e a falta dele vivem no mesmo espaço. São exemplos como Charli que tornam o pop entusiasmante e impactante.

Mesmo que BRAT não seja um disco que vá marcar uma geração, espero que a cor verde florescente o seja. A campanha de marketing envolvente é um fenómeno que deve ser estudado. Charli foi capaz de fazer com que o verde florescente tenha perdido a sua identidade e seja associada apenas ao seu disco – nem que seja momentaneamente. A partir daí não fui a mesma. Estou em estado de alerta. Por cada verde que passo, tenho o reflexo de reviver o álbum de uma ponta a outra. Com muito gosto.

Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
Artigos criados 9

A dualidade entre confiança e vulnerabilidade.

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