“O Trabalho da Casa é uma verdadeira montra da criatividade que existe em Braga”. É assim que Filipe Palas, músico fundador de bandas como os Smix Smox Smux ou Máquina del Amor e cara bem conhecida da cena musical bracarense, se refere à iniciativa Trabalho da Casa, um dos programas de residência do gnration, um dos mais importantes espaços culturais da cidade.Para Palas, como é carinhosamente conhecido pelos seus camaradas, o Trabalho da Casa é uma “ferramenta essencial para o processo artístico da cidade”, colocando à disposição dos músicos bracarenses “um estúdio de gravação e uma sala de espetáculos” onde estes podem dar forma às suas ideias.
Esse é um dos grandes objetivos do Trabalho da Casa desde a sua criação há dez anos. Para Luís Fernandes, diretor artístico do gnration desde 2014 (e músico que conhecemos da cena experimental portuguesa e de bandas como os saudosos peixe:avião), o Trabalho da Casa pretende tirar os músicos bracarenses da sua “zona de conforto” e oferecer-lhes um espaço de trabalho profissional no qual possam ser “espicaçados para trabalhar ideias novas e, depois, apresentá-las publicamente”. É esse o culminar de cada Trabalho da Casa: um concerto no gnration.
Ao início, o Trabalho da Casa era para ser um programa de residência multidisciplinar. Contudo, com o tempo, tornou-se numa residência particularmente dedicada ao cenário alternativo bracarense. “A problemática inicial passou por entender como uma estrutura como a nossa, que tem a missão de trabalhar com artistas locais, podia apoiar esses artistas”, recorda Luís Fernandes. A conclusão a que chegaram a partir dessa reflexão? “Se não oferecermos este tipo de apoio, mais ninguém o fará”.
Em 2015, decorreram as primeiras duas edições do Trabalho da Casa. O primeiro espetáculo construído na residência foi o de Gonçalo Alvarez (a assinar apenas como Gonçalo), baixista dos “locais” Long Way to Alaska, que mais tarde assinaria um registo a solo (Boavista, 2017) pela Lovers & Lollypops. E o segundo? Os Ermo. O resultado dessa passagem de António Costa e Bernardo Barbosa pelo estúdio de Budda Guedes foi o aclamado Lo-fi Moda (2017), influente disco no universo da electropop portuguesa que valeria ao duo uma nomeação para um Globo de Ouro.
“Arrisco a afirmar que devem ter sido feitos, no total, uns 20 discos ao abrigo do Trabalho da casa”, afirma Luís Fernandes. “Numa cidade com a dimensão de Braga, isso é relevante”, conclui. Pelo Trabalho da Casa, já passaram projetos tão distintos como a indietronica dos Grandfather’s House, o horrorcore de Ângela Polícia, o stoner rock dos Travo ou o pós-punk gótico dos semivitae – entre outros tantos. Estes projetos representam as mais variadas facetas da cena musical alternativa bracarense, e encontraram na iniciativa do Trabalho da Casa um espaço onde puderam fazer coisas acontecer. “Existe uma geração muito apoiada ao abrigo desta iniciativa”, afirma Luís Fernandes.
Para Tiago Sampaio, outrora membro dos Grandfather’s House e que, a solo, também já pôde usufruir do programa Trabalho da Casa com o seu projeto St. James Park, a iniciativa conferiu-lhe um espaço “físico e mental” onde conseguiu “desenvolver material novo”. “Estar em residência, sem horários ou rotinas do dia a dia, oferece sempre uma margem maior e confortável para criar”, assume o músico bracarense.
Este é um sentimento partilhado por Gonçalo Ferreira, membro dos Travo e um dos principais cabecilhas dos Monstro, que editaram no final de novembro o belíssimo disco de estreia Unborn Love, e por José Rios, membro do duo semivitae, que lançaram este ano Canções de Danação, o seu segundo álbum.
Para o primeiro, o apoio do Trabalho da Casa foi crucial para a fase pós-pandemia dos Travo, altura em que o orçamento da banda “estava curto por falta de concertos”, e para a banda chegar onde está hoje (lembrete que este ano os Travo tocaram numa KEXP Session). Para o segundo, o Trabalho da Casa ofereceu a oportunidade para os semivitae trabalharem no disco “com maior profissionalismo, ajudando-nos a conseguir fazer com que cada faixa do álbum cumprisse o seu potencial máximo”. Tanto Tiago como Gonçalo, José e Filipe Palas relatam as aprendizagens que retiraram das horas passadas a gravar com Budda Guedes no seu estúdio, assim como da experiência de pensar um espetáculo em concreto para uma sala. “São aprendizagens que vou acumulando e que tornam cada projeto mais sólido”, indica Gonçalo.

Uma das grandes vantagens deste projeto, indica Luís, é a possibilidade dos músicos usufruírem de um “estúdio de gravação profissional sem custos”, além dum orçamento “confortável” para trabalharem (a iniciativa conta com o apoio, à boa moda portuguesa, do Super Bock Group). Como relatou Hugo Geada numa reportagem para a Comunidade Cultura e Arte, o “acesso” a “espaços de ensaio” é cada vez menos acessível a jovens músicos “que ainda não conseguiram criar uma forma sustentável para sobreviverem”. Quando se junta esse fator ao aumento do “preço das rendas, de bens essenciais e da energia”, iniciativas de apoio à produção artística como o Trabalho da Casa podem ser cruciais para a concretização de projetos independentes.
Contudo, Luís Fernandes entende o Trabalho da Casa não como uma solução para esse problema, mas como um penso rápido. “Este programa é circunscrito a um período temporal curto, não é? Normalmente, as bandas ensaiam uma semana aqui no gnration”, indica o diretor artístico do espaço cultural bracarense. “É importante refletir como é que um município consegue dar meios estruturais para que artistas possam levar a cabo os seus processos de criação”, relata Luís. Se o Trabalho da Casa nasceu desse ímpeto no passado, qual o seu futuro? Em 2026, haverá mais residências. Para já, está confirmado o regresso de Tiago Sampaio ao gnration, desta vez acompanhado pelo saxofonista João Mortágua. Os restantes Trabalho da Casa de 2026 serão anunciados em breve.
Para Luís Fernandes, o futuro passa pelo aprimorar da missão de “sensibilidade” do gnration em olhar para aquilo que está a acontecer na cidade e identificar projetos e músicos que possam relacionar-se com a programação do espaço. Nesse aprimorar, estão incluídos vários desejos. O de receber “mais propostas de músicos que quiserem sair da sua zona de conforto” – há o desejo de evitar repetir artistas – e o de conseguir melhorar o apoio conferido a projetos para que estes possam também singrar fora de Braga.
“É difícil que as bandas consigam furar”, refere Luís, acrescentando que este problema é sistémico. Há cada vez menos sítios onde é permitido fazer barulho, cada vez menos buracos onde se consegue tocar. Além disso, é cada vez mais complicado chegar a um público que não seja só a família musical bracarense. As redes sociais e as plataformas de streaming não ajudam. O macrocefalismo no qual assenta o que resta do ecossistema do jornalismo musical em Portugal também não. “Pode tudo correr bem, mas depois a dura realidade do dia-a-dia impede que as bandas saiam de Braga”, afirma o diretor artístico do grnation que, desde 2023, é também diretor artístico da faz cultura, a Empresa Municipal de Cultura de Braga.
Apesar dessas dificuldades, o veredito sobre o Trabalho da Casa, após dez anos de existência, é que é um caso de sucesso que não pode ser ignorado dentro do panorama artístico português. Como conclui Filipe Palas, é uma iniciativa que “contribui para o crescimento, para a criatividade” de cada músico que por ele passa. “E isso é ótimo”, afirma Luís. Com toda a razão.

