Muito mudou na vida do setubalense Rodrigo Vaiapraia desde 2020, ano em que Vaiapraia – a banda liderada pelo próprio – editou o muito celebrado 100% Carisma. Mudou-se, primeiro, para Glasgow, na Escócia, para continuar os seus estudos. Depois para Londres, dividindo atualmente o seu tempo entre a capital britânica e Portugal. Foi preciso repensar como ter uma banda nestas circunstâncias, circunstâncias essas que ainda incluíram uma pandemia pelo meio e muitas alegrias e tristezas que agora são espelhadas em Alegria Terminal, o terceiro longa-duração de Vaiapraia, editado no final de mês de maio pela Maternidade.
O que Alegria Terminal garante é que Vaiapraia não perdeu a sua capacidade de escrever grandes, grandes canções. É um disco que se encontra no meio-termo entre a pop mais cintilante de 100% Carisma e o punk emocional-cru de 1755, o álbum que, em 2016, transformou Vaiapraia de projeto promissor numa das melhores bandas nacionais. Esse é outro facto que não se alterou. A banda, hoje formada por Rodrigo Vaiapraia (voz, teclas, letras), Ana Farinha (bateria), April Marmara (baixo) e chica (guitarra), continua a ser uma das melhores bandas portuguesas ao vivo. E é essa qualidade de Vaiapraia enquanto banda ao vivo que faz de Alegria Terminal, gravado em live-take por Bernardo Ramos, um disco para já único na discografia do conjunto. A energia e emoção das performances ao vivo da banda foi finalmente captada com o nível de crueza certo, já que são influenciadas tanto pelo punk do final da década de 70 como pelo movimento de pós-punk londrino da atualidade.

Com o tempo, as canções escritas por Rodrigo Vaiapraia só têm ficado mais aguerridas. Punk, queer, emotivas, dardos pop atirados com precisão em direção aos nossos corações. É impossível não cantarolar as canções de Alegria Terminal, canções essas que já são clássicos da banda (e da música portuguesa) quase por defeito.
Antes do concerto na mais recente edição do Festival Impulso, nas Caldas da Rainha, a Playback sentou-se à conversa com Rodrigo Vaiapraia para perceber como foram estes últimos anos no Reino Unido e como as suas colaborações além-música influenciaram a criação deste Alegria Terminal.
Entre Estrelas e Trovões, o EP que gravaste com a Júlia Reis, e o lançamento deste Alegria Terminal, tocaste muitas das canções deste novo álbum ao vivo. Como é que nestes dois anos o tempo na estrada fez evoluir estas faixas?
Para mim, estar em palco é um momento que tem a dimensão de laboratório. É um momento para experimentar o que resulta com as pessoas, para ver como respondem ou não respondem às coisas novas. E como existe uma relação de distância entre mim e a banda com quem gravei o disco, há uma valorização maior do tempo que passamos juntos. Durante esse tempo, concentramos ao máximo as aprendizagens que saem daí. Isso é algo que acontece desde sempre. Até do primeiro disco [1755] para o segundo [100% Carisma] sinto que isso aconteceu. Nesse período, até dei muito mais concertos do que agora. O 100% Carisma surgiu como fruto desse período. Costumava dizer que se tivesse de escolher entre estar num estúdio ou estar a tocar ao vivo, escolhia só tocar ao vivo. Ainda concordo com isso, mas ao mesmo tempo, gosto mais da experiência de estúdio agora. Sinto que já não sou totalmente ignorante e já percebo minimamente de estar em estúdio para entender como fazer as coisas acontecerem ao meu jeito. Essa confiança faz-me sentir mais à vontade. Também foi por isso que não precisei de mais ninguém para liderar o disco além de mim. Ao início, uma amiga minha, a Katie O’Neill, fez parte do processo, mas teve de se remover por incompatibilidade de tempo. Ela não foi connosco até ao fim, mas ajudou a meter muita coisa do Alegria Terminal a andar.
Começaste o processo do Alegria Terminal no Reino Unido ou em Portugal?
No Reino Unido. Fui inicialmente para a Escócia em 2020. Passado um ano e tal, fui para Londres.
2020… ainda foste para a Escócia antes da pandemia da Covid-19 arrebentar ou já depois disso?
Foi durante [risos]. Mudei-me no início de setembro de 2020.
Essa mudança estava planeada ou foi algo que surgiu de repente?
Estava mais ou menos planeada. Soube que tinha entrado em mestrado na Escócia logo na primeira semana do confinamento. Depois, descobri que tinha uma bolsa de estudo para esse mestrado e que podia ficar um ano a estudar sem trabalhar. Era uma proposta irrecusável. Não havia sequer concertos nem nada para fazer por causa do confinamento. Não foi uma experiência fácil, claro, porque estava isolado num sítio onde não conhecia ninguém, mas tive a sorte de fazer vários amigos através do curso. Quando me mudei para a Escócia, comprei um baixo acústico numa loja de guitarras que havia na rua onde morava e foi nesse baixo onde fiz a maior parte das músicas deste disco e do EP que fiz com a Júlia. Essa compra foi determinante porque passei muito tempo em casa. Acabei por acumular muitas músicas que trouxe comigo para Portugal para ver com a banda. Fizemos uma residência em Castro Marim em 2022 onde-
Essa residência já teve o Bernardo Ramos a gravar ou foi só com a banda?
Só com a banda. Foi algo que surgiu através da Filho Único [agência responsável pelo booking de Vaiapraia]. Começamos a trabalhar em algumas das canções nessa altura, ainda com o Daniel [Fonseca] a tocar baixo. Nessa altura, resgatei também algumas das canções que acabaram por ir parar ao EP que gravei com a Júlia no final de 2022 e que saiu em 2023. Portanto, isto para dizer que não importa se estou a morar em Setúbal, em Lisboa, em Londres, ou em Glasgow, o processo funciona um bocado da mesma forma. Cada vez que trabalho em músicas novas, surgem sempre a partir das demos que faço em casa e que depois levo para trabalhar com a banda.
Nos dois últimos anos, também revisitaste demos antigas que incluíste na compilação Forte Como Vidro. Revisitar essas coisas do passado teve algum impacto na tua abordagem para com a composição das canções do Alegria Terminal?
Acho que há momentos em que fico entediado face à maneira como trabalho. Até digo: fico um pouco revoltado. Quando somos pessoas que fazem coisas como escrever ou música, somos sempre muito autocríticos. Isso às vezes pode levar-nos para um sentimento de paralisia em que nos censuramos de tal forma que não sai nada depois. Acho que voltar a ouvir as coisas que fiz quando ainda estava a tentar perceber como se fazia uma canção deu-me alguma energia. Fez-me perceber que há uma linha dessas coisas para aquilo que faço hoje. No fundo, sinto que estou a fazer a mesma coisa há muito tempo. Obviamente que as coisas mudam e as músicas não são todas iguais, mas parece que a necessidade é a mesma. Vem tudo do mesmo sítio, mas manifesta-se depois de várias maneiras conforme os contextos, as expressões, as dificuldades, e as facilidades. Durante muito tempo, não quis olhar para esses demos porque as achava [cringe]. Afinal, aquilo são canções que achei que não eram as melhores e foi por isso que não foram parar aos discos. Mas a certa altura, passei a achar que aquelas canções até têm a sua piada. Lançar estas demos não expandiu a nossa audiência, mas para quem gosta mesmo de Vaiapraia, acredito que possa fazer sentido escutar essas versões. Pelo menos, eu quando gosto muito de uma banda, gosto muito de ouvir os outtakes e as raridades para perceber como é que as bandas chegaram aos êxitos [risos].
A questão das canções surgirem do mesmo sítio lembra-me algo que disseste ao Ípsilon há alguns anos, que o teu primeiro disco, o 1755, era sobre os teus medos. A base da criação das canções de Vaiapraia ainda é esses medos?
Acho que não mudou. O medo ainda é um catalisador. No entanto, o que acho que me interessa agora é dizer algo que não é dito. Seja por ser tabu, um medo, uma inconveniência, ou simplesmente algo que as pessoas sentem que não pode ser digno de um poema ou de uma canção porque é demasiado corriqueiro, sexual, ou espiritual. No fundo, o que me interessa é ficar numa fronteira em que não pertenço nem a uma coisa nem outra. Gosto de ficar entre dois sítios. No outro dia, dizia a alguém que sinto que o nosso trabalho é demasiado pop para o punk e demasiado punk para a pop. E há determinadas coisas que não atingimos por estarmos nesse intermédio. Porém, interessa-me estar precisamente nesse intermédio a nível musical. Uma amiga minha que estudou medicina chinesa disse-me que, na medicina chinesa, o sítio onde tu sentes o medo é o mesmo sítio onde sentes tesão e estímulo sexual. É interessante essa confluência porque isso causa conflito, não é? A mim interessa-me esse espaço que existe quando a moralidade e as nossas crenças políticas entram em colisão com o nosso desejo, a nossa intimidade, e aquilo que queremos. A colisão do nosso lado racional e político com o nosso lado mais sensual e animal e de como é que podemos encontrar graça nos paradoxos existentes nessas relações. Ou seja, lá está: interessa-me vocalizar coisas que sinto que não são ditas em determinadas esferas públicas.
Na entrevista com o Davide Pinheiro para a Mesa de Mistura, falaste dessas entrelinhas por causa do comentário político e social presente no Alegria Terminal. Muitas dessas mensagens anti-capital presentes no disco não são assim tão diretas, como na “Ulucrudador”.
Sim. No fundo, essa música funciona como uma manta de retalhos de várias coisas. O sítio de onde vem tem muito a ver com a linha comunal entre pessoas que tanto adoro como odeio em que está presente tanto a questão do dinheiro como da dor. Sobre como existe uma cultura de conveniência e de como, por exemplo, a indústria dos fármacos lucra com isso. Em Londres, há uma disparidade enorme entre as pessoas que estão mesmo a brilhar na sua carreira e as pessoas que vivem mesmo com dificuldade. Isso existe em todo o lado, mas ali parece que é mais visível.
Estar em Londres mudou a forma como olhas para a tua música de alguma maneira?
Sim. Tive alguns momentos mais ou menos de “crise” porque não percebia muito qual era o meu propósito. Em Portugal, a minha música sempre foi recebida positivamente pela sua letra ou pela nossa performance enquanto banda, mas raramente faziam muito de mim enquanto músico. Em Londres, comecei a questionar: o que valem estas canções num contexto onde o público não fala português? Ao mesmo tempo, a nível logístico, houve momentos muito difíceis. Se já é difícil ter uma banda quando estamos todos na mesma cidade, imagina ter uma banda em que para dar um concerto, alguém precisa de apanhar um avião. Foi preciso algum tempo para percebermos como fazer tudo acontecer. Depois, em relação à questão da língua, senti que cá o público engajava com a música por outras razões. Comentavam a forma como eu cantava ou como tocava baixo, apesar de interagir com o público da mesma forma que interajo em Portugal. Acho que estar no Reino Unido também me deu uma noção de realidade e humildade que é importante ter. No Reino Unido, há mesmo muitos, muitos, muitos músicos e bandas. Isso é fixe, porque há sempre muita coisa a acontecer. Por outro lado, é uma indústria que está mesmo muito cansada e onde os músicos recebem poucas condições para tocarem ao vivo. Como há tantos músicos e bandas, há muita competição. Não é ideal as coisas serem assim, mas acho que é fixe uma pessoa não ter ilusões sobre o que te leva realmente a fazer música.
Volta e meia, surge a discussão de no Reino Unido, e particularmente em Londres, muitos dos artistas independentes terem sucesso porque já têm algum nível de privilégio à partida por virem de famílias mais abastadas. Raramente vêm da classe trabalhadora.
Há muitos artistas que vêm da classe trabalhadora, mas é malta que toca ao fim de semana e que depois tem de ir no dia a seguir trabalhar cedo. É malta que recebe muito pouco por tocar – ou mesmo nada – e que se esforça imenso para algo que depois tem muito pouco retorno. Depois, as bandas que tu vês a aparecer em editoras independentes – que, no Reino Unido, são editoras com recursos e dinheiro – vêm de determinadas famílias. Ou mesmo se não vierem, têm contratos que indicam avanços enormes de dinheiro para fazer as coisas acontecer. Os showcases a nível europeu ou do South By Southwest [SXSW] são coisas viradas para a indústria e não para um artista lucrar com isso. Se toda a gente que participa nessas coisas se recusasse a participar, elas não existiam. Mas eu entendo ambos os lados da moeda. A minha música está no Spotify e noutras plataformas de streaming. Se eu pudesse escolher, não estava. Porém, ao mesmo tempo, sinto que se não colocar a minha música no Spotify, estou a excluir uma data de pessoas que estão fora de um determinado nicho e que considero importante também escutar a nossa música se quiserem. Este é um assunto muito poroso. Acho que não há uma resposta certa.

Há um poema na tua zine Poucochinho que diz: “1/3 do meu dia foi passado em performance de pagar as contas / Várias vezes por hora penso em música”. Como vês a manutenção da precariedade no universo alternativo português?
O que estávamos a falar sobre Inglaterra também acontece em Portugal. A maior parte das pessoas que fazem música em Portugal são de classe média ou de classe média-alta. As exceções são pessoas que estão na posição de assinarem por majors e que não são dessa origem. Eu não estou a esconder nada. O meu pai é professor universitário, a minha mãe é assistente social, e eu sou de classe média. O que quero dizer com isto? Porque as coisas, efetivamente, pioraram. Quando comecei a fazer música, as coisas estavam mal porque ainda era o rescaldo das crises de 2008 e de 2011. Porém, entre 2014 e 2018, sinto que ocorreu um período de celebração no país da música portuguesa. Não sei se era porque havia menos dinheiro para trazer músicos de fora ou porque se tornou mais interessante o que se fazia em Portugal, mas parecia que havia coisas a acontecer. Havia muitos pequenos festivais e espaços que surgiram nessa altura – sendo que muitos desses espaços já fecharam. Eu também estou fora há cinco anos e apesar de ter uma grande rede de pessoas em Portugal, também a minha noção das coisas não é a melhor.
Mas sentes que há menos espaços para tocar agora em comparação com há uns anos?
Há menos espaços para tocar e os cachês não baixaram, mas também não aumentaram. O que isto significa? Se o custo de vida aumentou imenso, é como se o cachê fosse baixo. Agora, gastas muito mais dinheiro a ir de Lisboa para o Porto ou para a Guarda do que antes. Ou seja, se o teu cachê não acompanha os teus gastos, estás literalmente a meter menos dinheiro ao bolso. Mas este é um fenómeno comum a várias indústrias em Portugal. Agora, eu também ouço os meus amigos músicos a dizer que há menos concertos. Quando lançam um disco, dizem que estão a tocar pouco. Eu sou muito apologista das pessoas fazerem as cenas acontecer por si próprias mesmo não tendo recursos, mas reconheço o quão cansativo e insustentável isso pode ser. Por outro lado, ficar à espera sentado de um financiamento público também tem as suas coisas negativas. Ficas dependente do vento político dos tempos. Se o programa político desfavorecer o tipo de cena que estás a fazer por razões x ou y, já não há interesse em apoiar o teu projeto. No teatro, vejo muito isso a acontecer com amigos meus. Não vejo a precariedade a ser desmantelada, infelizmente. As coisas vão continuar precárias, senão piores. Digo isto de uma forma realista e não pessimista. Acho que não posso dar-me a esse “luxo” e acho que não podemos atirar a toalha ao chão. Há muito que podemos fazer com o que temos, mas existem limites. Para já, era importante existir uma maior articulação entre músicos a falar sobre os seus cachês. Existir maior transparência. Entendo que há um grande medo e nem sempre sou o melhor exemplo, mas daria para perceber se efetivamente isto é uma questão de precariedade ou se efetivamente há disparidades enormes nos valores a serem pagos.
Quando começaste a lançar música, foste apoiado pela Experimentáculo, uma associação cultural setubalense. Que importância vês na existência de associações como a Experimentáculo para a sustentabilidade do circuito independente?
É muito importante. No caso da Experimentáculo, a associação é dirigida pelo Pedro Soares. Nos últimos anos, a associação tem-se dedicado a intercâmbios europeus e projetos para jovens, mas durante muitos anos, organizaram um festival em Setúbal. Eu conheci o Pedro, disse-lhe que ia lançar um EP [EP], e ele disse que queria fazer uma cassete. Só o facto de ter uma pessoa mais velha que eu a acreditar em algo que eu tinha feito – eu nem 20 anos tinha, acho –, deu-me um sentido qualquer de validação. Foi também em Setúbal, no Capricho Setubalense, onde conheci a Shelley Barradas, com quem comecei a tocar. Foi a partir do meu trabalho com ela que conhecemos a Helena Fagundes, que depois convidamos para tocar connosco. Foi também num bar em Setúbal onde conheci a Filipe Sambado, quando toquei lá com uma banda minha de secundário. Ou seja, foi realmente através de coisas minúsculas, que se calhar nem dez pessoas testemunharam, onde se criaram instantes que foram momentos chave na vida de alguém que estava a sair do secundário e a perceber para que lado se virar. Esses espaços são mesmo importantes e acho que as associações estão neste momento ameaçadas. Não sei qual é a associação ou espaço que neste momento não está a fazer um crowdfunding a tentar arranjar uma estratégia de sustentabilidade financeira. Uma associação, um espaço comunitário, é uma ameaça ao poder político porque é uma ocupação de espaço público indesejada. Faz com que as pessoas estejam juntas e percebam que, juntas, têm uma força enorme. Ao mesmo tempo, também existe o poder de que espaços têm para funcionarem como uma bola de oxigénio para o dia a dia de alguém. A pessoa pode perceber que é mais do que uma pessoa que trabalha e paga as contas. Também estou a pensar nas pessoas que não são artistas sentirem que podem contribuir localmente para alguma coisa. Estes espaços oferecem um sentido não-digital para a vida, que é algo que eu próprio estou a tentar arranjar forma de fazer mais in-loco.
Na “Carpideira”, cantas: “Que é o que me magoa que me vai salvar”. Qual a tua relação com o mito de que, para fazer arte, é preciso sofrer?
Boa pergunta. Eu tento não subscrever essa máxima e acho que é um romantismo perigoso. Vem muito da maneira como a história da arte é escrita por pessoas que estão numa postura de privilégio e que muitas vezes falam de pessoas que viveram uma experiência de margem e que tiveram sucesso póstumo. Os mártires, cujo sofrimento é glorificado. Os Van Goghs, as Frida Kahlos desta vida. A letra da “Carpideira” saiu muito naturalmente e tentei mesmo aceitar o primeiro pensamento que saiu sem ultra-analisar ou censurar aquilo que tinha escrito. Acho que essa música tem qualquer coisa de fado. Existe um contraste. Escrevi primeiro o refrão e depois escrevi o verso. Os versos são super combativos. Passam esta ideia de, enquanto coletivo, ficarmos mais fortes. O refrão, depois, é só sobre querer chorar no colo de alguém. Acho que as duas coisas não se anulam. Quando uma pessoa está envolvida nesse tipo de luta, tem de estar constantemente a lidar com o luto e com a melancolia. O sofrimento é inevitável para qualquer pessoa, mas sinto que não é esse sofrimento que vai salvar alguém. É, sim, o que fazes com o que te magoa. Como te levantas.
Nos últimos anos, tens trabalhado mais com cinema, particularmente nas tuas parcerias com a realizadora Paula Tomás Marques, e teatro. Como é que essas experiências influenciaram a criação do Alegria Terminal?
Acho que têm feito de mim um melhor escritor de canções. A música para teatro e cinema tem um briefing. Ou seja, é-te dito que precisa de ter uma dada energia, um dado som. É-te dado um conjunto de referências e tu escreves. Sinto que respondo muito bem a esse tipo de limitações e deadlines. Depois, também é interessante porque as coisas que tenho feito, por exemplo, para a Paula, são depois interpretadas por outra pessoa. Para mim, isso é muito fixe, porque estou a pensar na voz de outra pessoa. Às vezes, sinto mesmo esta coisa de estar num lado e sentir que pertenço a outro. Quando estou a trabalhar em teatro, sinto que sou mesmo músico. Quando estou rodeado de músicos, sinto que sou uma pessoa que gosta de escrever e fazer coisas estranhas em palco. Quando estou a escrever – por exemplo, quando estava a fazer o meu mestrado -, sinto que só quero fazer canções. Acho que eu ter essa capacidade de ir de um lado para o outro melhora-me e faz com que eu fique mais ágil e com mais destreza a fazer cada uma das coisas e a responder a diferentes estímulos.
Sentes que essa destreza influenciou o processo para escolher as canções para este disco? Disseste que fizeste muitas canções, mas o Alegria Terminal só tem 11. Imagino que tenha havido muitas que ficaram de fora.
Acho que sim. Há uma noção de narrativa e dramaturgia que tenho que efetivamente foi cultivada pelas experiências que tive nas artes performativas. No entanto, para este disco, senti que esse processo de seleção surgiu como resposta ao disco anterior. Se tivesse lançado o 100% Carisma hoje, não teria metido algumas das músicas. Não estou a dizer que elas são más, mas se calhar teria feito um EP com três ou quatro das músicas do disco. Mas na altura, estava numa cena de que aquelas músicas todas representavam um período e que eram todas super importantes e tinham de sair já. Agora, acho que o 100% Carisma tinha sido um disco mais direto se tivesse menos uma canção ou outra. Portanto, se calhar agora fui super consciente com esse pensamento. Quando começamos a trabalhar no disco o ano passado, decidi logo que íamos focar apenas em canções específicas. Esse trabalho de filtragem contribuiu para o afunilamento de que canções escolher para o álbum.
Vi uma Mescla tua no Gerador de há uns anos que falava de Ocaso Épico e fiquei curioso. Que impacto tiveram as experimentações do Farinha Master na discografia de Vaiapraia?
Teve um impacto grande. O trabalho dos Ocaso Épico foi-me apresentado há muitos anos por um amigo de um amigo após um concerto de Vaiapraia. Ele disse-me que eu lhe fazia lembrar o Farinha Master, mas eu não sabia quem era. Fui pesquisar e descobrir quem eram os Ocaso Épico e que tinham sido uma banda da cena do Rock Rendez Vous, que curiosamente era localizado no bairro onde morava na altura. O Farinha Master era super performativo e bebia de muitas coisas. Era uma pessoa com muito interesse em cenas espirituais – foi das primeiras pessoas em Portugal a aprender a fazer yoga –, tinha muito interesse em filosofias não-europeias, e ouvia música experimental que não estava particularmente bem distribuída no país na altura. Ele era uma pessoa com um full-time no Tribunal de Lisboa e mesmo assim não deixou de viver a música e a arte de forma muito séria por causa disso. Foi uma pessoa que, pelo seu carisma e personalidade, conseguiu alienar e incompatibilizar-se dentro da própria cena musical. É interessante pensar em como a personalidade de um artista – ele ser mais ou menos afável ou mais ou menos correto – pode impactar se o seu legado é ou não mantido. Acho incrível uma pessoa ouvir o Muito Obrigado, o único disco gravado em estúdio pelos Ocaso Épico, e escutar um disco de 1988 com letras que são totalmente anti-coloniais.
A falar em influência, há uma nova geração de músicos, principalmente músicos queer, que te vêm como referência. Como te sentes com esse tipo de impacto?
Fico contente e um bocado sem jeito. É elogioso e às vezes eu tenho dificuldade em aceitar elogios. A razão pela qual comecei a fazer música é porque a música das pessoas de quem eu gostava teve um impacto enorme em mim. Sempre que conheço artistas que admiro, verbalizo isso. Então, quando vejo que há pessoas que têm uma relação muito próxima com o que faço, acho que no fundo esse é o maior sucesso que posso ter. Não tenho ilusões em relação à música como carreira. Há muitos limites e precisamente pela minha música veicular determinadas ideias e assuntos, sei que nunca vai chegar a determinados lados e estou em paz com isso. Agora, esse contacto direto é muito importante para mim. É por isso que dou muito valor aos concertos. Se alguém estiver num autocarro ou no seu quarto a ouvir a minha música e a sentir grandes cenas, nunca irei saber a não ser que a pessoa venha a um concerto. Portanto, quando essa pessoa vem a um concerto, sabe as letras todas de cor e vem falar comigo, é a melhor cena. Tenho muito a aprender com essas pessoas também.
Vaiapraia apresenta Alegria Terminal no dia 24 de julho na Faculdade de Belas Artes de Lisboa como parte das Noites de Verão da Filho Único. A entrada é grátis.
Fotografia de destaque: Inês Aleixo