No ano passado, numa entrevista ao Rimas e Batidas, Ricardo Farinha perguntou a Tiago Pereira, fundador do projeto Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPAGDP), se estaríamos numa “fase de revitalização do adufe”. O etnólogo respondeu:
“Ao mesmo tempo, é mais do que isso. Porque será a primeira vez que um instrumento em Portugal volta a ter o seu lado xamânico, que tem tudo a ver com o lado ritualístico de um ritmo contínuo… Quando o adufe já é usado nos rituais de ayurveda, etc., ele acaba por ultrapassar a música em si. É mais a questão da celebração e da festa. Tem muito a ver com o fim de uma pandemia, em que toda a gente pode ir para a rua, e toda a gente se pode juntar, e de repente o movimento faz com que as pessoas tenham esta possibilidade de libertação, de se juntarem e de fazerem estes grupos e coletivos.”
Essa reflexão é um retrato do que hoje se observa em artistas como Ana Lua Caiano, BANDUA ou Emmy Curl, que recuperam o tradicionalismo e o interpretam com tanto cuidado e respeito que as melodias e os ritmos facilmente ressoam em nós, por vezes, transformando-se em lágrimas ou arrepios. Mas também se nota, aqui e ali, a romantização excessiva da tradição, que quando espremida revela apenas mofo – questão que, e bem, deixamos para o Miguel Rocha. A verdade é que o impacto deste “revivalismo” da música tradicional é evidente. Eu própria senti-o no festival FESTA, em Ovar (sim, em Ovar não há só Carnaval), durante o concerto do grupo de adufeiras CRUA.
Ao contrário dos outros artistas mencionados, as CRUA encontram a modernidade na própria sonoridade e na essência primal do adufe e das suas modas associadas. Sediado no Porto, o grupo, formado por Ana Beiradomar, Bárbara Trabulo, Diana Ferreira Martins, Liliana Abreu, Raquel Melo e Rita Só, tem transportado a musicalidade e o tradicionalismo das suas origens, como a Beira Baixa ou o Alentejo, até aos grandes centros urbanos. Não se regem pela etnografia nem procuram afirmar uma identidade tripeira. O que defendem é a filosofia e o poder do adufe: a consciencialização do coletivo.
Quase como um cântico de sereias, a mensagem e a melodia das CRUA soam como uma lufada de ar fresco em tempos de individualismo e polarização. Confesso: fiquei presa nesse feitiço e não resisti a ir até ao Porto para conversar com elas.
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Estou num canto do salão da Associação de Moradores do Bairro Social da Pasteleira. À minha frente, Liliana Abreu e Rita Só rodopiam, cantam e batucam nos seus adufes, rodeadas por um círculo de idosos que as acompanham com segundas vozes e com o ritmo dos seus próprios instrumentos, feitos por eles e personalizados. Chamam-se Conjunto Alegria e fazem parte do projeto “Desassossegar”, impulsionado pelo Teatro do Frio e pelo programa Cultura em Expansão da Câmara Municipal do Porto.
Em teoria, era a primeira vez que ouvia aquele tema. Na prática, o meu corpo despertou para um conhecimento visceral. Dei por mim a bater o ritmo no caderno de notas e a murmurar a melodia para dentro. Um calor percorreu-me ao assistir àquele momento de partilha e música, mesmo quando protagonizado por pessoas sem formação musical e, em alguns casos, analfabetas. Esse é o poder inexplicável do adufe, um instrumento que basta encostar ao peito para nos convidar a tocar. Talvez já esteja gravado em nós, de forma ancestral.
Rita Só explica que nunca teve contacto familiar com o adufe: a sua mãe cantava no rancho folclórico, mas sendo de Gaia, nada a ligava à Beira Baixa e ao instrumento. Na infância, o único contacto com a música foi como aluna, em algumas aulas de bateria. Mais tarde, durante a licenciatura, aproximou-se da música tradicional. Olhou para ela “como música alternativa” e pensou que poderia ser usada como “contracultura: um reencontro com a nossa própria cultura, que pode falar de uma forma coletiva”.

Liliana Abreu acrescenta que foi a acessibilidade do instrumento que a atraiu para o adufe. Acessibilidade, tanto no modo de tocar como na possibilidade de o construir à medida de cada pessoa. Vindas de áreas como o teatro, o design, a biologia ou a pintura, essas mulheres encontraram no adufe um ponto de convergência. E foi desse encontro que nasceu a filosofia do projeto CRUA. Rita admite que um dos seus lugares favoritos “é atrás do adufe”, porque há “uma reverberação entre ti e o instrumento, quando cantas e tocas”, um encontro em que “a voz e o toque se misturam” e criam uma intimidade difícil de explicar.
Muito antes de ser CRUA, era uma oficina de adufes no STOP, conhecida como Adufeiros do Carvalho. “Passou muita gente por essa oficina, e cada um trazia uma música. Havia muita partilha”, lembra Liliana. Durante dois anos foi assim, até que a pandemia obrigou a restringir o grupo. “Ficaram quatro pessoas, depois cinco, depois seis. Até que percebemos que já não era uma oficina, mas sim uma banda só de mulheres.” Não como protesto, mas como continuidade de um legado. Liliana explica que, ao fecharem-se nesse grupo restrito, perceberam “a importância da condição de ser mulher” e as questões que as atravessavam nesse momento. “Isso fez-nos continuar, para levar adiante a mulher do adufe, a mulher que queria dizer alguma coisa, e que hoje tem mais possibilidade de falar do que as adufeiras dos anos 60.”
Para Rita, esse espaço foi sobretudo um refúgio. A pandemia trouxe-lhe “solidão e desconfiança do vizinho”, mas de repente havia um lugar onde podíamos “cantar e tocar juntas”. “Foi um alívio. Era cantar em desabafo.” Desabafo esse que transformou em repertório. As músicas, definem, são “afetivas”. Partem sempre das letras que lhes dizem alguma coisa – descobertas em plataformas como a MPAGDP, a memoriamedia ou em antigos cancioneiros.
A revitalização do adufe e das suas modas
Conscientes que o adufe sempre foi o brasão de Idanha-a-Nova, por de lá ser oriundo, CRUA é a prova que o instrumento e toda sua estética e sonoridade tem vindo a ganhar cada vez mais recetividade e expressão no litoral e nas zonas urbanas do país, por onde passa por um processo de revitalização. Este grupo de adufeiras desafiou-se em manter a estrutura tradicional: percussão (adufe e outros elementos) e a voz – em coro, claro. Contudo, admitem que não é obra fácil. “Como é que o adufe pode ser audível? Como é que podemos levá-lo até às pessoas que não têm um conhecimento profundo sobre as adufeiras? Como é que pode levar uma mensagem que nós consideramos que a música tradicional tem?”, questionaram-se.
Mas a música tradicional sempre teve em si a resistência que canta as inquietações de todos nós – é exemplo do trabalho Cantares do Andarilho (1968) de Zeca Afonso. “Poderia ser metafórica, dependendo do contexto e da altura, mas ela tem esse lugar. É um lugar onde podes falar de amor, que para nós agora já não nos é estranho, mas era há 50 anos. Ou onde podes sonhar com outra vida e outro patrão. E a questão é: como é que conseguem levar estas canções até ao público atual?”
Para as CRUA, tocar música tradicional hoje é assumir a linguagem sem se fechar nela. Querem expandi-la, tirando o pó a modas de adufe que poderiam cair em desuso. “Temos uma riqueza enorme na música tradicional em Portugal. É natural que muitos grupos andem à volta dos mesmos temas, criando até hits”, diz Liliana. Conscientes de tudo isso, para o grupo a ideia sempre foi mudar de cor, mudar de forma, mas sem mudar a raiz – e aqui elas referem que a raiz da música tradicional está na capacidade que ela tem de ser tão horizontal como simples, permitindo que qualquer pessoa possa cantar. “Nós queremos que ela [música tradicional] tenha a mesma acessibilidade que tem a música das Adufeiras da Casa do Povo do Paul”, defende Rita.
Questionadas sobre a comercialização, por vezes descontextualizada da música tradicional e do adufe, o grupo olha para a situação com um olhar positivo.”Há espaço para quem usa o adufe como adereço, como instrumento musical ou para criar um coletivo. Ainda bem que está na moda e que as pessoas reconhecem. Há alguns anos, havia quem nem soubesse o que era um adufe. Não vejo mal nisso, simplesmente não é o meu caminho”, admite Rita.
CRUA como adubo germinante da música de adufe
Por mais contagiantes que sejam os concertos das CRUA, todo o trabalho acontece fora do palco. Em cima dele, vemos apenas o resultado final de todo um processo. De tempos em tempos, o grupo partilha os seus conhecimentos para oficinas de canto, toque de adufe e de construção do instrumento. “Aprendemos que cantar juntos nos aproxima, mesmo que as nossas ligações políticas sejam antagónicas. A música cria um espaço de conversa, e isso é extraordinário nos dias de hoje. Dá-nos esperança”, confessa Liliana.
Em termos musicais, o grupo admite que expandiu a sua técnica e conhecimento do instrumento. “Descobrimos outros toques em pessoas que não sabem tocar, porque estão a interpretar um ritmo ternário à sua maneira e aproprias-te também”, conta Rita. Musicalmente, admitem ter expandido a sua técnica. Rita explica que chegaram a descobrir novos toques em pessoas sem experiência: “alguém interpreta um ritmo ternário à sua maneira e nós apropriamos-nos também”.
Regresso ao início desta peça. Estou arrepiada com a partilha em círculo entre o Conjunto Alegria e as CRUA. É mais uma prova de que o essencial acontece fora do palco. Este momento tem origem em 2020, quando o Teatro do Frio convidou o grupo a visitar as casas de idosos da Pasteleira. Cada visita era um encontro: entravam, ouviam as memórias guardadas, aprendiam uma receita, cantavam juntos e, no final, partilhavam a mesa. A canção escolhida para simbolizar esse momento de união é a mesma que agora ecoa no salão.

O trabalho de intervenção não se ficou por aí. No dia 1 de outubro, as CRUA lançaram “Canção Beiroa”, de João Loio, membro do Grupo de Acção Cultural (GAC), convocando a participação de pessoas em situação de migração e refúgio no Porto. Homens e mulheres partilharam as suas histórias, que se fundiram com as vozes e os adufes do grupo, ocupando ruas e lutas. “Mais do que mudar a letra ou o ritmo, o que mudou foi o nível de consciência sobre a situação que vivemos hoje”, explica Liliana. A canção, originalmente escrita sobre os portugueses que emigraram para França nos anos 70, ressoa agora no presente porque “as razões são exatamente as mesmas, problemas económicos, sociais, políticos, guerra e afins”. Esse trabalho de campo, ao escutar histórias vindas de contextos tão diversos, permitiu que o novo tema nos convidasse não apenas a ouvir música, mas a ouvir uns aos outros.
Da Beira Baixa ao Porto, dos cancioneiros antigos às vozes migrantes que hoje se juntam ao círculo, o que ecoa é sempre o mesmo: a capacidade da música tradicional de nos lembrar que não estamos sós. Entre palmas e vozes, entre memórias e futuros possíveis, as CRUA mostram que a comunidade pode nascer de um compasso simples e de um gesto coletivo. Talvez seja essa a magia do adufe: a de transformar o íntimo em comum, e de fazer com que, pelo menos por instantes, o mundo bata no mesmo ritmo.