40 Anos de Steve McQueen: Baladas pop para escapar ao real

Os primeiros segundos de “Bonny” são mais do que suficientes para atrair qualquer um para o mito em torno dos Prefab Sprout. Resume-se em menos de um minuto o estranho e irresistível magnetismo que o álbum mais celebrado do grupo, Steve McQueen (rebatizado Two Wheels Good nos EUA, numa tentativa de evitar ações judiciais), exerce sobre quem se depara com a sua magia: o sopro dos sintetizadores a arrancar um arranjo introdutório tão escasso e murmurante, quase como se a neblina se pudesse transformar em som, dando lugar a uma guitarra acústica abafada, mesmo antes dos ritmos militantes da bateria entrarem lentamente em ação. Foi assim a banda sonora do meu primeiro encontro com os britânicos, ainda sem conhecer a real magnitude do esplendor insuspeito que se desdobra ao longo da sua discografia. O que daí resulta é muitas vezes tão imediato e de fácil ressonância que se torna fácil esquecer a sua profundidade emocional. É o que mantém discreto todas as suas bases intactas, capturadas com tanta naturalidade, graças ao fio condutor das harmonias, à produção exuberante que as costuma enaltecer e à escrita quase litúrgica de Paddy McAloon, cujos golpes de génio perduram bem para além de cada escuta.

Não só um artefacto distintivo da década de 80 como um exemplo claro de música verdadeiramente intemporal, é fácil entender o porquê de Steve McQueen não ter envelhecido no sentido convencional da palavra — embora se possa argumentar que o contexto mais amplo dessa época artística também favorece esse estatuto duradouro. Tal como já tinha acontecido com 1984, 1985 foi um período extraordinariamente rico para a música pop como um todo, marcado por lançamentos ambiciosos e que definiram as carreiras de nomes como Tears for Fears (Songs From The Big Chair), New Order (Low-Life), Sade (Promise) e, em particular, Kate Bush – pode-se, inclusive, argumentar que esta última redefiniu o que a pop podia soar e representar na era moderna com Hounds of Love e não só. Quando posto lado-a-lado com todos estes casos de disrupção criativa, Steve McQueen consegue, ainda assim, ser igualmente ou até mais anómalo, apesar dos Prefab Sprout nunca se terem tornado uma presença constante nos tops fora do Reino Unido nem recebido a mesma abrangência na sua aclamação.

As origens da banda são igualmente peculiares. O vocalista Paddy McAloon frequentou um seminário católico e quase se tornou padre, antes de ter encontrado consolo juntamente com o irmão Martin (ambos filhos de imigrantes irlandeses a residir em Inglaterra) nas proezas musicais da segunda metade dos anos 70. O grupo que chegou a apelidar-se de Dick Diver Band acabou por adotar o igualmente incomum Prefab Sprout (uma escolha que bem pode ter dificultado as possibilidades de alcançar um sucesso comercial mais amplo), e viu em Hall & Oates, David Bowie e, acima de tudo, Steely Dan uma fonte de inspiração. Não há como contornar, aliás, o quanto a linguagem refinada e referencial de Donald Fagen, aliada à produção cristalina de Walter Becker com toques clarividentes de jazz, se tornou o molde ideal para o ethos artístico que os Prefab Sprout viriam a desenvolver. Com Wendy Smith e o baterista Neil Conti a bordo, Swoon marcou a estreia nos discos em 1984 e já carregava esta essência em abundância, tendo impressionado, entre muitos, o londrino Thomas Dolby, fã declarado da destacável “Don’t Sing”. O próprio tinha acabado de obter um êxito nacional com “She Blinded Me With Science”, tendo ficado rapidamente conotado com a vontade dissonante de inovar através dos seus fiéis sintetizadores. Com Dolby encarregue da produção de Steve McQueen, coube a Paddy abrir o seu cofre pessoal de material escrito, mas ainda não gravado (algumas das dezenas de canções remontam mesmo aos primórdios do grupo), na esperança de construir a sua própria obra-prima pop.

Agora que tanto uma versão acústica do disco como algumas das suas demos se encontram amplamente disponíveis, torna-se quase impossível ignorar o impacto que Dolby teve na reorganização de velhos hábitos presentes na sonoridade inicial dos Prefab Sprout. Steve McQueen não teria as mesmas qualidades transcendentes sem o seu tato apurado, ainda que o resultado final se expresse como fruto dos bens mútuos de McAloon e Dolby: o instinto para a escrita de canções do primeiro, e a amplitude sónica, quase cinemática, do segundo. A sua ambição faz-se sentir de imediato na anomalia de “Faron Young”, faixa que abre o álbum, apresentada de forma satírica do ponto de vista de alguém que despreza a música country. Invocando o cantor natural do Louisiana e fazendo referência à sua própria música “It’s Four In The Morning” no refrão, “Faron Young” vê-se dominada pelo twang das guitarras e pelos banjos fortemente processados, que provocam na segunda parte um efeito de dopamina em muito idêntico às transições arrojadas de “Horsin’ Around”. O mesmo grau de paródia estilística foi inicialmente aplicado a “Goodbye Lucille #1”, em tempos uma caricatura doo-wop convertida em lamento de um amor perdido, com os coros vocais de Wendy Smith a surgirem como sussurros de consolação antes de darem lugar aos clamores agonizantes e climáticos de McAloon. Mesmo quando se compara os primeiros rascunhos da já referida “Bonny” e a canção que acabou por surgir no disco, os instrumentais algo estéreis de outrora passam a ser cristalinos e voláteis, sabendo quando recuar e explodir em êxtase, à medida que o romantismo característico de Paddy McAloon desenha o percurso a seguir.

Contudo, o momento em que Dolby mais se assume como o Quincy Jones dos Prefab Sprout reside no maior êxito do álbum, “When Love Breaks Down”, injetando-a com pianos oníricos, linhas de baixo repletas de groove e os mesmos efeitos etéreos em tape loop que os 10cc popularizaram treze anos antes. É um pequeno revivalismo sónico que torna a faixa equiparável a “I’m Not In Love”, com um refrão tão impetuoso quanto as ondas de som o permitem e tão capaz quanto um coração partido consegue suportar – basta ouvir a respiração ofegante entre cada um dos refrões.

Sempre que McAloon tem o privilégio de liderar o campo auditivo, fá-lo com urgência confessional e passagens marcantes. A frase inicial de “Desire As” – “I’ve got six things on my mind, you’re no longer one of them” – cria uma das introduções mais impiedosas de qualquer disco do seu género, transmitindo tanto com tão pouco e detendo a atenção de qualquer um antes da metáfora central ser pintada. O mesmo pode ser aplicado a “Appetite”, onde McAloon suplica pela segurança de uma criança recém-nascida num mundo que não lhe dá as garantias de um futuro próspero. Por outro lado, “Moving the River” ostenta as mesmas pressões existencialistas, traduzindo-as em mantras surrealistas (“I’m turkey hungry, I’m chicken free!”). As letras, muitas vezes disfarçadas de desabafos amorosos, ganham igualmente a condição de despachos reflexivos da mente, orbitando livremente entre o espiritual e o cerebral enquanto os elementos circundantes nos guiam para junto dos portões do paraíso. Mesmo quando enfrenta a morte de cabeça erguida em “When the Angels” (mais especificamente, a perda trágica de Marvin Gaye, um ano antes do lançamento de Steve McQueen), McAloon transcende o luto para contemplar o legado duradouro dos que partem, quase como um anjo da guarda que se move entre os dois domínios e guia o caminho com uma humanidade cabal.

Falar de Steve McQueen e da genialidade dos Prefab Sprout é falar de conforto. Ao ouvir um disco desta magnitude, torna-se impossível não nos rendermos à liberdade e alívio emocionais que Paddy McAloon e companhia proporcionam, na forma como desmontam e reconstroem as crenças de cada um através da atmosfera que conseguem instalar. Anseia-se a lucidez de dias melhores sem que haja a garantia de uma resolução à vista, com cada faixa a servir como uma intervenção divina para recontar a angústia que provém de feridas mal saradas, mas também para aliviar o peso de uma vida repleta de altos e baixos. As repercussões que provoca são tão aveludadas quanto as de outro dos meus discos prediletos dessa mesma década (o indescritível Floating into the Night, de Julee Cruise), no que diz respeito à construção de uma calma devaneante com nuances soturnas. Porém, a sonoridade de Steve McQueen coloca-se mais seguramente ao lado de outros nomes basilares do sophisti-pop como The Blue Nile ou The Style Council.

Não haverá melhor prova da sua intemporalidade do que constatar a visão criativa de McAloon e Dolby a rejuvenescer nos hinos maximalistas dos The 1975, ou Caroline Polachek a enaltecer a herança que nos deixaram num podcast para a Crack Magazine. Para a principal dupla de visionários por detrás de Steve McQueen, no entanto, o sentimento de ter criado algo especial teve consequências inesperadas. Dolby acabou a trabalhar com Joni Mitchell e a ser recrutado pelo guitarrista Kevin Armstrong (que contribui em duas faixas do disco) para fazer parte da banda que tocou com David Bowie no agora icónico Live Aid, juntamente com Neil Conti. McAloon, por sua vez, continuou a mergulhar na sua vasta imaginação, retirando novas visões daquilo que os Prefab Sprout ainda poderiam ser dali em diante, para tentar polir e expandir a fórmula certeira de Steve McQueen até expoentes ainda mais ousados. Os seus caminhos cruzar-se-iam novamente ao longo dos cinco anos seguintes, reacendendo algumas das mesmas faíscas criativas no maior êxito da banda, “The King of Rock ‘N’ Roll”, e no subestimado Jordan: The Comedown (1990). Quatro décadas depois, o fascínio de Steve McQueen continua inalterado e sem paralelo à vista, sempre disposto a acolher quem encontre no seu cariz melancólico a escapatória ideal para os desalentos da realidade.

Nascido e criado no Porto, é recém-mestre em Ciências da Comunicação. Está a tirar um curso de curadoria musical e sempre procurou dividir o seu tempo entre as duas principais paixões: a música e o cinema. Já escreveu para a CONTRABANDA e trabalha atualmente com a Music and Riots, onde se desdobra entre o jornalismo musical e o trabalho de loja.

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