A voz de Bonnie “Prince” Billy e a felicidade que tenta deixar de ser antiga

É difícil escrever sobre amor, felicidade, esperança, enfim, coisas boas que num mau domingo apenas existem enquanto miragem. Cada vez mais o é. Estas sórdidas utopias com que somos enxovalhados por uma enorme massa de manufaturação de consentimento que, ideológica, espiritual ou materialmente nos guia de como lá viver. Complica quando tudo exibido em contramão só perpetua o contrário, com a vivência social cada vez mais eletrificada pelo ódio e um sistema que sorri ao saber disso. A morte é trivializada em rodapé e tudo não para de arder.

Sem rumo e na divisão, na desilusão, no medo e na descrença, pernoita-se ainda em busca de razões para acordar no dia seguinte. Oh, o intelectualoide barato! Sim, cá estou eu mais uma vez a disparatar no overshare. Um puto neuróticozito que embebido de autodepreciação derivada da consciência que tem do seu nojento privilégio de andar aqui como anda e mesmo assim não mostrar os dentes com o peito, não consegue escrever sem se chicotear a si e ao que percebe do que o rodeia. Pesando-lhe sempre a parvoíce que é ler-se em terceira pessoa e a pouca vergonha de oferecer crua vulnerabilidade a um processador de texto e ainda partilhá-la na mundial e vasta teia. Em via de justificar este início autocentrado e desnutrido de matéria inovadora ou relevante, reforço que é difícil escrever. Ponto. Quanto mais sobre estas coisas surreais e sublimes. Ainda mais o é quando estes só aparecem por curtos, passageiros e singelos momentos, sem avisar e em contexto de algo também episódico que não se consegue aceder senão via memórias, estas altamente impossibilitadas de fazer sentir aquilo que se sentiu. Como escreverei eu então sobre o que aconteceu no dia 9 de novembro – um domingo nada mau -, no gnration, em Braga, quando tive a oportunidade de finalmente presenciar um concerto de Bonnie “Prince” Billy, projeto seminal do camarada Will Oldham?

Cheguei ao concerto com a expectativa solene de quem só queria um bocadinho de escape. A verdade é que concertos são experiências ricas em induzir estas réplicas de sensações que, de forma quasi-transcendental, até parecem que nos impactam como um poderoso sedativo a tudo o resto que existe. Até parece que por momentos há realmente vida dentro de nós. Há, de facto, uma janela de tempo para nos embebedarmos de palavras escutadas, que, dependendo da devoção de quem as canta e instrumentalmente acompanha, nos deixará ou não sob influência de tais emoções ou algo que se lhe pareça. Música é assim visceral, e quando esta se envolve nas múltiplas dimensões que um concerto tem, há essa dualidade e ativa participação que temos de fazer parte de um momento que só quem ali se encontra poderá presenciar enquanto somos também só meros espectadores da extensão de alguém que se despe em acordes e sílabas. Foi isso que Bonnie “Prince” Billy a certa altura do concerto reforçou. A sorte que tivemos todos de ali estar, próximos, durante mais de uma hora, num momento que só quem ali esteve soube o que foi.

Fotografia: Hugo Sousa
Fotografia: Hugo Sousa

Lá regressar, não se traduz em sentir o que lá se viu, nem pouco mais ou menos. Transcrever para caracteres ainda é mais diminuto. E descrever parece ser uma desvalorização da devoção de músicos que já deitam lágrimas mesmo antes de começar a cantar – visto pelas bochechas lacrimais de Oldham quando interpretou “The Brute Choir” lá para o meio do concerto, por exemplo. Baralho-me por tudo isto que exclamo porque nas palavras e voz de Will também habita muito peso de existir – aliás, este não esconde que música sempre foi remédio para continuar. Nesta exorcização do vazio e busca pelo propósito que se assistiu e por sua vez se sentiu, repito que não sei bem como abordar via texto o que vi(vi).

O que escreverei então a seguir? A sensação da emoção lacrimal atingir os olhos como se de um espirro constipado se tratasse e em seguida perceber que metade do rosto está encharcado? Os arrepios de espinha que deixam os membros revelados pela falta de mangas de uma t-shirt a fazer lembrar a textura de um frango depenado? Ou a carga de ar a sobrelotar o peito, numa catarse de ânsia motivada por esta força que brota das performances desta orquestra de cordas, sopros e poesia? Como foi que eu senti tudo aquilo que Bonnie “Prince” Billy me despoletou? Não sei se tudo o que teclo para aqui responderá a isso, mas há um momento do concerto que talvez reflita bem. Will Oldham pede aos compinchas de banda para o relembrarem do início da canção “Crazy Blue Bells”, ao que Thomas Deakin (responsável pela guitarra barítono e alguns sopros de clarinete e corneta) adereça o público dizendo que quem escreveu aquelas canções foi Will, ao que este, depois de risos comuns, responde: “Mas eu nunca estive aqui antes [risos]. Uma das formas práticas que os humanos desenvolveram para absorver algo a que chamamos tempo […] é quando fazemos coisas como inventar canções, porque colocamos estes marcos para nos ajudar a navegar esta construção a que chamamos passado… mas às vezes a letra simplesmente fica ali [risos].”

E é realmente “o momento” que ali se celebrou. Um presente. Irrevisitável. Feito de muitos ex-presentes que se materializaram em poemas cantados que, de uma forma ou de outra, uniram todos aqueles presentes que esgotaram a black box do gnration num final de semana. Em contradição aos tempos superestimulados e cacófatos que vivemos, bem como a complexidade de se ser, Oldham usa a simplicidade para se desmontar. Quem chegou à sala que enverga à risca a cor do seu nome anglosaxónico, viu somente o palco vazio. Não há cá amplificadores nem nada desses artefactos, alguns pedais, uns cabos, uns suportes de microfone (o de Will bem marcado por uma pequena figura de um pássaro roxo, alusivo ao seu trigésimo e mais recente disco The Purple Bird), mas nem instrumentos estavam à vista. Estes chegam com os músicos, Thomas Deakin, Jacob Duncan (flauta e saxofone, Eamon O’Leary (bouzouki) e, claro, Will Oldham, com uma espécie de balaclava, rímel invés de olheiras e carregando a caixa da sua guitarra. Pelos primeiros momentos da interpretação de “Strange Form of Life” e pela sua distância à versão de estúdio, percebeu–se que estaríamos diante diferentes interpretações das canções que se canonizaram em stereo, empoderando o senso de unicidade que Oldham tanto quis transpirar na sua performance.

Fotografia: Hugo Sousa
Fotografia: Hugo Sousa

Desde cedo se demonstrou agradecido e contente por se encontrar em Braga (segunda paragem em solo nacional, depois de Penafiel e a anteceder Lisboa). Aliás, o próprio não escondeu à Blitz que A digressão quase nem faz sentido… eu só quis ter uma razão para voltar a Portugal. De corpo e alma, foi através de diálogos entre as suas cordas vocais e as das guitarras a si adjacentes e aos sopros que os elevavam que percorreu mais de três décadas de carreira, satisfazendo aqueles que já faz tempo que o acompanham na caminhada, ou aqueles que chegam pela primeira vez – como é o caso do companheiro Eduardo Ribeiro que comprou bilhete a pensar em Bonny Light Horseman, tal é o malandro…

Aproveitando o tamanho intimista da sala, Oldham cruzava diversas vezes olhares com o público à medida que se perdia nas suas elásticas inflexões vocais e na presença magnânima de quem roga por paz interior para ele e para quem o rodeia. Sem instrumentos de percussão, é através dos tacões dos sapatos a bater no palco que cria ritmos. Por sua vez, em posição quase flamingo, balanceava uma das pernas em suspenso ao som das canções. Evocou catarses em “London May”, viajou no tempo até aos tempos de Palace com a belíssima atuação de “New Partner”, onde todos os músicos se envolveram numa sincronia comovente que se repetiu em “Our Home”, ou nos coros desfasados de “Behold! Be Held!”. Tudo isto intercalado por segmentos de aplausos que pareciam ficar cada vez mais intensos. De vez em quando, partilhava reflexões. Pediu também a certa altura que se nos dirigíssemos à banca de merch, que não o fizéssemos para fins de transacções, mas com o intuito de conversarmos com o Oliver. (Sem ele saber, ainda antes do concerto já o tinha feito para comprar um disco e ele ofereceu-me um sticker por ser a minha primeira vez a ver Bonnie “Prince” Billy). Agradeceu a todo o staff com palavras muito ternurentas e a todos os que retiraram um domingo para fazer parte daquele momento que ele reforçava sempre ser único.

No final, ao fim de mais de uma hora e meia e com palmas a imploraram para que aquele momento não tivesse fim, com dois encores, escuta-se uma súplica tola de alguém por “I See A Darkness”, recebida de forma mista pelo público, pois pouco interessava que este tocasse a sua música mais mediática depois de tudo o que já nos tinha entregue. Mas, talvez em forma de recompensa pela devoção nos aplausos, lá se viu uma versão ainda mais paulatina, mas não menos esplêndida, que a de estúdio da canção que levou Bonnie “Prince” Billy às bocas do mundo – de Johnny Cash a Rosalía. Com uns “shhhs” para que o público não interferisse (cantando) com o sussurro cantado do artista, lá encerrou este seu concerto.

Fotografia: Hugo Sousa
Fotografia: Hugo Sousa

E o barulho regressa. Pois o silêncio, respeitado em grande parte pela plateia, fazia parte das canções. Porque silêncio é privilégio e poder ocupá-lo ainda mais o é. Claro que ajuda a existência deste contexto a visão beatífica, comunitária e plena que Oldham tem no seu trabalho. Mas quando este senhor pega numa guitarra e canta as suas dores musicadas, há um senso de que, apesar deste efeito catatónico de olhar em redor e não haver muito que motive a continuar, há uma esperança, uma luzinha ao fundo no túnel. Este pede que se partilhe amor, o que podia ser uma frase/conceito proferida por uma qualquer socialite digital a tentar vender produtos de nutrição. No caso de Bonnie “Prince” Billy, é mesmo na crença que este tem de que ao partilharmos um abraço, uma palavra sentida ou tentarmos aconchegar quem nos é próximo, talvez não seja tão difícil andarmos aí. Pelo menos é isso que a sua música transparece.

Mas e o que sei eu? Só sei escrever sobre coisas tristes e o concerto de Bonnie “Prince” Billy esteve longe de ser uma coisa triste. Ao menos enquanto lá estive a minha mente viajava mirabolante por futuros, reflexões e ideias, motivadas pelas letras e sensações que Oldham entregava. Parecia que isto de andar aqui podia ser melhor do que suportável. Na voz de Oldahm, até parece que felicidade é possível e isso é o melhor elogio que se possa dar a um homem que contorna fantasmas há mais de 30 anos via indie rock, folk e country. Escrever sobre amor, felicidade e esperança é cada vez mais difícil. Will Oldham fá-lo e ao cantar até o faz parecer fácil. Foi bonito. Daqueles concertos que acaba e só nos apetece dizer: Obrigado!

Nascido e criado em Faro, divide o seu coração entre as suas duas grandes paixões, o cinema e a música. Aspirante a cientista da comunicação, já passou pelo Espalha-Factos onde foi um dos autores do À Escuta. Conseguem apanhá-lo em festivais de música e em cineclubes!
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O que será felicidade? Longe de se saber, mas Bonnie "Prince" Billy tentou evocá-la no gnration.

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