NEVER ENOUGH: a receita comunitária dos Turnstile

Em NEVER ENOUGH, os Turnstile tentam entender o seu sucesso. Para eles, não existe uma única resposta a todas as suas dúvidas existenciais, mas Brendan Yates e companhia tentam aproximar-se dela o máximo possível no seu novo álbum, editado no início de junho pela Roadrunner.

Depois de lançarem GLOW ON (2021) no momento certo – em que as bandas de rock “fixes” e populares das últimas três décadas estavam (e estão) criativamente acabadas, em hiato, ou a lidar com tumultos pessoais -, os Turnstile atingiram um patamar de sucesso nunca antes alcançado por uma banda de hardcore. E apesar disso, as dúvidas existenciais que marcam a sua música persistem. Em “NEVER ENOUGH”, canção que abre o álbum, Brendan Yates canta: “(“In the right place / At the right time / And still you sink into the floor”). Apesar do sucesso dos Turnstile, as inseguranças ainda os fazem sucumbir às suas ansiedades. Para lidarem com estas, fazem o que sempre fizeram: desafiam-se a fazer música em conjunto para depois levarem-na à comunhão com o seu público.

Antes do sucesso, já os Turnstile tinham muita pedalada. Começaram a tocar juntos em 2010, e todos os membros da banda fizeram – e fazem – parte de outras bandas celebradas da cena de hardcore de Baltimore (os Angel Du$t, os Trapped Under Ice), cidade de onde são oriundos os Turnstile e que continua a ser fonte de inspiração para a chama que alimenta o quinteto. Brendan Yates (voz, letra), Daniel Fang (bateria, percussão), Franz Lyons (baixo), Pat McCrory (guitarra) e Meg Mills (guitarra) são mais do que uma banda – são amigos que respiram música em conjunto. (De notar, já agora, que Meg Mills só entrou após ter substituído o membro original Brady Ebert, o “rei” dos riffs dos Turnstile até GLOW ON e que abandonou o barco em 2022).

Não é suposto uma banda como os Turnstile ser tão popular. Não faz grande sentido. Não é normal que uma banda com raízes na cultura do hardcore punk seja nomeada para três Grammys. Contudo, talvez seja por isso mesmo que saiu aos Turnstile a “sorte grande”. Porque antes do lançamento de GLOW ON, já os Turnstile eram uma grande banda com uma legião de fãs acérrima (e uma legião de críticos acérrimos também). Com GLOW ON, os Turnstile conseguiram ampliar essa legião de fãs, mantendo-se fiéis – tanto quanto possível – à cultura que os viu crescer e que faz parte da sua génese enquanto indivíduos. E o álbum? Esse é estupendo. GLOW ON não só é um dos discos mais importantes de rock dos últimos anos como um dos grandes álbuns da história do hardcore. É o disco onde os Turnstile cumpriram as ambições prometidas em Time & Space (2018): conseguirem combinar a sua devoção pela velocidade e riffs pesadões dos Minor Threat, Bad Brains ou Hüsker Dü com uma sensibilidade pop influenciada pelo R&B e pela new wave dos anos 80.

No entanto, se os Turnstile estavam no sítio certo à hora certa para o lançamento de GLOW ON, onde estão agora? Qual o próximo passo para a banda? Ao tornarem-se numa das bandas de guitarra mais populares dos Estados Unidos, os Turnstile já desafiaram todas as convenções e regras possíveis para o hardcore. Com GLOW ON, os Turnstile tornaram-se na banda de hardcore mais popular de sempre. Porém, nessa transformação, será que deixaram de ser uma banda de hardcore?

Os Turnstile, por muito que possam ser acusados de serem uns “vendidos” pelos puristas do hardcore, não mudaram assim tanto desde Pressure to Succeed (2011) ou Step 2 Rhythm (2013). Em “Pressure to Succeed”, Brendan Yates já cantava sobre como a dúvida o cegava (“Self-doubt blinds me”) e como isso era um impedimento na sua ambição de desejar algo mais para si e para os seus (“I shot down my own dreams to avoid the pressure to succeed”). As inseguranças de NEVER ENOUGH, portanto, já estavam a ser cantadas com tons emocionais desde os primeiros lançamentos dos Turnstile. “Sempre gostei de bandas que conseguiam combinar a agressão do hardcore com uma abordagem humana ao que sentem”, afirmou Brendan Yates em entrevista à newsletter Anti-Matter no início de 2024. Esse é também o modus operandi dos Turnstile.

Porém, os Turnstile mudaram. É impossível uma banda não mudar quando, em menos de dez anos, passam de tocar na República da Música para serem cabeças de cartaz de festivais como o Primavera Sound ou o Vodafone Paredes de Coura? De passarem de tocar nas caves de Baltimore para encherem arenas nos Estados Unidos? Diria que não.

NEVER ENOUGH é um disco estranho. Não em sonoridade, mas no que pretende ser. Desde o primeiro dia que ouvi o álbum, tenho questionado os meus sentimentos. Gosto ou não? Gosto muito? Quero ouvir este disco outra vez? Concluo que sim, gosto, mas que não é um álbum que prefira ouvir em comparação com GLOW ON. São discos demasiado semelhantes. Em NEVER ENOUGH, há muitos momentos que ecoam o seu predecessor. São discos que começam de maneira muito semelhante – as semelhanças entre “MYSTERY” e “NEVER ENOUGH” são fáceis de notar – e que caminham pelas mesmas influências e sonoridades. Os truques são os mesmos.

Por consequência, é impossível desassociar NEVER ENOUGH de GLOW ON. Funcionam como discos irmãos e ambos demonstram a seguinte ideia: acima de tudo, os Turnstile são uma banda de rock – e não tanto uma banda de hardcore – oriunda de Baltimore com capacidade de tanto fazerem malhas fodidas de hardcore como malhas pop com (algum) coração. Os Turnstile pretendem, com a conjugação dessas duas ideias, ser uma banda que transporta a energia de comunidade por onde quer que passem.

O único problema desta ideia altruísta? NEVER ENOUGH não é um disco ao nível de GLOW ON nem sequer ao nível de Time & Space ou Nonstop Feeling (2016). É um disco bonzito que gera mais interesse por ser o sucessor de GLOW ON do que por ser um disco de hardcore – hardcore esse que é ainda mais “limpinho” e dançável que o de GLOW ON (alguém me disse recentemente ao ouvir este disco que não sabia que o nu-metal tinha voltado e entendo essa opinião). Se GLOW ON e NEVER ENOUGH são discos irmãos, o segundo é o irmão mais pop. Nada de errado com isso, a não ser que seja precisamente esse o calcanhar de Aquiles de NEVER ENOUGH. Bem, é.

É através das inseguranças que cantam em NEVER ENOUGH que os Turnstile pretendem alargar – ainda mais – a comunidade em torno da banda. Essas inseguranças surgem muitas vezes como parte dos momentos explosivos das faixas, prontas para gerarem catarse partilhada nos seus concertos ao vivo. Isto acontece tanto nas malhas pesadonas, como “SOLE”, “DULL” ou “BIRDS”, como nas canções mais viradas para a new wave, como “I CARE” ou “SEEIN’ STARS” (rip-off descomunal de uma canção dos Police), ou ainda nas faixas mais experimentais do álbum, como “LIGHT DESIGN” (quasi-shoegaze) ou “LOOK OUT FOR ME” (influenciada pela música house).

Na realidade, o que sinto sobre as canções de NEVER ENOUGH é que estas parecem construídas para fazerem parte do espetáculo ao vivo dos Turnstile. Já tinha notado isso quando as ouvi na gravação do concerto grátis que os Turnstile deram em Baltimore dias antes do lançamento do álbum, e quando as ouvi ao vivo no Parque da Cidade fiquei com mais certezas. Este é um disco feito para ser tocado ao vivo, para ser sentido lado a lado com milhares de pessoas num momento de comunhão imensa pela emoção. Se já achava que a versão definitiva de GLOW ON era a do concerto de apresentação ao vivo que a plataforma hate5six gravou, agora tenho a certeza de que a melhor versão de NEVER ENOUGH é a versão apresentada em concertos como o do Wyman Park Dell. Está lá tudo o que os Turnstile pretendem: a comunidade que construíram, a comunhão gerada pelas canções berradas a altos pulmões por fãs antigos e novos.

A busca por comunidade dos Turnstile surge também em resposta ao sucesso de GLOW ON. Estarão os Turnstile mais sozinhos hoje do que antes? Como referiu Eli Enis na sua crítica a NEVER ENOUGH na Stereogum, este é um disco que surge após a “saída voluntária” dos Turnstile do circuito do hardcore no pós-GLOW ON para se transformarem, acima de tudo, numa banda de rock. Sem a sua safety net do hardcore, os Turnstile não sabem quem são, embora tenham atingido o que sempre desejaram, mesmo que inconscientemente. Em “SUNSHOWER”, canção que termina com o som da flauta espiritual de Shabaka Hutchings, Brendan Yates canta sobre estas contradições (“My head is overjoyed / And this is where I wanna be / But I can’t feel a fuckin’ thing”). Porque sem os Turnstile, “o hardcore continuou a evoluir”. O hardcore não precisa do sucesso dos Turnstile para continuar a existir nas margens. Mas os Turnstile, uma banda rock com raízes no hardcore, já não são apenas uma banda marginal. Os Turnstile começaram e passaram muito tempo como uma banda marginal entusiasmante; agora, fizeram-se uma banda grande que está a tentar perceber como conjugar todas estas mudanças no mesmo espaço-tempo.

Após o concerto dos Turnstile no Primavera Sound Porto, senti uma grande emoção tomar conta de mim. Quando Brendan Yates desceu até ao público e cumprimentou toda a fila da frente, os seus abraços àqueles devotos eram sinceros. Apesar de Baltimore estar a um oceano de distância, o seu carinho pelos fãs era o mesmo observado durante todo o concerto no Wyman Park Dell. Pensei que, se depois disto, alguns daqueles miúdos quisessem pegar numa guitarra e ir fazer barulho com os amigos, o mundo seria um sítio um bocadinho melhor.

À minha volta, enquanto isso acontecia lá na frente, pessoas ainda dançavam, camaradas gritavam pela Palestina, amigos e desconhecidos cumprimentavam-se. Era o sinal de que a comunhão tinha sido cumprida e bem feita. No final de NEVER ENOUGH, que termina tão onírico como começou (de forma algo previsível) com “MAGIC MAN”, Yates canta, no seu registo cada vez mais próximo de Sting, o seguinte: “Never be afraid, just remember what he said when you go”. Essa é a verdadeira mensagem dos Turnstile e de NEVER ENOUGH. Nenhum de nós está sozinho. Quando precisarmos, temos sempre o abraço dos Turnstile e da comunidade em torno da banda quando necessitarmos. Hoje em dia, isso é muito mais “hardcore” e punk do que parece.

Os Turnstile tocam NEVER ENOUGH ao vivo no Lisboa ao Vivo a 26 de novembro. O concerto encontra-se já esgotado.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Música para nos aproximarmos mais uns dos outros.

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