Festival Impulso ’25: um microcosmos nas Caldas da Rainha

As Caldas da Rainha são uma espécie de “Microcosmos” do Oeste – assim declararam os Cave Story há quase uma década em West. É uma cidade onde parece que nada acontece, mas onde acaba por acontecer tudo. Nas Caldas, o tempo não se move devagar; pelo contrário, tudo se vive intensamente, tudo se vive como se fosse a última noite das nossas vidas. Afinal, assim tem de ser – como sobreviver no Oeste senão desta forma?

Há já algum tempo que o Impulso me andava a convidar para ir às Caldas da Rainha. Todos os meses, ou pelo menos desde que o festival regressou no novo formato pós-pandemia (a ocorrer mensalmente durante o período letivo de setembro a junho), lá recebia um e-mail a convidar-me para ir assistir a uns quantos concertos na cidade que, desde os anos 90, é sinónimo de alguma da melhor música de guitarra ruidosa feita neste país. Contudo, como é habitual na minha vida, estava complicado alinhar os astros e apanhar um autocarro (ou neste caso, uma boleia) rumo ao oeste.

No final de mês de maio, os astros finalmente alinharam-se. E tive sorte. Arranjei tempo para ir ao Impulso e às Caldas, e apanhei uma edição “especial” do festival. Esta edição fez parte de mais um Caldas Late Night, festival que, desde 1997, agita os dias e noites da cidade. Em 2025, o Caldas Late Night decorreu de 29 a 31 de maio, com os concertos (gratuitos, necessário assinalar) do Impulso a fazerem parte da agenda de sexta (30) e sábado (31). Festa dura.

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Há algo de especial em ver jovens a apoiar os amigues e a fazer coisas acontecer. As Caldas da Rainha vivem disso. No oeste, a cidade é um oásis alimentado pela presença da Escola Superior de Artes e Design (ESAD), e por um conjunto de jovens – futuros artistas – que encontram na comunidade estudantil-artística da faculdade uma forma de delinear, nem que seja temporariamente, um novo futuro, um novo mundo de possibilidades. E de vez em quando, na música caldense, lá surge uma nova banda ou um novo artista oriundo da cidade que é a “próxima grande cena”. Assim foi com os Cave Story, assim é com uma banda chamada Agrupamento Musical Piscinas Municipais.

Na realidade, a principal razão que me levou às Caldas e a esta edição do Impulso foi assistir ao concerto desta banda cujo nome é complicado de pronunciar, mas fácil de decorar. Na segunda noite do Impulso, nos Silos, sala localizada numa antiga fábrica industrial, mesmo antes dos Chat GRP terem as honras de dar por terminada esta edição do Impulso com um concerto bem divertido e energético, o Agrupamento Musical Piscinas Municipais correspondeu às minhas expectativas, ao hype que alguns amigos caldenses me relataram sobre a banda.

Chat GRP. Fotografia: Nuno Conceição
Chat GRP. Fotografia: Nuno Conceição
Agrupamento Musical Piscinas Municipais. Fotografia: Nuno Conceição
Agrupamento Musical Piscinas Municipais. Fotografia: Nuno Conceição

Como descrever a sonoridade deste agrupamento? Da seguinte forma: os seus membros pretendem responder a uma pergunta que talvez nunca ninguém tenha feito – que tipo de pós-punk/pós-rock/pós-qualquer-coisa fariam os Black Country, New Road se tivessem crescido na Invicta e escutassem David Bruno e Nininho Vaz Maia? Escuta-se um sotaque cerrado, escutam-se guitarras perdidas de devoção aos Slint (distorção suja não falta) ou aos Tortoise (escola do jazz), escuta-se a procura por uma catarse que tanto vai beber ao emo e ao pós-hardcore dos anos 90 como ao pós-punk britânico atual. Estranho seria se esta banda não tivesse já uns quantos devotos às suas canções. Nos Silos, o moshpit e a dança foram impossíveis de ignorar, um bando de jovens a venerar uma banda formada por jovens oriundos de vários sítios do país que acabaram por se encontrar na ESAD. Grande concerto. Daqui para a frente, é para manterem a banda debaixo de olho. O curta-duração de estreia do Agrupamento Musical Piscinas Municipais é editado mais para o final do ano. Anotem – por favor.

No campo do emocional e do catártico, o Impulso teve mais para oferecer. Horas antes do Agrupamento Musical Piscinas Municipais ter tocado nos Silos, duas bandas mais “veteranas” – uma menos, a outra consideravelmente mais – da cena alternativa portuguesa consagraram-se na blackbox do Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha (CCC). Primeiro, bbb hairdryer. Logo de seguida, Vaiapraia.

Apesar de muitas oportunidades, os astros (mais uma vez) ainda não se tinham alinhado para conseguir assistir a um concerto de bbb hairdryer. Fez sentido, portanto, que a minha primeira vez a vê-los tenha sido “em casa”. Afinal, a história de bbb hairdryer começou numa casa no oeste, quando Elizabete Guerra escrevia canções no seu quarto. Agora, com a ajuda de chica (guitarra), Francisco Couto (baixo) e Chinaskee (bateria), pega nessas canções e noutras que escreveu entretanto – particularmente as do recente A Single Mother / A Single Woman / An Only Child, editado no final de 2024 pela Revolve – para erguer um concerto entre a teatralidade (tocam de costas viradas para o público) e o emo. Moshpit, crowdsurf, incursões pelo público por parte de Elizabete, gritos, berros, emoção. Fantástico e necessário este concerto, um que atingiu as expectativas elevadas criadas a partir dos relatos que me tinham chegado (e lido) sobre os concertos de bbb hairdryer.

bbb hairdryer. Fotografia: Nuno Conceição
bbb hairdryer. Fotografia: Nuno Conceição
Vaiapraia. Fotografia: Nuno Conceição
Vaiapraia. Fotografia: Nuno Conceição

Para muitos, incluindo Elizabete Guerra, Vaiapraia é a “melhor banda de Portugal”. Para quem encontrou a música de Rodrigo Vaiapraia ao longo dos últimos dez anos, a probabilidade de esta ter deixado marca é extremamente alta. Afinal, as suas cantigas são criadas para serem cantadas a altos pulmões, hinos queer e punk com o intuito de nos levar a fazermos parte de uma “aldeia” onde temos a possibilidade de encontrar a verdadeira liberdade de sermos quem quisermos. Com um CCC ao barrote, parece que ainda muita gente é capaz de se rever nessa ideia de aceitação coletiva que Vaiapraia tanto espelha, tão necessária nos dias de hoje.

Com muita gente já com as letras das novas canções do recém-editado Alegria Terminal na ponta da língua, Vaiapraia não perdeu tempo a incitar o público – e a mim – a cantar a uma só voz clássicos do passado (“Sinos”, “Amor Duro”, “Fogo Fera”, “Perfeito”) e novos (“Eu Quero Eu Vou”, “Ulucrudador”). Em palco, a presença irresistível de Rodrigo agarra-nos desde o primeiro momento, com o resto da banda – chica (sim, a mesma de bbb) na guitarra, April Marmara no baixo e Ana Farinha na bateria – a conferir o músculo necessário para que este punk queer se tenha feito escutar em todo o oeste. Se foi suficiente? Parece-nos que sim. Saí do CCC de coração cheio, mas com pena de não ter conseguido assistir ao concerto de Fotocopia antes de caminhar até ao Silos. Ouvi dizer que foi bom.

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Na primeira noite de concertos, a veia do Impulso foi bem menos rockeira. Começou multifacetada ao final da tarde, com concertos no jardim do Centro das Artes de moisés, excitante jovem rapper e produtor oriundo das Caldas que se estreou ao vivo no Impulso, e Joana Guerra, violoncelista lisboeta conhecida pela sua capacidade de distorcer o seu instrumento.

No caso de moisés, o espaço cedido pelo festival conterrâneo foi aproveitado para relembrar que a sua presença dentro do game do hip-hop tuga merece mais realce. A explorar a sua discografia, do bem recente À SOMBRA DO AMOR (editado no dia do concerto) até malhas de projetos mais antigos como Fragmentos de Uma Paixão Divina e Valsa até ao Fim, moisés mostrou que o seu rap-psicadélico-corno (influências: MIKE, Earl Sweatshirt, BROCKHAMPTON; escola: ensemblu) tem muito para dar. Escutem e anotem – caso ainda não o tenham feito.

moisés. Fotografia: Nuno Conceição
moisés. Fotografia: Nuno Conceição
Joana Guerra. Fotografia: Nuno Conceição
Joana Guerra. Fotografia: Nuno Conceição

Sobre Joana Guerra, a sua canção experimental revelou-se enternecedora e entusiasmante. Vocalizações animalescas e belas, violoncelo explorado além dos limites naturais do instrumento, percussão estranha a acompanhar. O resultado? Um concerto que me deliciou (gostei mais deste do que daquele a que assisti no Musicbox há uns meses), mas que me deixou a pensar que talvez o ambiente diurno não tivesse sido o mais favorável à violoncelista. Teria sido melhor se o seu concerto tivesse acontecido na blackbox do Centro Cultural das Caldas à noite em substituição do concerto de Subnoia. Apesar de ter sido um espetáculo competente, o som dos Subnoia, face a outros intervenientes desta edição do festival, pouco tem a acrescentar ao cânone do trip hop.

Quem entusiasmou – aliás, emocionou – foi Bia Maria. Com a ajuda do Coro Social do Bairro e da sua banda, a cantautora natural de Ourém presenteou o Impulso com o meu concerto favorito desta edição. Poucas palavras são capazes de descrever o sentimento de esperança que a autora de Qualquer Um Pode Cantar, álbum-manifesto que foi um dos melhores discos portugueses editados em 2024, ofereceu ao público que se deslocou até ao CCC.

Se no passado Bia Maria cantava somente canções tristes sobre amores e desamores, com o passar do tempo tem afiado a língua cada vez mais, utilizando a sua canção como forma de união e coletivização. Que ela é uma das melhores escritoras de canções da língua portuguesa contemporânea, não restam dúvidas. Com canções como “Para o Joaquim”, dedicada às crianças de Gaza vítimas de genocídio às mãos do Estado de Israel, ou “Marcha da Paridade”, pintada com tons de interseccionalidade feminista, como duvidar? A terminar, uma troca de papéis: Bia tornou-se parte do Coro e deu a voz principal a este para cantarem “Eu vi este povo a lutar (Confederação)”, de José Mário Branco. A questão é, será que a canção poderá espantar os males que por aí andam? Ainda é possível acreditar que sim.

Bia Maria com o Coro Social do Bairro. Fotografia: Nuno Conceição
Bia Maria com o Coro Social do Bairro. Fotografia: Nuno Conceição
YAKUZA. Fotografia: Nuno Conceição
YAKUZA. Fotografia: Nuno Conceição

Se o concerto de Bia Maria deixou o público emocionado, o concerto de YAKUZA devolveu um certo estado de euforia à plateia da blackbox do CCC. Por esta altura, essa euforia era necessária. Afinal, ao contrário do que aconteceria no segundo dia de concertos, a noite de sexta-feira no CCC foi marcada por alguns atrasos, levando a que o concerto dos YAKUZA começasse praticamente uma hora após o previsto. Foi essa a razão pela qual não consegui, na primeira noite, ir aos Silos ao encontro da sujidade dos Ideal Victim e dos COBRAFUMA. Contudo, o concerto dos YAKUZA não tornou triste essa ausência. Afonso Serro (teclas), Afta3000 (baixo), Pedro Ferreira (guitarra) e Luís Possollo (bateria) mostraram porque estão a soar “mais rock” do que nunca. Em palco, o seu excitante jazz transforma-se numa máquina de dança ruidosa, tornando-se impossível não abanar a anca com a execução delirante de faixas como “Penha” ou “Partido Alto”, extraídas do fenomenal 2. Mais uma vez, os YAKUZA provaram que são uma das melhores bandas nacionais.

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Tanto na sexta-feira como no sábado, sempre que vagueei pelas Caldas, fosse a que horas fosse, escutava-se música. Muita eletrónica, sem dúvida. De vez em quando, ouvia-se o ecoar de uma guitarra a rasgar à distância. À noite, após o término dos concertos do Impulso, as pessoas (maioritariamente jovens) saíam em direção de onde quer que o vento as levasse. As pessoas dançavam, cantavam na rua. Nas traseiras de uma escola básica, concertos de projetos como Proxy Fae (hyperpop) ou ANACRUZA (Músicas do Mundo-core) davam vida a um recreio árido e desabitado. Assisti ao segundo desses e nunca me senti tão em casa como naquele momento. O espaço público, finalmente, à mercê daqueles que lhes querem dar vida. Um microcosmos de poetas à solta. Assim foi o Impulso, assim foi o Caldas Late Night.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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No Oeste, um oásis de ruído à solta.

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