O mundo onírico e introspetivo de Kenya Grace

Não sei quanto a vocês, mas uma das cenas que mais gosto nos festivais de música é todo o sentimento em torno da experiência do “partir à descoberta”. Sim, compraste bilhete propositadamente para ver aquele ou aquela artista, ou aquela banda, mas a verdade é que tens todo um mundo de possibilidades à tua volta com o qual te podes vir a surpreender. Falo por experiência própria. Comprei bilhete para a mais recente edição do Primavera Sound para ver especificamente Lana Del Rey – apesar de já a ter visto no Super Bock Super Rock há uns cinco anos -, mas não deixei de dar uma espreitadela a outros nomes que me suscitavam uma certa curiosidade, como é o caso das The Last Dinner Party. O trabalho delas chegou-me aos ouvidos através do nosso querido Miguel Rocha que escreveu sobre o seu fortíssimo disco de estreia (Prelude to Ecstasy) e confesso que foi o que me guiou até ao palco principal para as ver em ação. Se gostei mais do concerto delas do que do da Lana Del Rey? Sim. Se esperava confessar tal coisa? Jamais. Foi uma surpresa e das boas.

Quem diria que ia ter uma surpresa ainda melhor no NOS Alive. Desta vez, a minha atenção estava direcionada para INÊS APENAS (apoiar amigos mega talentosos aquece-me o coração de uma forma que nem imaginam!) e para Dua Lipa. Inesquecível, mesmo. No dia do arranque do festival, depois de meter um olho nos Nothing But Thieves, recordo-me de me virar para uma amiga e dizer «‘bora ver o que se passa no Palco Heineken». E assim foi. O destino guiou-nos até Kenya Grace e a sua maschine. Foi amor à primeira vista. Ou diga-se antes, à primeira música. Tinha uma nova discografia pronta a explorar quando regressasse a casa. Fiquei completamente rendida.

Se pelo nome não chegarem lá, pesquisem pelo som “Strangers”, carreguem no play e com certeza que vos irá soar familiar. Um dos maiores hits de 2023. Mas acreditem, Kenya Grace vai mais além de “Strangers” (ainda que seja uma ótima canção!), e na tentativa de vos provar isso trago comigo o seu disco de estreia The After Taste lançado em março deste ano.

“The After Taste (intro)” dá o pontapé de saída para o disco. Basta pouco mais de um minuto para Kenya estabelecer o tom com uma mistura de sons etéreos e batidas suaves que evocam uma sensação de introspeção. A produção é delicada, com camadas de sintetizadores que criam uma sensação de flutuação, quase como se estivéssemos na fronteira entre o passado e o presente. Ouvem-se apenas quatro versos que nos preparam para uma jornada sonora introspetiva, ao mesmo tempo que nos apresentam a um espaço emocional onde as consequências de um coração partido começam a manifestar-se.

So, if you have a weird taste in your mouth

But you’re not sure exactly where it could be coming from

I wanna help you identify the root cause of it

And there’s quite a few reasons for this

Temos “Strangers”, a canção que encontrou o caminho para os nossos corações via TikTok, onde Kenya explora o sentimento de familiaridade que rapidamente se transforma em estranheza entre duas pessoas que outrora foram íntimas. “Hey, Hi, How Are You?” soa semelhante. Ah, conhecem aquela sensação de ver alguém que vocês gostam a seguir com a sua vida enquanto vocês lidam com as vossas cicatrizes emocionais? É do que trata “It’s Not Fair”. E “Someone Else” segue o mesmo caminho. A toxicidade e as inseguranças que derivam dela também são um tópico predominante e podemos ouvi-lo em faixas como “Stay” e “My Baby Loves To Dance”. Depois temos ainda “Only On My Mind”, candidata a melhor canção de Kenya, onde esta mergulha no desejo de superar uma relação, mas com a mente presa nas lembranças do passado.

Desabafos de uma típica miúda de 26 anos que tenta resolver os seus devaneios a partir da música – e que bem que o faz. Kenya utiliza uma linguagem simples, mas impactante, para expressar sentimentos de vulnerabilidade, arrependimento e esperança. Ouve-se um conjunto de versos melancólicos mas que carregam uma honestidade brutal, e isso é bonito.

É com “The After Taste (outro)” que o disco termina, funcionando como um reflexo da faixa de abertura, mas com uma nuance ligeiramente mais convicta. Ainda que mantenha a mesma atmosfera suave e contemplativa, há uma leve mudança na energia, sugerindo um processo de aceitação e superação. Os ingredientes sonoros são idênticos, mas a composição transmite uma sensação de fecho, como se a jornada emocional estivesse concluída.

So I hope this has helped you determine the origin of that bad taste in your mouth

Make sure you rinse it out

Then never eat it again

A nível lírico, impecável. Mas se há algo que me faz ouvir este álbum em loop todos os dias é a sua sonoridade. A produção do álbum é notável pela sua atenção ao detalhe e à textura sonora. A instrumentação é uma combinação de elementos orgânicos e electrónicos carregada de camadas de sintetizadores que constroem uma paisagem sonora densa e atmosférica. Há uma utilização perspicaz de samples e efeitos que acrescentam profundidade e complexidade às canções, oferecendo um toque de experimentalismo sem sacrificar a acessibilidade. Os instrumentos acústicos, como guitarra e bateria, são usados de forma eficaz para criar uma base sólida e pulsante, enquanto os sintetizadores e pads electrónicos adicionam uma dimensão etérea e contemporânea. Há coesão. Há fluidez. E tudo soa a um sonho, quase que parece que estamos a ser levados para outra dimensão. Porra. Mas permitam-me também falar sobre os belíssimos vocais de Kenya Grace, que não são apenas um fio condutor para a melodia, mas também um elemento essencial da textura sonora, entrelaçando-se constantemente com os arranjos instrumentais para nos fornecer uma experiência auditiva rica e imersiva. Muito disto deve-se ao uso de efeitos como reverbs e delays que amplificam a profundidade emocional das letras.

The After Taste tem a capacidade de invocar uma avalanche de emoções. A fusão de batidas pulsantes, texturas eletrónicas e vocais emotivos gera um ambiente que pode ter tanto de energético quanto de introspetivo e tanto de moderno como de atemporal. Uma excelente banda sonora para dançar ao som de um frágil coração. Não vos disse ainda, mas deixo-vos com esta: é ela a mestre por trás de tudo (ainda que com uma mãozinha dos produtores Oscar Görres e KillaGraham aqui e acolá) – escreve, compõe, interpreta e produz. Kenya Grace é a mulher dos sete ofícios. Do not sleep on her.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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Muitos sentimentos… e muitas batidas.

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