debaixo do sol exactamente.

De início, só viu riscas. Sentiu o rosto húmido e quente, e demorou algum tempo até se aperceber de onde estava. Depois lembrou-se que tinha vindo passar o dia à praia com os colegas do liceu, e que tinha chegado tão cansado que recusou o convite para ir dar aquela voltinha gostosa às ondas. Acabou por ficar a preguiçar na areia, só que como o sol estava demasiado forte cobriu-se com a beira da toalha—apesar de estar molhada com o meio litro de água com gás que o João tinha entornado. E claro, adormeceu instantaneamente.

Ao acordar, deixou-se ficar debaixo daquele forte improvisado a desfrutar dum misto de sons, cheiros, e barulhos que lhe eram tão estranhos quanto familiares. Era talvez o último dia de praia do ano, e apesar de já ser setembro o sol queimava como no pico do verão. Estava a usufruir duma serenidade merecida após ter passado a noite em claro a chorar (novamente) um coração partido quando teve a nítida sensação de que alguém lhe soprava ao ouvido. O instinto foi de abanar a cabeça e dar uma sapatada na orelha—não queria bichinhos esquisitos a adoptarem o interior do ouvido dele como morada permanente. Mas tinha sido mais reflexo do que qualquer outra coisa; não o incomodou ao ponto de se mexer muito.

Quando estava prestes a voltar a adormecer, a sensação voltou—desta vez acompanhada dum gemido ligeiramente musical. Como se alguém começasse a trautear uma cantiga e se arrependesse depois das primeiras notas. Aí o sobressalto foi maior: soergueu-se de repente e puxou a toalha da cara, olhando em redor. Até pensou que fosse uma partida dos colegas, mas estes estavam demasiado ocupados a empurrar as cabeças uns dos outros para debaixo de água. Ainda suspeitou de dois miúdos sentados mais ao longe, só que a compenetração com que erigiam os seus castelos de areia não lhes teria deixado embarcar nessas frivolidades. Teria sonhado?

Voltou a deitar-se com os olhos semicerrados, já sem a toalha a cobri-lo. Tinha acabado de se aquietar quando a voz voltou, desta vez a cantar o nome dele ao ouvido. Agora não podia ser sonho, nem imaginação. Os colegas continuavam na água, os tais dois miúdos até bandeirinhas colocavam no castelo. Não havia mais ninguém perto a não ser dois adultos a supervisionar a obra das crianças, e estes discutiam assuntos interessantíssimos como taxas de retenção na fonte e o quão vantajoso seria se novos negócios pudessem definir uma variável. Fora isso, tudo deserto, tudo na paz. 

Sentou-se de pernas cruzadas e fitou o horizonte enquanto os dedos desenhavam involuntariamente figuras abstractas na areia. Não seria preciso ficar a guardar as coisas do grupo e podia perfeitamente juntar-se aos outros na água, mas a vontade era zero. Rabiscava e apagava pequenos nadas em torno dumas conchinhas quando a melodia voltou—desta vez sem ele estar de olhos fechados. De novo o sobressalto, de novo o olhar em volta. Só que agora a voz não ia embora. Parecia vir de dentro dele, não necessariamente da cabeça, mas dum sítio qualquer perto do coração que ressoava como se fosse uma coluna Pioneer. Tão alto, aliás, que quase assumiu ser audível para tudo e todos em redor. Levantou-se de repente, em pânico. A música continuava num crescendo, e pouco antes de se tornar ensurdecedora deu por si a gritar pelos colegas em desespero.

Caiu na areia de joelhos, prostrado em impotência total. Por incrível que pareça, ninguém o ouviu—ou se sim, fizeram de conta. Cobriu o rosto com as mãos e olhou a areia enquanto um gosto amargo lhe subia à boca. Quando cuspiu, viu sangue. Limpou os lábios com as costas da mão e reparou que a hemorragia não tinha parado. Em convulsões, dobrou-se em posição fetal enquanto tingia a areia e as riscas da toalha de vermelho vivo. Foi nessa altura que viu os olhos dela. Ainda estava a cantar, ainda estava a fitá-lo como se gozasse com ele, ainda estava de pé, firme e serena, sem mostrar qualquer misericórdia. Não fez perguntas, mas também não teria adiantado nada. Quando a música acabou, cobriu-o com uma espécie de lençol e deitou-se ao lado dele, mesmo por cima da poça de sangue que entretanto coagulava debaixo do sol do meio-dia. Antes de apagar por completo, sentiu a mão dela atravessar-lhe o peito e arrancar-lhe o coração. Mas agora já estava mais calmo, agora já tinha aceitado. Num turbilhão de tristeza e alívio, enroscou-se no corpo dela e sorriu.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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