Hipersensível. É este o título do álbum de estreia de Rita Onofre, editado em fevereiro passado, e que significa “extremamente sensível” – pelo menos é isso que sugere o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

O sucessor do muito acarinhado Raiz (2021), curta-duração que tornou Rita Onofre num dos nomes mais interessantes e promissores do universo do indie pop português. Neste novo trabalho, encontramos uma Rita mais arrojada a nível sonoro e mais madura na escrita. Uma sonoridade alegre e dinâmica tanto quanto melosa e orelhuda, e um conjunto de letras introspectivas e diretas ao ponto que emanam uma beleza e autenticidade raras. Tudo a soar divinamente em doses generosas de emoção autêntica que se propaga como um perfume fruitivo.

Não faz mal ser-se sensível e é isso que Rita Onofre nos vem relembrar com este hipersensível. O Playback sentou-se remotamente à conversa com a cantautora, numa nebulosa manhã de sábado, para entender todo o processo de criação deste trabalho – conversa que deverá servir de convite a que se marque presença na apresentação do seu álbum no próximo dia 24 de março, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.

Rita Onofre - hipersensível
Capa hipersensível

Neste hipersensível estabeleces um princípio, um meio e um fim – digamos assim – com três interlúdios, seguramente os momentos mais introspectivos deste disco. Como é que achaste que fazia sentido encaixá-los ali?

Quando gravei os interlúdios, não os gravei para o álbum. Aliás, nem sequer sabia que ia haver um álbum quando os fiz. Fez muito sentido encaixá-los, porque já existiam e porque voltava sempre lá para os ouvir. Às vezes, parece que escrevo coisas para mim para, mais tarde, não me esquecer. Sinto que aprendemos coisas, temos momentos de introspecção e de realização e, depois, no regresso ao mundo real, temos interações com pessoas e situações e esquecemo-nos. Então, os interlúdios são como as minhas tatuagens (não é que tenha muitas): para mim, as tatuagens são uma forma de relembrarmos qualquer coisa que seja importante sabermos sobre nós próprios, sobre quem somos, ou o que é que queremos. Portanto, os interlúdios ficaram com esse papel na minha vida, de utilidade prática. Fazer um álbum é um processo que parte de ti e vai expandindo até às pessoas que envolves – os músicos – , desde a parte da produção [até] à parte do vídeo. Ou seja, envolves toda uma equipa, o que é lindo e mágico, e o álbum só existe por causa dessa expansão. Encaixar os interlúdios foi como se sublinhasse o núcleo, ou seja, a parte nuclear de [eu] estar sozinha, a escrever para me ouvir e lembrar que é esse o início de todas as canções, não esquecendo de onde vem tudo isto.

Os interlúdios foram produzidos e gravados em casa da tua avó e da tua mãe, ou seja, decidiste refugiar-te em espaços que, à partida, te dão um conforto máximo. Sentes que foram cruciais para uma maior introspecção do álbum?

Claro que sim, especialmente quando fui para casa da minha avó. Quando fui para lá, estava ainda a viver em casa da minha mãe e estávamos em confinamento. Senti então uma necessidade de sair daquele ambiente fechado e enclausurado. Nessa altura, a minha avó também estava a viver connosco, o que foi uma coisa incrível, e adorei a proximidade que tive com ela (e que ainda tenho), mas, de facto, estávamos todos ali fechados. Para mim, o confinamento foi uma fase de transformação interior muito grande. Refugiar-me na casa da minha avó permitiu-me deitar tudo cá para fora, e não tinha que estar com normas sociais. Se quisesse escrever durante quatro horas, podia escrever durante quatro horas. Se quisesse desaparecer, desaparecia. Se quisesse aparecer, aparecia. Se quisesse sair de casa e ir passear, também o fazia. Consegui explorar uma liberdade que não estava a dar a mim mesma. Não que alguém me tivesse cortado as pernas, mas acho que, às vezes, temos esses limites. Portanto, quando fui para casa da minha avó pensei “bora lá lidar com estas coisas que estou a sentir”.

Para além disso, para fazer o barulho todo que tinha para fazer, precisava também daquele silêncio à minha volta. Para mim, ir dormir a casa da minha avó, especialmente em miúda, era uma coisa bué fixe. Pensávamos “hoje a avó vem-nos buscar, vamos lá dormir a casa e, se calhar, vamos ao cinema…” A minha avó fazia sempre daquilo uma coisa tão especial que aquela casa, para mim, tem essa energia. É um espaço com boas memórias, gavetinhas e fotografias; e, de repente, estou ali como adulta, a viver aquilo doutra perspetiva. A casa da minha mãe também é um espaço super seguro. Já não vivo em casa dela, mas vou lá todas as semanas, e a minha mãe é uma pessoa muito importante para mim, não só pelo papel maternal que tem, mas também porque sinto que é uma grande amiga, cuja amizade está a evoluir de uma forma muito gira e diferente. Portanto, claro que me sinto segura. Às vezes, diz-se que se voltares para casa dos teus pais, os teus padrões vêm todos ao de cima outra vez – tipo, que horror, sou muito melhor do que isto [risos]. Por muito que isso aconteça, claro que é um sítio onde sei que posso ser tudo. Felizmente, com a minha família, tenho esta sensação de liberdade total e completa para com eles, mas às vezes comigo, ou seja, de mim para mim, é que não tenho. Escrevi estas músicas em ambientes onde tinha que existir uma espécie de cúpula à minha volta para poder sentir isto tudo, dizer isto tudo e fazer este exercício de o que é que tenho para dizer.

No seu todo, este álbum é um trabalho muito pessoal, composto por dez temas autobiográficos, honestos e reflexivos, com música e letra assinadas por ti. Podemos pensar nestes temas como páginas de um diário teu?

Deixa-me pensar um bocadinho [risos]. Imagina, não sei se são páginas de um diário. Talvez antes de um diário de bordo, de uma viagem. Em poucas músicas descrevo situações. Por exemplo, consigo associar a “Rancor” a uma coisa específica e o mesmo acontece com a “Perdoei”, mas vai para além disso. É como se os arquétipos de situações, histórias que ouvi e coisas que vivi entrassem para ali. No fundo, acho que este álbum nunca é sobre uma situação específica, mas sim [sobre] o que sai dela. Sinto que estou sempre a sublinhar o que sai da situação. Ai, não sei [risos]. Claro que há pessoas e há situações gravadas neste álbum, mas não sei se isso é o mais importante. Sinto que o mais importante deste álbum é a viagem interior que fiz quando o escrevi, da qual elas [pessoas e situações] fazem parte. Portanto, sim. Talvez a resposta seja sim [risos]. É como se fosses fazer o Caminho de Santiago e fosses a escrever pelo caminho, é o processo.

Escrever música soa-me ser a tua forma de libertação, de terapia…

Sim, totalmente! Nós, enquanto seres humanos neste mundo, vamos evoluindo – e também gosto de acreditar na evolução da nossa geração. Nota-se, hoje em dia, a nossa preocupação com a saúde mental, com quem é que somos, com as nossas ações, até mesmo no sentido prático. É tudo muito maior do que, se calhar, há duas gerações atrás, em que as preocupações eram outras, como por exemplo, ter a certeza que tinhas uma educação. Sinto que, agora, à medida que vamos ficando materialmente mais confortáveis, conseguimos ter espaço e tempo para pensar, para nos dobrarmos sobre a nossa essência e curar certas coisas que andamos aqui a carregar há gerações e gerações, tal como padrões que não percebemos de onde vêm. Esta viagem mais espiritual e psicológica só é possível por causa de quem vem antes. Basicamente, o que quero dizer com isto e respondendo à tua pergunta [risos], acredito que somos todos artistas. Não é por editarmos trabalho que somos mais ou menos artistas. Há pessoas que têm a vontade e/ou a sorte de poder fazer disso vida, mas acho que a parte artística, em cada um de nós, é uma forma de make sense of the world, de processar algumas coisas. Por exemplo, até fazer de um sentimento feio, no sentido de desconfortável, alguma coisa bonita. Para mim, a arte é uma coisa de transformação, seja o que quer que seja, dança, artes visuais, música, escrever… Há quem cozinhe tão bem que se torna arte. Há quem fale tão bem que se torna arte. Há pessoas que acreditam que ser pai e mãe ou, até mesmo, ser dono de um cão seja transformador. Para mim, a música é a minha arte.

Na tua entrevista ao Manual de Canções da RDP Internacional, mencionaste que chegaste a achar que ser sensível não te permitia chegar onde querias chegar e que tinhas que enrijecer. Este disco és tu a permitires-te ser sensível?

Sem dúvida! É a aceitação total e completa. Ouvi muito isso, especialmente quando era mais nova, e continuo a ouvir muito desta indústria. Sempre tive muitas inseguranças e, portanto, a segurança é uma coisa que tenho vindo a trabalhar. Graças a isso, tenho vindo a descobrir que a segurança pode vir da aceitação dos teus medos. Não vai haver um momento em que vais pensar que só a partir de agora é que tens a certeza absoluta de tudo o que estás a fazer, que agora sim. Parece-me que é antes o contrário. Vais com medos, vais cometendo erros, mas vais fazendo e andando. Depois tens uma intuição e, às vezes, confundes intuição com “tesão do mijo”. Não queria nada usar esta expressão, mas… [risos]. Ouvi muito na minha vida, especialmente de professores de voz, do género “Rita, se és tão frágil assim, não vais sobreviver, não vais sobreviver neste mundo, não vais sobreviver neste mundo da música, porque é preciso algum caparro”. Com o tempo, decidi que não iria partir desse sítio, porque estaria a ser uma pessoa que não sou. Senti que a minha força teria que vir de outro lado – de assumir total e completa fragilidade. Também ainda não tenho respostas, isto é toda uma experiência, mesmo que, às vezes, tenha um bocado de vertigens. Mas qual é o problema em ser totalmente honesta com aquilo que tenho para dizer e aceitar a dor? A dor vem e está tudo bem, a dor vem ensinar-nos – bem sei disso [risos]. Sabemos todos com tanta coisa que está a acontecer, aliás. Só crescemos e evoluímos a sentir essa dor, acho. Isto para dizer que a nossa força pode vir da nossa total e completa vulnerabilidade.

Rita Onofer
Fotografia: Pedro Ivan
Na verdade, o título é super explícito. Não há melhor palavra para definir este teu álbum do que hipersensibilidade.

Completamente! Houve toda uma realização para chegar aí. Imagina, a música que escrevo sempre partiu da sensibilidade, ou seja, se eliminar isso, o que é que fica?

Precisamente a partir dessa sensibilidade, escreveste canções sobre dor e rancor, outras sobre inícios e fins de relações, algumas sobre crescimento pessoal e amadurecimento. Ao fim e ao cabo, consideras que há um tema transversal ao disco?

Talvez o que une todas as músicas é ter sempre as emoções à flor da pele, porque acredito que sem isso não iria conseguir dizer aquelas coisas, coisas essas que podem parecer muito enigmáticas, mas que, para mim, não o são [risos]. Fiquei nervosa antes de lançar a “Perdoei”, fiquei nervosa antes de lançar a “Rancor”, isto porque são músicas em que estou a dizer tudo, o que às vezes é um bocadinho assustador. Mesmo que venha com algumas metáforas – embora isso tenha a ver com a linguagem e a comunicação de cada um – aquilo, para mim, é dizer as coisas na cara [risos]. No entanto, há a “Curto Prazo” que foi o tema que escrevi de uma forma diferente, porque inclui uma pessoa no processo e não tínhamos muito tempo para acabar a música porque tinha que entregar o álbum. O Miguel Garcia (aka miguele) – que não foi chamado ao calhas – é uma pessoa muito especial e o mundo vai poder ver isso assim que ele decidir. Os amigos dele sabem e as pessoas à volta dele também sabem que ele é muito sensível. Então eu precisava de ter essa sensibilidade na voz, precisava de falar sobre aquela música com alguém que tivesse essa disponibilidade.

Ia perguntar-te precisamente como aconteceu essa colaboração… Sei que já desejavas cantar com o miguele há já algum tempo.

Sim, sim, já vem de há algum tempo. Imagina, ter o miguele na minha banda, já como guitarrista, é incrível, porque é o músico que é. Quando lhe perguntei pensei que não ia aceitar, e estava tudo bem, mas não perdia nada em perguntar. Depois ele aceitou e eu fiquei “ah, ok… bora então” [risos]! Depois a harmonia da música existe porque ele assim a fez. O miguele muda tudo. O que lhe entreguei era uma cena muito mais para baixo e muito menos luminosa do que aquilo que ficou – ficou com tanta luz! Não ia estar a fazer mais uma downer para o meu álbum, já chega [risos]. Por exemplo, na “És Maior” há alguma escuridão por causa da introspecção, mas não há propriamente negatividade, enquanto a “Curto Prazo” talvez seja a música do álbum que é mais sobre uma situação específica. É sobre aquela coisa de estarmos com uma pessoa com a qual sabemos que aquilo não vai durar muito tempo, sabemos que sentimos mais do que a outra pessoa e que aquilo nos vai magoar, mas não conseguimos sair dali. Pensámos então “bora fazer isto [a “Curto Prazo”] mais leve”, e gosto daquela ideia de que nada é tão sério e importante na vida [risos]. Sinto que o miguele veio aliviar um bocado a pressão.

Há alguma canção deste disco que te seja mais especial?

Acho que a música mais especial para mim é a “Maria Madalena”, porque é uma música para a minha sobrinha. Foi assim a primeira bebé… Tenho todas as regalias de ser tia, que é estar com ela mas depois não ter que lidar com os dramas todos [risos]. É uma miúda super especial. É um amor. Nem imagino o que seja ser pai ou mãe e sempre achei que, talvez por causa das minhas inseguranças, ter filhos seria uma coisa mesmo “uau, coragem”. Trazer uma criança a este mundo? Que perigo [risos]. De repente, a miúda nasce e é mágica. Escrevi a música quando a minha irmã estava grávida e, para mim, que tenho uma relação muito fixe com a minha irmã, vê-la a transformar-se… Só pensava “o quê, a minha irmã vai ser mãe?” [risos]. O processo foi encaixar estas coisas todas e, depois, há a parte romântica disto tudo. A “Maria Madalena” é o celebrar dela antes de nascer. É muito giro porque ao escrever a música faço entender que ela tem olhos grandes e faz-se sentir quando entra na sala. Depois a miúda nasceu e é assim, tem uns olhos gigantes – é a primeira coisa que toda a gente diz quando a vê – e olha-te muito. Depois é uma porreira, só quer comunicar, chega à sala e chama toda a gente só porque quer atenção. Achei piada a essa coincidência. Foi também a música que lhe cantámos durante muito tempo para adormecer. Enfim, é daquelas que está tudo muito ligado para mim.

Rita Onofre
Fotografia: Pedro Ivan
Este trabalho foi desenvolvido entre os estúdios Great Dane e Black Sheep e dois retiros no Algarve com o Miguel Laureano (aka Choro) e o António Souto (aka NED FLANGER), elementos determinantes no disco. Conta-nos como decorreu este processo.

Olha, fui começando a dar os primeiros concertos e a escrever as músicas, ainda em duo só com o NED FLANGER, quando me dizem “Rita, vamos lá, temos que fazer um álbum” e eu “ok, vamos fazer um álbum” [risos]. Não tinha meios, não tinha como, não tinha onde, não tinha com quem, não tinha nada. Ora, andei imenso tempo a pensar “não tenho, não posso e não consigo” e depois [disse] “chega, vamos lá, Choro, NED, querem fazer isto? vamos fazer uma equipa”. Até comecei, na altura, a produzir a “Perdoei” só com o NED, que deu imensa coisa – ou seja, muito do carácter que a “Perdoei” tem agora foi por causa dessa fase inicial. Depois veio o Choro e encheu aquilo com mais estrutura. Portanto, as coisas foram acontecendo. Também vivemos um bocadinho a sentir que temos pouco tempo para fazer as coisas, porque estamos a gerir trabalho e projetos pessoais. Ok, amamos o que fazemos, mas gostávamos sempre de ter mais tempo [risos]. Até foi daí que surgiu a necessidade dos retiros. Imagina, começou tudo no Great Dane. Entretanto, começámos a sentir que a nível de mindset isto estava a precisar de mais amor, ou seja, não podíamos estar a ligar e a desligar o interruptor a toda a hora. Tivemos então esta possibilidade de ir para uma casa no Algarve. A segunda vez até foi mais fluida do que a primeira, porque na primeira não sabíamos fazer isto porque não estávamos habituados. Imagina, é sempre: segunda-feira tenho sessão com aquele, terça-feira tenho sessão com outro, quarta-feira vou gravar algo, quinta-feira tenho que editar qualquer coisa. Já só estávamos habituados a ter esta “tensão TikTok”. Foram quatro dias num sítio, que nem é assim tanto, e estávamos meio trocados de horários e de fluidez de trabalho.

Foi uma mudança total de rotina…

Completamente! Estávamos ali só os três e, depois, também tínhamos que equilibrar com o descanso. De repente, achámos que estávamos todos ali catorze ou quinze horas seguidas e não, não podia ser assim. No primeiro retiro fizemos muita coisa, mas voltámos muito esgotados, até mesmo a nível emocional. Imagina, eu estava num sítio muito mais stressante no primeiro retiro do que no segundo. No segundo retiro já sabíamos [o que fazer]. Acordávamos à hora x, parávamos de trabalhar à hora y, fazíamos um almoço normal e sentados, havia muito mais divisão de tarefas, por exemplo. Imagina, eles estavam algures e eu cozinhava, ora estava eu algures, eles cozinhavam. Quando digo eles, digo o NED ou o Choro, porque não trabalham sempre em equipa, claro [risos]. Portanto, o parar, o ir ver o mar, o respirar fundo, o aproveitar que estamos no Algarve e o viver a cena com mais leveza com o mindset let’s enjoy this… Isto só foi possível porque houve uma entrega total e completa do Choro e do NED. Eles tratam este projeto como se fosse deles e isso, para mim, é bué importante. Sinto muito isso. Quanto às pessoas que me acompanham, sei que é uma exigência grande e, por isso, é que tenho sempre a porta aberta e digo sempre às pessoas “se isto for demais diz-me”, porque sei que tenho este desejo, tenho esta queda, que é que isto saiba bem à pessoa e que lhe faça sentido. Quero sempre que isto faça sentido para as pessoas, porque acho que essa energia vai passar e porque é isso que quero perpetuar no fim do dia. Não quero que seja o meu lado-sombra, tenso, nervoso e control freak. Quer dizer, essa parte existe e está tudo bem, mas quero antes que seja a outra parte a passar.

É interessante que o Choro te acompanhe desde sempre. Não só produziu o teu EP de estreia Raiz, como também foi com ele que iniciaste o teu percurso musical enquanto SEASE. Consideras que este trabalho só faria sentido com ele?

Olha, não sinto que só faça sentido com ele, mas sinto que com ele o projeto ganha uma dimensão muito maior. Ele é talvez a pessoa com quem trabalho com maior fluidez, porque nós temos uma comunicação muito boa, até quando nos estamos a desafiar percebemos isso. O que é que acontece também? Há muita tensão no trabalho, porque conhecemo-nos há muito tempo e estamos mais à vontade para sermos mais raw um com o outro. No entanto, acho que isso traz para o projeto muita honestidade e isto só pode ser feito com pessoas, como já disse, que se entregam ao projeto. O Choro é uma dessas pessoas. Ele entrega-se bué ao projeto e eu tento ao máximo, com este meu lado control freak, que haja espaço para as pessoas fazerem aquilo que sentem na música. No fundo, tem sido um trabalho enorme do Choro. Sinto-o a crescer neste sentido, não só comigo, mas com tantos outros projetos que ele está a fazer, que é canalizar as pessoas sem se anular, porque nós muitas vezes anulamo-nos. Eu também como songwriter, muitas vezes anulo-me, mas acho que a riqueza vem quando nós conseguimos canalizar o outro sem nos anularmos. Ok, vou reformular a minha resposta. Acho que sim, acho que só poderia ser feito com ele, porque o Raiz não ia soar a Raiz, o hipersensível não ia soar a hipersensível, iam soar a outra coisa qualquer sem o Choro.

O Choro dá outra vida aos teus trabalhos, digamos assim…

É isso, sem dúvida! O que sinto é que não dependo dele(s) para escrever música e para ter o meu projeto, mas depende dele(s) o meu som e o produto, e tenho imenso orgulho nisso.

Sinto que os teus amigos são uma peça essencial na criação da tua música, o que me lembra a entrevista que fiz à MARO, e onde afirmou que sente mais prazer em fazer música quando a faz com outros. Isto poderia aplicar-se a ti?

Completamente! Imagina, estás a comunicar quando estás a fazer música, é como se fosse uma outra linguagem. Há amigos com quem tu gostas de falar várias horas sobre a vida, há amigos com quem tu gostas de ir dançar, há amigos com quem tu gostas de ir a um evento cultural aleatório, há amigos com quem tu gostas de chorar. E há amigos com quem tu gostas de fazer música [risos]. É como se fosse mais um ponto de ligação e é tão divertido. Por exemplo, agora nesta fase de ensaios para dia 24, sinto que é tão bom, que sabe tão bem, e só penso que tenho que tocar mais vezes só porque sim. Quando era miúda, talvez fizesse isso mais vezes, e agora, nesta fase de we’re all trying to adult é tudo compartimentalizado e é bué custoso. Fazer música com os outros, criar por criar, fazer uma sessão porque sim, adoro tudo e adoro não pensar no produto final. Em situações de trabalho acontece muitas vezes que temos que fazer a próxima música da Comercial, e é tipo “bora tirar isso, bora fazer música porque sim, porque gostamos e se no fim ficar um cocó vamos rir, bora divertir-nos”. Acho que aprendi isso com imensa gente. O António Graça (aka LEFT.) tem muito isso, por exemplo. O António é uma pessoa que adora desconstruir e pensa: “Vou levar-me a sério porquê?”, mas que ainda assim, se leva a sério. Se tu te fores divertindo, estás a levar a tua existência a sério, que é o mais importante de tudo. Acho mesmo que esse lado é super importante e fixe.

Também já te ouvimos ao lado de Gui Salgueiro (aka YANAGUI), Elisa Rodrigues ou AVALANCHE. Fazer música para outros artistas influencia, de alguma forma, a música que fazes em nome próprio? Ou separas bem as coisas?

Acho que são sempre exercícios que estão a entrar no teu sistema. Quando tu estás a experienciar isso, estás a explorar outras coisas, porque estás a entrar no reino do outro, ou seja, já não estás só no teu reino bué confortável, estás a ir para o outro lado, e quando estás a fazer isso estás a expandir o teu. Portanto, claro que acho que de um Raiz para um hipersensível há uma diferença por causa daquilo que vivi e por causa das situações em que me sujeitei – as situações de songwriter, quero dizer. Portanto, claro que sim, claro que influencia – e que bom que influencia. Não quero estar a fazer a mesma coisa durante imenso tempo. Estava a falar sobre isso com o Choro no outro dia, de eu esperar ter 50 anos e estar à procura do meu som [risos]. Claro que vai haver momentos da minha vida em que me vou sentir estagnada, como me sinto muito desde pequenina, tenho muitas fases assim, mas que isso sejam só momentos pequenos e eu não me feche tipo “ai, eu sou isto”. Não, vou continuar à procura e não perder esta curiosidade de puto de “se formos por ali, o que acontece?” Porque, para mim, o hipersensível foi isso. Só que depois toquei tantas músicas que elas foram amadurecendo e ainda bem que assim foi. Neste momento, quero muito viver desta curiosidade e desta vontade de descobrir que outros sítios é que tenho em mim.

Esta última pergunta ocorreu-me porque me lembrei de ter lido no Rimas e Batidas que, quando estavas a compor a “Passo”, fizeste um stack de vozes que inspirou a “Eowe”, uma das faixas do Volume I da AVALANCHE. Conta-nos um pouco sobre isso.

[Risos] Então, foi depois do Natal, acho que era dia 26 de dezembro. Estávamos cada um em sua casa, com as suas famílias, após a azáfama do Natal, mas ainda naquele quentinho de estar com a família, em que não vais fazer coisas com amigos. O que acontecia é que nós encontrávamo-nos muito no Discord. Estávamos ali à noite, estava no quarto e disse-lhes “olhem, vou embora, vou escrever música, até já, beijinhos”. Fui e comecei a compor a “Passo” e gravei esse stack de vozes e pensei que era um sample giro para os meus amigos – nessa altura andávamos numa troca de samples. Imagina, tenho esta vontade enorme de ser produtora e quero imenso crescer nesse sentido. Não estou a dizer que nunca vai acontecer e até já produzi algumas coisas, mas queria dar um grande passo. Então, nessa altura, também andava a dizer para me mandarem [samples], para poder explorar. Acabei por gravar esse stack de eowe’s e pensei “ok, giro, vou mandar aos amigos”. Exportei, fui ao Discord e disse “olhem, tenho aqui isto, tomem, vou-me embora, divirtam-se”. Bazei outra vez, continuei a escrever a “Passo” e, mais tarde, voltei a ligar-me. Já estava aquele beat super intenso, bué gostoso, bué sexy [risos]. Depois, eles chamaram a iolanda, mas primeiro escrevi um verso em cima do joelho [risos]. Lá está, esta coisa de fazer por fazer. Já sabíamos que a AVALANCHE queria fazer um álbum, o Luar já tinha essa ideia e essa vontade há imenso tempo, mas não sabia que a “Eowe” ia parar ao Volume I… Nem era “Eowe”, éramos só nós  a brincar à noite, cada um na sua casinha. Era o Luar em Loulé, o YANAGUI em Queluz, a iolanda nas Biqueiras ao pé de Pombal e eu em Algés [risos], e fizemos tipo metade da música. Depois fomos para o Great Dane, já em writing camp mode, para acabar a música, que também batalhei ali com umas lines. Nessa música, por acaso, confrontei-me um bocadinho com a cena “ok, gosto desta vibe, mas não quero deixar de ser eu”, e não queria ter coisas por dizer.  Estava a tentar perceber como é que conseguia isso, porque depois uma cena é tu expandires o teu reino, outra coisa é ires para o lado de lá, mas isto continua a ficar pequenino e queria fazer isto. Não queria só ir lá e não voltar, porque depois cantas estas músicas ao vivo e queres que as pessoas sintam o que tu sentes. Não tenho medo nenhum, nem vergonha nenhuma de fazer parvoíces ou experiências e que as pessoas oiçam, não é isso. É mais a cena de quando for apresentar isto, pode ser uma cena que estou a sentir e não dizer outra coisa qualquer.

Que incrível. É que quando ouvi a “Passo” pela primeira vez soou-me super familiar e depois quando li aquilo fez todo o sentido.

Imagina, aquilo está bué na cara, aquilo não está nada escondido, mas adoro quando as pessoas descobrem, fico mesmo “uau” [risos].

Fala-nos agora sobre o concerto de apresentação que vai acontecer no dia 24 de março na Galeria Zé dos Bois. Quem vais ter ao teu lado? Quais são as tuas expectativas?

Então, ao meu lado vou ter a minha banda incrível, que é o Choro, o NED FLANGER, o Pedro Almeida e o miguele. Vou ter convidados. Basicamente, aquilo que estou a procurar criar com este álbum e com a apresentação deste álbum é sempre um momento de transformação. Quero que isto seja para as pessoas e quero que isto seja um momento de alguma libertação. Gostava que as pessoas deixassem ficar ali alguma bagagem. Larguem aí os cadáveres todos [risos] e a gente depois limpa [risos]. Estou mesmo com essa vontade. Ando a criar à volta disso, desse desejo de deixarmos todos os hipersensíveis serem hipersensíveis num lugar seguro e aceitar completa e totalmente, porque entretanto depois da minha listening party fiquei afónica, fiquei mesmo sem voz, isto nunca me tinha acontecido desta forma tão agressiva. Portanto, estou aqui num processo todo de cura e de aceitação e, em princípio, nem sequer vou estar a 100% a nível vocal e então é aceitar as coisas como elas são – e curtir. Se não me divertir, isto não faz sentido. Que isto não fique aqui em espirais negativas daquilo que não consigo fazer e daquilo que não sou – mas pelo contrário, é pensar o que é que consigo fazer com aquilo que tenho.

Para terminar, enquanto uma das atuais cantautoras do panorama musical português, como olhas para a discussão em torno das rádios nacionais (já não são obrigadas a passar 30% de música portuguesa)?

Ora, acho que num mundo ideal, não teria que haver regras. Num mundo utópico, não precisávamos de leis, porque saberíamos comportar-nos como seres humanos respeitadores. Neste caso, especificamente, saberíamos o que é semear e regar a indústria portuguesa, mas isso não acontece. Isso não acontece e quem toma as decisões, toma as decisões, muitas vezes, talvez a pensar de uma forma menos holística do que poderia ser. Acho que isso acontece e, por isso, é que estas leis são importantes. Claro que acho que a indústria portuguesa, neste momento, está no sítio onde está por causa de leis como essas e por causa do apoio que temos tido nesse sentido – que não estou a dizer que é suficiente, acho que o apoio deve ser muito maior. No fim do dia, estávamos aqui a criar uma coisa tão bonita e vamos parar agora? Precisamos de mais provas que as pessoas querem ouvir música portuguesa? Faz um concerto gratuito e vê o que acontece. Tira a parte financeira e vê o que acontece. O público português não é burro, mas se tu não dás acesso, vamos burrificar. É só uma questão de acesso, porque as pessoas querem, as pessoas estão curiosas, as pessoas vão e vão ouvir. Não estou a dizer que temos que andar a esfregar na cara das pessoas músicas que elas não gostam. Nem é isso que acontece. Há tanta coisa. Portugal é referido por tantos outros países como um sítio de criatividade brutal onde nasce imensa coisa, onde correntes artísticas brotam e parece que só nós é que não conseguimos ver isso. Quem manda não é propriamente quem sabe mais ou melhor, e uma forma de regulamentar isso é termos leis e regras, e claro que uma economia só cresce se for protegida durante um tempo. Se tu semeares e não regares não nasce nada. Ainda assim, estou muito feliz, porque ando a ver imensos cartazes de malta portuguesa a fazer Capitólio e a fazer Coliseus. Não me lembro de ver tanto disto quando era miúda, estou tipo “let’s go, isto é nosso, bora” – e que bom! Atenção, consumo bué música de fora e é isso que nos enriquece, mas dêem-nos espaço para nos espreguiçarmos. Nós temos que nos espreguiçar.

Podes adquirir bilhetes para o concerto de Rita Onofre na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, no dia 24 de março aqui.

Fotografia de destaque: Pedro Ivan

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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