A força gravitacional dos Sweet Violence

Viver numa cidade com uma programação tão persistentemente boa como Braga é um privilégio. É um absurdo o quão fácil é assistir a concertos de excelência por valores que mal chegam para pagar um cocktail na Sé. Entre o Theatro Circo e o gnration, normalizou-se assistir a artistas de classe mundial, estrangeiros e nacionais, a tocar para salas cheias por bilhetes que custam menos de dez euros. Paguei 7,50€ para ver Bonnie “Prince” Billy num domingo à tarde. Roça o surreal. Mas a verdadeira força está na consistência: na confiança cega de que, aconteça o que acontecer, valerá sempre a pena atravessar aquelas portas. Eu acho que nunca fui a um mau concerto no gnration.

No dia 12 de Dezembro, a noite estava fria e a blackbox do gnration estava completamente esgotada para receber três homens que sobem ao palco carregados de aura, presença e uma eletricidade difícil de nomear. Sweet Violence junta três craques maiores do que qualquer rótulo: Vítor Rua, cofundador dos GNR e um dos mestres dos Telectu, explorador incansável da música experimental e de tudo o que acontece nas margens, um Músico com M grande. O trabalho dele a solo tinha-me passado despercebido até fazer a minha pesquisa pré-concerto, mas não vai passar mais. Tó Trips dispensa introduções e só quem vive debaixo de uma pedra é que precisa de ouvir dos feitos deste senhor. Para lá da técnica irrepreensível, carrega um sentido estético raro, um estilo que se estende do som à forma como ocupa o palco. No palco apresenta-se sempre de perna cruzada, com a guitarra por cima da perna a tocar de forma sofrida e sempre, sempre, como se este instrumento fosse uma parte vital do seu corpo. A fechar o triângulo está Luís San Payo, baterista com um percurso que atravessa nomes como Rádio Macau e Pop Dell’Arte, entre outras bandas igualmente “desconhecidas”.

Mal entraram em palco, deu para perceber que aquele concerto não ia obedecer a mapas nem a destinos claros. Nada de cantigas nem de estruturas reconhecíveis, nada que se pudesse agarrar com facilidade. O que se desenrolou ao longo de mais de uma hora foi um corpo sonoro em constante mutação, onde cada gesto requeria uma escuta atenta. A guitarra de Vítor Rua assumia o papel de força gravitacional: não liderava no sentido clássico, mas era ela que puxava os fios invisíveis que mantinham a música coesa mesmo quando tudo parecia à beira do colapso. Não havia um elemento definitivo, mas havia uma direção sentida e essa direção vinha quase sempre das suas cordas.

Fotografia: Hugo Sousa
Fotografia: Hugo Sousa

As texturas multiplicavam-se em camadas alimentadas por um ruído de fundo persistente, construído a partir de soundpads e de um sintetizador que funcionavam como matéria atmosférica da música. Sobre esse terreno instável surgiam imagens sonoras que oscilavam entre o orgânico e o cósmico: sons que lembravam animais, plantas e matéria viva a crescer de forma descontrolada, mas sempre projetados para fora da Terra.

O concerto elevava-nos para um plano onde era fácil perdermo-nos. Como acontece tantas vezes na improvisação, a mente começa a vaguear pelas notas, pelo espaço e pelos pensamentos. Ainda assim, os Sweet Violence puxavam-nos de volta, pousando-nos na sua própria lua. Esse momento de convergência surgia quando os três se alinhavam numa mesma tensão, guiados pela guitarra de Vítor Rua, enquanto Tó Trips habitava o espaço intermédio cujo dedilhar funcionava como ruído estrutural, criando deixas subtis que empurravam a música para pequenos climaxes, nunca explosivos, mas sempre capazes de nos fazer viajar.

A bateria de Luís San Payo foi talvez o elemento mais imprevisível e fascinante de todo o concerto. Longe de impor ordem, parecia fazer questão de a evitar. Durante grande parte do tempo, o som construiu-se lentamente, como se estivesse sempre à procura de um refrão que nunca chegava e, quando algo parecido surgia, a bateria tratava de o desestabilizar. Ouviram-se batidas sincopadas, arritmias abruptas e silêncios estranhos. Por vezes nem sequer se tocavam as peles, apenas os metais que bordam cada elemento da bateria, provocando uma ausência de conforto. Só nos minutos finais apareceu algo próximo de um ritmo “tradicional”, um tempo definido que tornava a música quase ligeira ao ouvido. Mas exatamente quando os ouvidos se preparavam para se acomodar a essa familiaridade, o concerto terminou, sem resolução e sem chão.

O concerto começou e acabou sem tretas nem rodeios. Os músicos entraram em palco e foram diretamente ao que interessa: tocar. Não houve discursos ou qualquer tentativa de contextualização porque ali nada disso fazia falta. O que ficou foi a sensação de sair sem saber exatamente onde se esteve, mas com a certeza absoluta de que se passou por um lugar especial.

Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo