Parece-me interminável o questionar da relação entre o ato de criar e o mundano. Em que medida a urgência da produção artística é a consequência direta de uma linguagem estabelecida ou, por oposição, um processo que ultrapassa o mero terreno? Em que medida o impulso criativo pode ser apenas constituído por processos interiorizados, disciplinares e metodológicos?
Se recuarmos ao século XIX, no epíteto da carreira de Beethoven, encontramos a história de um músico cujo percurso se debruçou essencialmente numa metodologia e rigor técnico que fez muitos atribuir-lhe o cunho de génio. Mas não terá sido aquilo que nos foi narrado apenas o perscrutar de uma criatividade institucionalizada? Durante anos foi a precisão técnica que dominou os processos criativos e, consequentemente, a sua validação – levando muitas vezes à ocultação de outras formas de entender o sistema como um todo.
Por um lado, em Musical Composition and Mystical Spirituality, Brian Inglis propõe uma análise da música mística a partir de uma distinção essencial: a música pode ser compreendida através de duas formas de experiência – o transe (inward mysticism) e o êxtase (outward mysticism). No primeiro, encontramos uma disciplina interior e um método; no segundo, a experiência de um sujeito possuído por algo maior do que si mesmo. Ao cumprirmos uma reflexão sobre esta dualidade podemos instruir uma parte crucial da reflexão sobre a génese e a intencionalidade do ato criativo a partir de uma diferente perspetiva.
Quando entendemos a música – e a arte em geral – como uma expressão mística, não atenuamos a importância da técnica, mas acabamos por relacioná-la com experiências que desafiam os dogmas de uma abstração incólume que ainda nos condiciona. Se introduzirmos fenómenos como a mediunidade, e a reconhecermos como gesto artístico, podemos até desmantelar uma trajetória estética centrada na técnica e na autoria individual, reconfigurando-a como travessia sensível e relacional – um processo de escuta, recepção e transmutação onde a criação emerge como mediação entre o visível e o invisível.
À primeira vista, esta perspetiva pode parecer irreconciliável com o materialismo dialético marxista; no entanto, a proposta aqui não é a exclusão dessa matriz crítica, mas sim a sua expansão – uma abertura reflexiva que permita conceber a espiritualidade não como antítese da materialidade, mas como dimensão complementar e potencialmente reveladora no processo criativo.

Já depois de assistir ao concerto cuja experiência motivou este ensaio, deparei-me com um artigo na New Yorker, de Alice Gregory, sobre Hilma af Klint, artista cuja obra foi quase inteiramente vedada ao público durante a sua vida. Hoje, a pintora sueca é reconhecida como pioneira do abstracionismo, antecessora até de Mondrian e Kandinsky, ainda que tenha permanecido por décadas na periferia da história da arte. Ainda que não seja explícito ter sido este o único motivo do afastamento da artista dos circuitos institucionais, Klint declarava criar a partir da sua mediunidade. O facto do seu reconhecimento se ter dado postumamente é mais um exemplo de marginalidade a que as práticas mediúnicas têm sido historicamente votadas. Não tivéssemos nós que falar sobre a perseguição de Salém, para recordar como o apagamento histórico se sustém em estruturas patriarcais e institucionais que acabaram por favorecer processos criativos – metodológicos, formalizados – enquanto marginalizavam outras formas de criação que escapavam à “norma”.
Ao recordar e percorrer todos os concertos que experienciei em 2025, retomo a memória mais recente a um dos momentos mais impactantes do festival Vale Perdido, em Lisboa. Não apenas por ter sido programado para um sacro-espaço, como pela própria composição conter em si uma outra dimensão no ato de escuta.
Entre canto lírico e glossolalia, invocação e ectoplasmia, foi na Igreja St. George que Heinali e Andriana‑Yaroslava navegaram a obra de Hildegard of Bingen, através de um concerto em que os sintetizadores e a voz se uniram em camadas temporais não lineares – pura reflexão do tal “êxtase” de que falávamos. A flutuação do cenário enquanto se interpretavam os escritos da Sibila do Reno amalgamou intencionalmente três cores indissociáveis do que se tratava: o roxo, como cor da intuição; o amarelo, como cor do karma; e o azul, como cor da comunicação. Uma noite em que se provocou uma total presença inscrita no espaço, ampliando a mediunidade das peças da monja beneditina interpretadas pelo duo ucraniano através de drones eletrónicos, respirações estendidas, dissonâncias e luz.
Este encontro artístico serviu como ponte para pensar não apenas a obra de figuras como Hildegard of Bingen e Hilma af Klint, mas também – inevitavelmente – para refletir sobre um conjunto de forças históricas que atravessam e condicionam a arte. Cada uma destas artistas, à sua maneira, resgata um conhecimento que foi historicamente silenciado por fogueiras, diagnósticos psiquiátricos e condescendência intelectual.

Hildegard of Bingen (1098–1179) representa uma forma singular de espiritualidade integrada, onde visão mística, teologia, música, e cosmologia se fundem. Por volta de 1141, começou a escrever a partir desses estados de “êxtase”, onde visão e interpretação se entrelaçam em texto, imagem e som, dando forma a uma teologia salvífica, mediada por uma estética profundamente encarnada.
A posição de Hildegard no século XII foi pura subversão: como mulher espiritual num contexto patriarcal e monástico rígido, conseguiu exercer autoridade e legitimar uma forma de conhecimento frequentemente marginalizada – a experiência mística feminina – no seio da própria estrutura eclesiástica.
Ao abordarmos a mediunidade e artistas como Hildegard e Hilma af Klint, percebemos que a espiritualidade emerge não como uma categoria religiosa isolada, mas como força criativa, intuição ampliada, e canal de acesso ao invisível. Ela manifesta-se no corpo e na escuta atenta traçando um limite dos sistemas e das instituições que perseguem a compreensão artística a partir de si mesmas. A arte deve ser comunicação entre o além e o terreno, entre o visível e o invisível. E deve também desafiar-nos a repensar a experiência do nosso corpo, a forma como nos vemos, e a forma como tentamos entender o mundo. Na Igreja St. George, foi isso que aconteceu.

