Salvando sonhos perdidos: Calafonas e a música da diáspora açoriana

Há estórias que não chegam à história. Nas narrativas da música nacional, regiões periféricas e emigrantes acabam esquecidos, mas ainda há quem reconheça tesouros quando os encontra disfarçados. Da sua colecção de discos, Henrique Ferreira (ou DJ Milhafre) selecionou nove temas produzidos pela diáspora açoriana nos anos 70 e 80, revelando novos sons de uma paisagem complexa e quase esquecida. Longe da música tradicional, o disco revela uma estética pop e electrónica escondida até agora.

Tinha 12 anos quando vi a bandeira dos Açores na MTV pela primeira vez. Se ainda tinha dúvidas de onde vinha o Furtado da Nelly, ficou esclarecido naquele “Turn Off The Light”. Nessa altura, ainda se ouvia em bailes de escola o single mais conhecido dos Extreme. Lançado dez anos antes, o vídeo de “More Than Words” também inclui uma bandeira de Portugal. Tanto Nelly Furtado como Nuno Bettencourt fazem parte da diáspora açoriana que elevou o arquipélago e a música nacional fora de portas na viragem do milénio. Antes deles, contudo, já várias gerações de artistas se tinham aventurado pelas pontes transatlânticas, deixando que essa experiência permeasse a sua música. A sua história conheceu diferentes níveis de sucesso, mas a maior parte deles nunca teve grande reconhecimento. Foi com a missão auto-imposta de recuperar estas histórias que o micaelense DJ Milhafre começou a trabalhar na compilação Calafonas: Music from the Azorean and Portuguese Diaspora 1970’s – 1980’s.

Acho que aconteceu naturalmente por ser colecionador de discos, de ser dos Açores, de ter essa consciência que havia mais além do outro lado,” revela. “Também muitas vezes não via refletido o meu gosto musical no que se produz maioritariamente nos Açores, [que é] mais de matriz folk e tradicional, mais acústica. Eu sempre fui mais interessado em movimentos de música de dança, groove e, efetivamente, cá não tinha esse lado. A princípio até tinha ponderado em fazer algo semelhante para os Açores, porque há algumas coisas nessa linha que creio que, para vocês no continente, nunca chegaram a ser efetivamente conhecidas. Neste caso, quando eu comecei a encontrar uma dimensão já adequada para fazer um EP de recolha ou algo do género, começo a perceber que, na verdade, há ali uma história muito interessante para se contar e que nem cá nos Açores se contava, porque, na essência, falava-se sempre muito mais na diáspora enquanto conceito sentimental.”

ste conceito sentimental permanece no imaginário nacional, embora pareça estar em mutação no pós-Troika. A mitologia da diáspora, sobretudo a mais antiga, subsiste presa a uma dinâmica centralista: a emigração era mais comum em zonas pobres e predominantemente rurais, mas os discursos que a rodeiam eram (como ainda o são hoje) produzidos em Lisboa. As Nações Unidas estimam que mais de dois milhões de pessoas portuguesas vivam no estrangeiro. Desses, mais de meio milhão escolheu a América do Norte como nova casa, com uma forte expressão da comunidade açoriana. Mas se as bandeiras nos vídeos de Nelly Furtado e de Nuno Bettencourt garantiam a homenagem à sua dupla nacionalidade, honrando o passado, explica-nos DJ Milhafre que as interacções das primeiras gerações com o arquipélago-pátria revelavam um choque cultural profundo entre a ruralidade das ilhas e as maravilhas do sonho americano:

A maior parte das pessoas que estão no centro desta compilação foram [para a América do Norte] no final dos anos 50 até ao início dos anos 70, e o processo de visitar os Açores era diferente, isso são histórias mais recentes. Muitos inclusive até relatam uma certa mágoa por quase não haver um grande reconhecimento da terra relativamente a essas pessoas. O que em parte, e falando de forma mais fria, é natural, porque não há um circuito de concertos. Essas edições são muito pequenas, a maior parte das pessoas não tinha acesso, era uma região mais pobre, portanto não havia propriamente uma divulgação. Por exemplo: o Marc Dennis [que integra a compilação, no primeiro tema do lado B], ia tocar num festival na Praia da Vitória em 1978, o festival da Riviera, e o palco era montado com tábuas em cima de bidões de ferro. E eles, do outro lado, trouxeram bombas de fumo, fogo de palco e instrumentos que não puderam ligar. Portanto, o contraste era enorme e essa gente que foi com uma grande tradição [musical], porque há uma grande tradição de filarmónicas e pequenos conjuntos musicais, quando recebe instrumentos elétricos muito baratos, pode fazer [essa nova música] que estava a emergir. Até porque o que dava na rádio era diferente, o que dava na rádio em Portugal quando eles saíram ainda era pré 25 de Abril, e chegam aos EUA e têm o choque dessa nova realidade.”

Na grande vaga de emigração dos anos 60 e 70, o mundo era diferente. Comunicações restritas e viagens de avião a preços proibitivos limitavam o contacto com a terra-mãe, embora a ligação se mantivesse de várias formas. Para a comunidade açoriana emigrada, a música foi uma âncora que se manteve até hoje, e que continua espelhada numa série de meios de comunicação que fundaram já do outro lado do Atlântico – isto apesar da relação se esbater com o tempo, até porque as novas gerações de portugueses já nasceram e cresceram na nova terra dos seus pais. DJ Milhafre explica que não é raro ouvir música portuguesa na zona de Nova Inglaterra:

É normal estar-se a conduzir nessa zona, e de um momento para o outro a rádio começa a dar uma música portuguesa, seja folclore, seja Slow J. Esse fenómeno acontece, e embora seja mais disperso na Califórnia também existe. Uma vez, com o meu irmão, estávamos a atravessar a Golden Gate Bridge de São Francisco, e começa a dar folclore do Faial, que é uma coisa absurdamente bizarra – na altura, até tive de filmar, porque parecia-me quase a maior mentira que ia contar naquele ano. E o locutor diz  ‘a seguir vamos ter um folclore da Ilha das Flores’. Isso é totalmente absurdo e para vocês, no continente, mais bizarro ainda se torna – e é perfeitamente natural, porque os Açores pouco mais têm de tamanho que uma pequena cidade dos Estados Unidos. No entanto, acontecem esses fenómenos. E, parece-me, há também um lado que é sempre passado em função de ‘sou português, sou italiano, sou irlandês’, apesar de já não ter ligações efetivas à terra, quase seculares, como uma forma de reforço de identidade dos próprios americanos.”

“Calafona” (referência a Califórnia) é um termo pejorativo que se dava aos emigrantes que atravessavam o Atlântico, evocando aquele híbrido de português e inglês que ao fim de algum tempo se instalava como idioma próprio dos que partiam, mas a escolha da palavra como título da coletânea abre espaço a um diálogo de reapropriação do termo para reescrever estas narrativas que ficaram por contar, repensando a própria história e o impacto da emigração no arquipélago e não só.

Há alguns textos sobre a questão do portinglês, sobre como a língua está em constante mudança nestes contextos, sem que haja bem um padrão, mas isso reflete-se até inclusivamente na música. Alguns cantores nem se percebe bem – ele está a cantar num sotaque açoriano, americano, brasileiro? Cria ali um bocado de confusão, porque é uma mistura. Mas para nós [açorianos] há sempre o U [do sotaque], que salva essa origem geográfica. Quando mostrei o disco a algumas das pessoas dos Estados Unidos, porque lancei lá o disco, alguns tinham uma reação inicial de pé atrás, mas percebiam perfeitamente qual era o meu objetivo. Quando eu falava, o facto de eu ter este sotaque ajudou, porque percebiam perfeitamente que a minha ligação é real. Até o meu bisavô, inclusive, era de New Bedford. E a palavra Calafonas tem aqui esta dupla razão, porque eu queria com este projeto repensar essa atitude para com os emigrantes que foram para os Estados Unidos, o que é a imigração, à luz dos conceitos e das problemáticas atuais. Tal como ‘Avecs’, é uma palavra que está no fio da navalha, mas [a escolha] é justamente para forçar as pessoas a pensarem nesse processo.

A emigração açoriana é tão expressiva que o continente americano é, muitas vezes, apelidado de “a décima ilha”. Praticamente toda a gente tem um tio ou primo emigrado, alguma ligação ao lado de lá do Atlântico. A maioria dos que partiram não regressaram, mas os laços de alguma forma perduram.

“Nos últimos anos tem havido uma maior aproximação. Há festivais lá onde vão os artistas tocar, nomeadamente o Fabric Arts Festival. Este ano foi, por exemplo, o Romeu Bairos, que está com alguma saída, há os projectos da Príncipe [Discos]… portanto, também há esse interesse em mostrar o outro lado em Portugal e vice-versa, mas acho que ainda há um desfasamento enorme entre as novas gerações luso-americanas e a realidade cá. E não é por culpa de ninguém, acho simplesmente que é a distância que assim o provoca. Mas lá está, mais uma vez, o facto de eu ter mostrado esse disco a algumas pessoas, as pessoas terem começado a aceder a esse som cá, também para eles foi tudo uma surpresa; portanto, eu também espero que isso venha a trazer-te umas novas ondas de choque e de reapreciação, sobretudo. Eu acabei por receber o convite para lançar o disco no Fabric Arts Festival, em Fall River, no sul de Massachusetts, que é uma das grandes zonas principais da emigração portuguesa nos Estados Unidos. É um festival de arte contemporânea, uma cooperação do Michael Benevides, que tem o Portugalia Marketplace, e o Jesse James do festival Walk & Talk, que é a Bienal de Arte Contemporânea aqui em São Miguel, e que tiveram interesse nesta revisão dessa história e em criar um nova narrativa sobre como ela aconteceu. Ou seja, uma perspetiva do lado da música de dança e o que é que ela tem de mais moderno e não daquele lado mais sentimental, habitualmente ligado à música popular e a nomes maiores como o Jorge Ferreira, por exemplo.”

O impacto da colectânea extravasa, naturalmente, a materialização destas canções reunidas num só disco (a tiragem em vinil é limitada a 200 cópias). Além da recuperação destas músicas, as estórias destes artistas estão a ser trabalhadas pelo realizador Diogo Lima, que está a preparar um documentário numa parceria com o Fabric Arts Festival.

Essa história [da música feita por emigrantes] precisa de ser contada a tempo e horas, até porque essas pessoas também já têm alguma idade. Infelizmente, nunca houve atenção prévia –  felizmente, chegamos nós agora, não é? O caso da Terrie Alves é interessante: aquele disco ia ser todo em inglês. O manager, na época, convence-a, em função das ondas de choque, de dúvidas, em passar para o português para tentar ter um impacto comercial. Não teve. E ela própria também não andava propriamente no circuito português. Portanto, se calhar o nome dela também se vai esbatendo um pouco disso, porque também saiu totalmente fora dessa área.”

O caso de Terrie Alves é um entre vários. No final da nossa conversa, DJ Milhafre exibe com orgulho uma série de discos de alguns dos protagonistas da coletânea, intercalando curtos apontamentos sobre a excepcionalidade de cada um, e relembra DJ Shadow numa cena do documentário Scratch, de Doug Pray, em que visita uma cave de uma loja de discos em São Francisco e reflecte sobre os milhares de discos que encontra, classificando-os como uma pilha de sonhos perdidos, já que cada um daqueles artistas a certa altura teve o sonho de ter uma carreira na música. E remata: “Tudo isto eram pequenas coisas que estavam completamente perdidas e esquecidas, desvirtuadas do seu valor real. Para mim, este trabalho é tentar trazer estes sonhos cá para cima.”

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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