10 anos de Trabalho & Conhaque: A vida, afinal, ainda não presta

Em 2015, Tiago Gonçalves já estava farto de lhe perguntarem sempre a mesma merda: “Nerve, quando é que sai o álbum?”. Afinal, já tinham passado sete anos desde Eu Não Das Palavras Troco a Ordem (2008), álbum de estreia do rapper, poeta e produtor, que bem podemos afirmar (sem rodeios) como um dos melhores e mais importantes álbuns do hip-hop tuga (e da música portuguesa em geral) da década de 2000.

Durante esses sete anos, apesar de muitas participações em faixas de vários dos seus contemporâneos, de Capicua a Orelha Negra, poucas foram as pistas dadas do que seria o sucessor de Eu Não Das Palavras Troco a Ordem. Será que esse álbum existia mesmo? Ou será que o disco seria apenas uma das muitas vozes que Nerve alegava ouvir em “5 Mics” (“Porque eu oiço vozes e as vozes tornam-me lunático”)? De qualquer maneira, o próprio Nerve passou anos a jogar com a mitologia em torno do disco e de si mesmo. Quando – e segurem a respiração – “Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta & Ninguém Merece A Tua Confiança” foi publicado no final do mês de setembro de 2015 pela Mano a Mano, o destino de aclamação fanática já estava traçado por essa mesma máquina criadora de mitologias.

Apesar do lançamento de canções como “Cubo de Rubik” (2009) ou o EP Água do Bongo (2014), nenhum destes lançamentos se assemelha àquilo que Nerve apresenta em Trabalho & Conhaque. A pista mais próxima do segundo longa-duração do rapper oriundo de Constância, no Ribatejo, foi apresentada no conjunto de faixas que o próprio disponibilizou online aos fãs em 2014 na compilação Palha, Paus e Pérolas 2005-2012. Duas das malhas incluídas, “Inconcebível” e “Círculos”, foram concebidas a pensar em Trabalho & Conhaque, mas acabaram por ficar de fora do alinhamento do álbum. Estas duas canções apresentam algumas das componentes sonoras – mais experimentais e industriais – e temáticas líricas – devaneios esquizoides sobre a rotina, o capital, o trabalho – que são exploradas em toda a plenitude em Trabalho & Conhaque.

De acordo com o próprio, o conceito para Trabalho & Conhaque já existia na cabeça do Sacana Nervoso antes do lançamento de Eu Não Das Palavras Troco a Ordem, dado impressionante quando nos lembramos que, na altura da edição do seu álbum de estreia, Tiago Gonçalves tinha 18 anos e ainda estava no secundário. Durante os anos seguintes, até à saída de Trabalho & Conhaque em 2015, aconteceu a “vida” a Nerve. Foi para Lisboa estudar na Faculdade de Belas Artes, trabalhou e estudou ao mesmo tempo, e finalmente trabalhou só. Pelo meio, o seu tempo livre era dedicado a pensar nestes poemas (que surgiram em primeiro lugar), intercalado por momentos de insegurança e busca pela perfeição que só acrescentaram mística ao possível sucessor de Eu Não Das Palavras Troco a Ordem.

Depois de ter os poemas escritos, Nerve teve de se lançar à procura dos instrumentais certos para apresentar as suas reflexões e pensamentos. Encontrou uns quantos nas bibliotecas de Notwan, Keso e Pedro, O Mau (vulgo VULTO.), velhos conhecidos do universo alternativo do hip-hop tuga, e quando não conseguiu, decidiu ele próprio partir cascalho para os fazer. Nesse sentido, este longa-duração é um passo dado por Nerve em direção ao isolamento quase total da indústria que passou a ser a palavra de ordem da sua obra no pós-Trabalho & Conhaque. É o disco onde se assume, sem problemas, como um rapper de culto que é o rapper favorito do teu rapper favorito – talvez seja isso mesmo que o próprio assume em “Lenda”, a derradeira canção do álbum.

Contudo, apesar da abordagem mais isolada que Tiago Gonçalves adotou com a passagem do tempo – uma abordagem quase contrária ao ethos comunitário do hip-hop, diga-se –, há coisas que se mantiveram praticamente iguais. Se há algo que caracteriza a obra de Tiago Gonçalves enquanto rapper, é a sua capacidade de mudar muito sem mudar nada. Como Moisés Regalado assumiu no Rimas e Batidas em 2018, as noias que Nerve expôs em Eu Não Das Palavras Troco a Ordem, “apesar de mais paranoicas e menos depressivas” do que aquelas que retrata em Trabalho & Conhaque, já estavam presentes. O que mudou é como são apresentadas.

Enquanto que em Eu Não Das Palavras Troco a Ordem Nerve estas passaram por um filtro de super-heróis surrealistas embebidos em humor e ego trip autorreferencial e autodepreciativo (ao estilo de Aesop Rock), em Trabalho & Conhaque não há cá nada para ser escondido atrás de falinhas mansas ou refrões orelhudos. Neste longa-duração, Nerve abraça o niilismo introspetivo como mantra principal e monta um puzzle conceptual que reflete as “paranoias de um indivíduo normal que procura o equilíbrio entre o trabalho e o conhaque e fracassa nesse processo” (palavras do próprio). Para chegar a esse patamar, Nerve deixou para trás o boom bap que marcou o seu primeiro EP (Promoção Barata, de 2006) e primeiro álbum e assumiu experimentações assentes no industrial surrealista (a la El-P) e no horrorcore mais edgy (referências: Fuse, Eminem, Three 6 Mafia). Se no passado estas tinham sonoridades que Nerve tinha explorado em malhas como “A Semente do Mal” (de Eu Não Das Palavras Troco a Ordem), em Trabalho & Conhaque são a ordem do dia para a atmosfera escura e suburbana-degradante do álbum.

Na faixa de abertura “Cidade Perfeita”, entre sintetizadores macabros e um refrão onde Nerve rapidamente revela o seu tão característico flow mutável e variado, vemo-nos logo embebidos no universo negro do álbum e na sua temática principal: a alienação provocada num individuo pelo trabalho (“Com uma mão no lombo da secretária sobre a mesa / E a outra a assinar o contrato que vai salvar esta empresa”) e pelo mundo que o rodeia. Em “Pontapé de Boas-Vindas”, Nerve reflete sobre os seus camaradas que abandonaram o país em busca de melhores condições de vida – uma faixa com certeza inspirada pelo período da Troika que antecedeu o lançamento do álbum. Em “Trabalho”, uma das canções mais em destaque do disco, critica a forma como o trabalho já não liberta (no mesmo estilo retórico que David Graeber apresenta em Bullshit Jobs) e como este se transformou numa prisão para o comum mortal  (“Por favor, não me tire o posto / Não tenho fundos nem fôlego / Atire-me para o meu cubículo e eu juro que trabalho o dobro”) – incluindo para o próprio Nerve (“Tu não te esqueças: o teu cubículo não é o teu estúdio / Tu aqui és só mais um, para de te armar em músico”).

Barras como a de “Trabalho” demonstram um questionamento que permeia também a obra do artista. Onde está a linha entre Tiago Gonçalves, a pessoa que vive o dia-a-dia neste quotidiano macabro, e Nerve, o Sacana Nervoso que conversa consigo mesmo em diálogos mirabolantes? O próprio está autoconsciente dessas questões. Em “Monstro Social”, reflete: “Rimas sangram, escorrem pela cabeça / Enquanto o meu amigo imaginário, atormentado, me escreve as letras”, enquanto que “’Subtítulo”, faixa onde reflete sobre o seu papel na cultura do hip-hop, indica: “Se estes poemas não são meus, devem ser de Deus e do Diabo juntos”. Contudo, se em Eu Não Das Palavras Troco a Ordem era mais fácil delinear a linha entre Tiago Gonçalves e a persona exagerada de Nerve, Trabalho & Conhaque torna a tarefa muitíssimo complicada. A autofagia neurótica e niilista presente na (suposta) teatralidade do alter-ego poético de Tiago Gonçalves em Trabalho & Conhaque confere, como Francisco Noronha refletiu há uma década no Rimas e Batidas, um tom mais sério, tornando mais complexa a tarefa de discernir onde está essa linha para nós, ouvintes.

Quando surge uma malha como “Surpresa, Cabrão” recheada por um tom humorístico (o próprio ironiza na introdução ao declarar que, “Tirando esta, todas as faixas do álbum são a brincar”), questionamos: será que este é o verdadeiro Nerve a comunicar connosco? Um nerd que curte bué de ficção científica e que, por acaso, é um dos melhores rappers e poetas da tuga? Ou será que o verdadeiro Nerve é aquele que em “Nós e Laços” (o instrumental mais jazzístico de Trabalho e Conhaque) e “Gainsbourg”, à imagem de faixas do seu passado como “Cabras” (sem dúvida, a letra mais nojenta e asquerosa da sua discografia) ou “Checka-me”, objetifica a mulher de tal forma que a despersonaliza totalmente? Nem no meio de uma das mais ricas críticas anticapitalistas da história do hip-hop em Portugal há maneira de escapar à misoginia do rap cantado em português. Contudo, o próprio Nerve parece ter consciência disso. Em “Conhaque”, penúltima canção do álbum, assume: “Por esta altura é, ou devia ser, já sabido / Que não estou mesmo a tentar ser construtivo ou educativo com isto”. Logo de seguida, questiona: “Será que hoje devo encarnar um complexado de orgulho ferido ou um megalomaníaco de nariz endeusado?”.

Porém, uma década depois, continua a ser complicado descobrir onde se situam as linhas entre a realidade e a ficção do universo de Nerve. O único projeto que Tiago Gonçalves publicou a solo após Trabalho & Conhaque, o EP Auto-Sabotagem de 2018, delineou o próximo capítulo no seu processo de se fechar do mundo enquanto “criador” e, mesmo assim, o ser capaz de nos mergulhar “no mundo fascinante que é o interior da sua cabeça (ou o pouco que sai cá para fora e está apto para consumo)”, como assumiu Diogo Pereira a escrever sobre o curta-duração no ReB. Se Trabalho & Conhaque foi a prisão onde Nerve se viu colocado pelo mundo, então Auto-Sabotagem é o som do além, do purgatório onde caiu pelas suas ações neste mundo doentio. Eis a questão: será Nerve o verdadeiro doente ou será o mundo a verdadeira doença que nos contamina a todos?

Não há dúvidas de que Trabalho & Conhaque cimentou em definitivo o legado de Nerve no hip-hop português. Se o impacto do rapper no underground português já se entrevia desde os seus tempos na Matarroa e em Holograma, os ecos das experimentações de Trabalho & Conhaque fizeram-se sentir com mais proeminência ao longo da última década. Da parte de Slow J, que chamou Nerve para um dos melhores versos de The Art of Slowing Down (em “Às Vezes”), a ensemblu, a influência e admiração por Nerve é óbvia e sentida.

Mais que um rapper, um poeta, ou um produtor, Nerve é um artista em toda a sua dimensão, um louco que encontrou na sua música uma forma de transmitir a sua loucura, permitindo que os esquizoides e esquisitóides nela se revejam. Apesar de já não conseguir escutar Trabalho & Conhaque com a reverência pessoal de há uns anos (talvez porque estou menos deprimido), a reverência musical ainda se encontra presente sempre que escuto o álbum. É um dos melhores discos de hip-hop e da música portuguesa da década de 2010 e é, sem dúvida, a obra-prima de Nerve.

Além disso, os devaneios cantados por Tiago Gonçalves no álbum revelam-se ainda mais urgentes em 2025 do que em 2015. As suas temáticas de alienação só se tornaram mais presentes com o passar destes dez anos no dia-a-dia de todos nós – ou pelo menos, de quem tem consciência delas. Se vivemos em tempos góticos e niilistas, então os monstros apresentados por Nerve em Trabalho & Conhaque, sejam estes os mais imaginados (dentro das nossas cabeças) ou os mais reais (o capitalismo, o genocídio, os bullshit jobs, a ameaça nuclear, o fim do contrato social prometido pelo neoliberalismo e pelas democracias liberais), são aqueles que assombram o nosso quotidiano.

Se o objetivo de Nerve era representar as noias de um gajo normal que se vê constantemente derrotado pelo quotidiano que o rodeia, há que lhe dar os parabéns. Dez anos mais tarde, esse futuro ausente não se fica apenas pelas perturbações da mente; é também a realidade do dia-a-dia de tantos. E será que é por aí que ficamos? Ou será que conseguimos arranjar formas da vida efetivamente prestar?

“Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta & Ninguém Merece A Tua Confiança” será editado em vinil pela primeira vez em breve.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Um clássico do hip-hop rimado em português.

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