Desde que “Sunglasses” dos Black Country, New Road foi lançada em 2019, ficou-me qualquer coisa presa na garganta. Aquele single desbloqueou algo em mim, e imagino que em toda a gente que o ouviu com atenção. Na altura, não conhecia muita gente que tivesse tanto bom gosto como eu e quando entrei na universidade fiz um amigo que quase chegava lá. Lembro-me perfeitamente de estarmos os dois em chamada no Discord à espera que For the first time fosse publicado no início de 2021. Desde então, poucos discos mexeram comigo da mesma maneira. De certa forma, ainda bem. Acho que estava um bocado deprimido (estávamos de quarentena).
Agora procuro música que não me deprima tanto. Infelizmente, sou muito suscetível às vibrações que me rodeiam. Gostaria de conseguir ouvir um álbum semelhante a For the first time, mas que em vez de me deixar triste, me fizesse sentir feliz. O disco que os BC,NR fizeram a seguir a For the first time – o último da banda ainda liderada por Isaac Wood – também não respondeu a essa minha procura. Ants From Up There, publicado no início de 2022, também é um álbum triste.
Há umas semanas, consegui encontrar um álbum que responde às minhas preces. Esse meu amigo também fã dos BC,NR mostrou-me uma banda chamada Touchdown Jesus (que descobriu graças ao nosso carequinha da internet, claro). A missão, finalmente, está cumprida.
Os Touchdown Jesus são de Cincinnati, Ohio. São Miller Kaye (guitarra, voz, letras), Jack DePrato (guitarra), Lee Sullivan (saxofone, baixo, teclas), e Ethan Kimberly (bateria, voz). Só têm dois curta-duração cá fora, mas já me deixaram com aquela comichão de quem está à espera do que vem aí. It’s All Feast Or Famine, o segundo desses EPs, publicado em abril pela Kaleidoscopic Records, aliviou um pouco dessa comichão, mas ainda estou com muita fome.
A sonoridade de It’s All Feast Or Famine grita black midi logo à primeira escuta, sendo que a banda exibe com orgulho esta influência, colocando os black midi como tag na página do primeiro EP da banda (You Must Not Know Who You Are To Them) no Bandcamp. Nestas cinco canções, escutam-se muitas piscadelas de olho ao rock mais progressivo sem vergonha alguma. Logo a abrir o curta-duração, “I Love My Wife” apresenta todos os ingredientes que fizeram render-me aos Touchdown Jesus: letras despretensiosas cantadas com uma garra que me faz berrar no meu carro e no chuveiro; uma voz com claras influências de Geordie Greep e de um Les Claypool (dos Primus); um instrumental cheio de paragens inesperadas e reinícios galopantes. Na minha humilde opinião, é um clássico instantâneo de math rock.
Passamos então para a faixa seguinte, “Hairdryer”, onde os ritmos começam por acalmar, com o som discreto de umas maracas a marcar o compasso, mas é só uma falsa sensação de sossego. O tema rapidamente regressa ao seu registo saltitante, e desta vez ouvimos… o vocalista dos Squid? Podia ser, mas não é. É Ethan Kimberly, que, tal como Ollie Judge, assume a dupla função de baterista e vocalista. E digo já: de longe, gosto mais da bateria de Ethan.
As letras, por sua vez, ganham outra densidade. A ironia e a parvoíce quase provocadora dos primeiros momentos de “I Love My Wife” cedem espaço a algo mais introspectivo e, curiosamente, não me sinto nem um pouco desiludido com essa mudança de tom. Em “Hairdryer”, Ethan canta sobre a sensação de estar perdido, sufocado, incapaz de lidar com emoções e experiências que nunca tiveram lugar para existir. “There was never any room at all / For the feelings you erased” reforça essa ideia de repressão emocional, de não haver espaço, nem dentro nem fora, para processar o que se sente. A frase “hanging out to dry” repete-se como um lamento, intensificando o sentimento de abandono e vulnerabilidade, como algo deixado ao acaso, sem cuidado. E quando ouvimos “Stock image representations / Stay in your mind much better now”, é impossível não pensar em como a memória, com o tempo, vai substituindo o real pelo superficial, como se fosse mais fácil guardar imagens de um catálogo do que lidar com o peso do que realmente aconteceu.
“Jump Scare” é a faixa que menos me convence neste EP. Não é por ser má, mas simplesmente efetua o oposto do que “Hairdryer” consegue. Aqui, parece-me que Ethan, outra vez na voz, se deixa levar demasiado pelo seu lado emo, quando o instrumental pedia precisamente o contrário: algo que apagasse um bocado esse registo mais dramático. Não tenho nada contra emo (longe disso), mas nesta faixa não era bem isso que me apetecia ouvir. Além disso, arrisco dizer que é o tema menos dinâmico do conjunto, com menos voltas e reviravoltas do que as restantes malhas do EP.
Contudo, nem tudo são queixas. Se há coisa em que “Jump Scare” brilha, é na bateria, onde são disparados uns fills fantásticos. E, pensando bem, a faixa está bem posicionada no alinhamento do EP: mesmo a meio, pronta a preparar o terreno para o regresso à galopada mais progressiva que se segue.
O universo do rock progressivo é vasto, e a verdade é que, hoje em dia, torna-se cada vez mais difícil para uma banda realmente destacar-se, ainda mais com a vaga de projetos que nasceu nas margens de Windmill, sala britânica de concertos muito ligada à história de projetos como os BC,NR, os black midi ou os Squid. Nos seus primórdios, estas eram todas bandas muito influenciadas pelas velhas lendas do rock progressivo, com os King Crimson no topo da lista de influências.
Mas há um ingrediente “secreto” que nunca poderia ficar de fora desta conversa: os Slint. Já se passaram quase 25 anos desde o lançamento de Spiderland e a sombra do álbum que se tornou influente em estilos tão díspares como o pós-rock, o pós-hardcore e o emo dos anos 90, mantém-se viva em algumas destas bandas contemporâneas ruidosas. Os próprios Black Country, New Road, a dado momento, admitiam meio ironicamente serem a “segunda melhor banda de covers de Slint” do mundo (a melhor, na altura, seriam os black midi).
Agora, será que faz sentido ouvir um grupo que se inspira tão descaradamente em bandas que, por sua vez, já se inspiraram descaradamente noutra? No caso dos Touchdown Jesus, diria que sim, e justamente porque conseguem trazer algo diferente para cima da mesa. Há uma mudança na proposta que torna a audição não só válida, como refrescante. Isso nota-se na segunda metade de It’s All Feast Or Famine, onde a sonoridade da banda adquire outros contornos e onde sentimos mesmo que a banda quer mais do que apenas seguir o math rock moderno.
Em “Snake Oil” regressamos ao gastalho que tanto me faz vibrar. Aqui entra Miller Kaye a dividir os vocais com Ethan e, de repente, o tom muda. E desta vez, estou a ouvir… Mike Patton? Quem me dera, mas não é, porque seria bem giro ouvir o Patton a cantar num som de math rock. Ainda assim, o que temos chega bem porque Miller, com o seu estilo mais teatral e versátil, consegue dar ao EP aquele toque inesperado que nos faz esquecer (pelo menos por uns minutos) de onde vêm as influências e só aproveitar a autenticidade do que estamos a ouvir.
No entanto, é em “New Swang” que o meu coração explode de emoção. Mal começa a intro, sai-me logo aquele inevitável: “Foda-se, isto está tight pra caralho.” A primeira parte da faixa é uma explosão instrumental: todos os elementos no sítio certo, numa harmonia caótica que rebenta com uma graciosidade de realeza. A segunda parte, por contraste, é o respirar que a música precisa, elevando os vocais de Miller a um clímax lindo.
Em “New Swang”, voltamos às temáticas que já tínhamos sentido em “Hairdryer”. “You say, you say, wash it away / Wash it-a wash it-a wash it away” soa como um mantra, uma tentativa de limpeza, de purificação. Já “You take away all that you own / But keep the things that you want most / It breaks away all” traz de volta aquela luta interna entre largar tudo e ainda assim tentar segurar o que nos é essencial, mesmo que, no fim, tudo acabe por se desfazer. As imagens do cheiro, do som, do rosto como ferrugem (“Your face, like rust, was enough to compel”) carregam uma memória corroída, marcada pela passagem do tempo e pelo sofrimento.
Na transição para a segunda metade da faixa, a banda leva-nos para um lado extremamente vulnerável. Os saxofones, as guitarras suaves e a bateria fazem-nos viajar. Quando pensamos que a viagem vai ficar por aí, a intensidade volta a subir, e a voz doce de Kaye transforma-se num grito poderoso, encerrando a música com um murro no estômago.
It’s All Feast Or Famine não é um EP perfeito. Há momentos onde se nota a inexperiência de uma banda que ainda está a descobrir quem é, e onde algumas faixas podiam arriscar mais ou evitar cair em certos vícios do género. Todavia, há algo nas malhas do curta-duração que me prende, e me prende muito. O facto de se tratar de uma banda tão prematura, com tão pouco tempo de estrada, a fazer música que já soa tão cativante e cheia de vontade de crescer é um dos principais fatores. Há frescura nestes temas, há entrega, e há um potencial a efervescer.
Embora por vezes apostem um pouco demasiado em estruturas lineares, algo que não é tão comum noutras bandas do mesmo género, acabam por funcionar muito bem, com cada secção a servir para elevar, ou pelo menos manter, a energia do que veio antes. Nisso, os Touchdown Jesus mostram já ter alguma mestria. Os maiores destaques, para mim, vão claramente para os vocais de Miller Kaye, que já soam muito bem por si só, mas que ganham outra dimensão quando se entrelaçam com os de Ethan. É a dinâmica entre os dois que acaba por dar personalidade ao conjunto. E a verdade é que, mesmo com os tropeços naturais de uma banda jovem, a musicalidade impressiona, e a produção do EP está muito acima do que se poderia esperar para um projeto deste calibre.
O vazio que havia está cada vez mais a preencher-se. Se For the first time me marcou por abrir feridas, os Touchdown Jesus deixam a promessa de um penso capaz de finalmente as poder sarar.