Editorial #50

Claro que verões sempre foram quentes. Lembro-me de ser miúda e estar esparramada no sofá da minha tia, as cortinas corridas, vendo desenhos animados enquanto bebia quantidades astronómicas de refresco e me abanava com um leque antigo que tinha encontrado numa gaveta. E mais tarde, durante a onda de calor de 2003, destilando na ruinha de Matosinhos em frente ao extinto Café Niko (mega mega rip) com o meu guitarrista, à espera dum tal de Chaka que havia de se tornar nosso baterista. Ou no ano seguinte, em pleno Euro 2004, fazendo som em Miranda do Douro debaixo de 40º à sombra no concerto que encerrou a tour. Ou ainda em pleno Alive 2019, o último festival que cobri para o saudoso The 405, em que nem o pequeno-almoço de champagne e donuts que tínhamos decretado para a mesa da imprensa internacional impediu que algumas jornalistas britânicas ficassem de molho uma boa parte do festival, vítimas dum golpe de calor que a piscina do Pestana Palace teimava não aliviar.

Quando os termómetros atingem uma determinada temperatura o cérebro fica meio como água, e este tipo de memórias sortidas nada estupidamente numa espécie de sopa de neurónios tão irreal quanto acarinhada. Sim, verões sempre foram quentes—mas tirando uma ou outra excepção nunca se tornaram impeditivos de gozar férias, festivais, e outros eventos ao ar livre. Numa indústria já meio moribunda, as alterações climáticas podem efectivamente ser a gota d’água que faz transbordar o copo: entre fenómenos climáticos extremos a ditarem cancelamentos de concertos, a pegada de carbono das tours (sendo que a maioria dos artistas também não se pode dar ao luxo de parar de tocar ao vivo), ou ainda o impacto ambiental do streaming (nem vamos falar de AI porque aí é tudo errado, a todos os níveis), é um pouco como estar na grade a saltar ao som do cabeça de cartaz enquanto à volta tudo arde. O que, nos tempos que correm, deixou de ser apenas uma metáfora

Não tenho respostas, não tenho soluções. Enquanto escrevo isto de portadas fechadas numa Paris cujas máximas não baixam dos 30 e picos há dias, penso nos refrescos da minha tia e no quanto esses verões pareciam extremamente quentes e intermináveis. E aí quase que me rio sozinha, sem saber se esta água que me escorre pela cara são lágrimas ou é apenas suor.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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