Vou Lembrar Para Sempre a Noite de Luar: Onda Choc e o Natal dos Hospitais

Quando andava na primária, um dos momentos altos das minhas férias de Natal era a emissão gigantesca do Natal dos Hospitais na RTP. Não que apreciasse grandemente passar um dia inteiro em frente à televisão (na verdade, pouco mais havia para fazer), até porque a parte dos sketches de humor me dava seca, havia demasiada gente a cantar fado, e os directos das enfermarias eram só deprimentes; mas sabia que algures a meio daquela maratona de trezentas horas chegaria a minha janelinha do advento do dia: a actuação dos Onda Choc.

O meu primeiro contacto com as aventuras musicais infanto-juvenis da Ana Faria foi através do LP Brincando Aos Clássicos 2 que os meus pais me compraram quando era muito pequena (ainda hoje não consigo ouvir a “Toreador” da Carmen de Bizet sem cantar internamente a letra do “Tóino“). Mas como os Queijinhos Frescos eram muito colégio privado na Suíça e aos Ministars nunca achei piada, quando apareceram os Onda Choc apaixonei-me imediatamente. Os meus pais encorajavam; até porque algumas músicas constituíam o pretexto perfeito para me darem a conhecer os respectivos originais: eu cantava “Na Minha Idade” e a minha mãe falava-me da Françoise Hardy; ouvia “Nesta Rua Onde Eu Moro” e o meu pai punha os Beatles a tocar; acabava de dançar “A Mais Bonita” e lá vinha a minha mãe com uma compilação dos ABBA. O maior desgosto deles era morarmos tão longe de Lisboa que nunca foi possível levarem-me a uma audição, mas eu não me importava: decorava as coreografias que via nos programas infantis e depois ensinava às minhas colegas para fazermos no recreio. E se não quisessem também não fazia mal: dançava e cantava eu sozinha em cima de qualquer plataforma ou degrau que se assemelhasse a um palco, ou em frente ao meu avô nas visitas de sábado à noite. Ele jurava que eu ainda haveria de ser artista, embora infelizmente não tenha vivido o suficiente para ver a profecia concretizar-se.

 O Natal dos Hospitais era chave nesta equação. Não só os Onda Choc apresentavam o novo álbum (que eu ainda não tinha porque, bem, ainda não era Natal) em jeito daquilo a que nesta indústria se veio a chamar teaser, como por vezes havia até tempo para mini-entrevistas às mini-pessoas que formavam aquele mega-grupo e entregavam-se discos de ouro e de platina, provas dum enorme sucesso alimentado por milhares de crianças portuguesas unidas num fandom entusiástico. Outro pormenor curioso que, percebo hoje, também acrescentava ao nosso fascínio colectivo, era o grupo aparecer nestes programas sem qualquer tipo de supervisão. Esperar-se-ia que a determinado momento o Júlio Isidro (ou sucedâneos) dirigisse as perguntas mais “crescidas” ao responsável pela engrenagem, mas não: um ou mais elementos do grupo funcionavam como porta-voz, e respondiam como as superestrelas que eram numa mistura de adultice precoce e simplicidade própria da idade.

Claro que por muitas TV Guias que se comprassem não existia qualquer tipo de guião com os horários das passagens pelo Natal dos Hospitais (até por motivos de alterações de última hora), e não havendo possibilidade de voltar atrás na emissão eu era obrigada a estar mais ou menos colada à RTP1 o dia inteiro. Por muito secante que possa parecer, não era assim tão terrível porque a TV2 (como se chamava na altura) pouco mostrava de interessante para não fazer concorrência ao canal principal, e fora isso não havia grandes opções em lares que não tivessem parabólica (a SIC só iniciaria emissões em outubro de 1992). Mas o factor surpresa também contribuía para a magia da coisa—embora fosse mais ou menos ponto assente que as actuações dedicadas aos mais novos seriam no final da tarde, que era normalmente o slot reservado aos desenhos animados em dias de aulas. Punha a televisão mais alto para poder estar a brincar ou a ler enquanto esperava (sim, fui sempre a rainha do multitasking), e quando finalmente ouvia alguém proferir as palavras mágicas “e agora, convosco, os Onda Choc!” saltava como uma mola e ia beber daqueles três a cinco minutos como se não visse uma gota de água há meses. Às vezes o single decepcionava (baladas como “Cabecinha no Ombro” ou “Ela Só Quer Só Pensa Em Namorar” nunca foram a minha praia), mas talvez cantassem mais uma? E as roupas da Cenoura, será que conseguia que a minha mãe me oferecesse uma camisola igual?

Mini Ana Leorne
Mini Ana Leorne

A autora em versão Onda Choc, colecção verão (à esquerda) e inverno (à direita)

 Um dia acordei e os Onda Choc já não faziam nada em mim. Não era vergonha nem tristeza, nem negava o meu passado de fã; tinha só crescido e expandido os meus horizontes musicais, embora sempre ciente de que muitos dos meus primeiros contactos com discografias nacionais e estrangeiras tinham vindo dali. Arrumei os discos numa prateleira para ganhar espaço para o que seguiria, e nesse mesmo ano de Comboio Sem Volta o álbum já seria relativamente preterido (e rapidamente esquecido) em prol de dois outros que acabava de receber: Tutte Storie de Eros Ramazotti, e Music Box de Mariah Carey. A minha era Onda Choc tinha chegado ao fim, mas nunca mais um artista me faria aguentar uma emissão inteira do Natal dos Hospitais. 

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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