Mana Sara do lado de lá. Sara Mana do lado de cá.

Uma semana depois, o meu feed do Instagram mantém-se um scroll infinito de homenagens a Sara Tavares. Afirmo com toda a certeza que foi uma das figuras mais importantes da música nacional dos últimos 30 anos, mas o vácuo habitual do sistema esvaziou a relevância do assunto e, claro, da sua carreira. O Carlos Pereira escreveu-o melhor que eu:

Após a notícia da sua morte, as redes sociais transformam-se numa espécie de ponto de encontro onde se fazia uma vigília em sua homenagem, à sua memória. Houve quem partilhasse áudios trocados com a Sara, onde era possível ver a sua doçura, houve quem partilhasse histórias, músicas e momentos vividos com a artista. Enquanto isso nos canais de televisão continuavam as mesmas notícias do costume, com os mesmos comentadores do costume, a dizer os mesmos nada de costume. Não fosse este um país de costumes. Era como se tivéssemos presentes dois países distintos. O que tinha perdido uma das figuras mais importantes da sua arte. E outro: o que não quer saber. Por muito menos interromperam-se emissões, fizeram-se diretos, e emissões especiais.

Não tive a honra de conhecer a Sara Tavares, mas o seu trabalho acompanhou-me quase desde que me lembro. Tinha cinco anos quando a vi ganhar o Chuva de Estrelas e o Festival da Canção. Quando, em 2018, Sara Tavares regressou a esse palco para uma prestação ao lado dos embaixadores da Nova Lisboa musicalBranko, Dino D’Santiago, Plutónio e Mayra Andrade – o valor simbólico desse momento resume parte da memória que a sua obra define. Ela é a primeira a aparecer, ela que abriu espaço para que cada um deles também pudesse brilhar. A cristalização de Sara Tavares numa memória colectiva que reduz o legado de uma artista ao seu sucesso mediático é uma armadilha do sistema, mas ela nunca se deixou intimidar. Confrontada com a recordação da sua longínqua participação, arregala os olhos e afirma “desta vez estou a chamar a música que eu gosto, com a qual me identifico”.

Sara Tavares tinha apenas 15 anos quando se deu a conhecer ao grande público. Depois da dobradinha nos concursos musicais, vieram os filmes da Disney e a sua voz continuou a popular os recreios do país. No início foi assim: a voz dela como banda sonora de caminhos pop amplificados pela máquina mediática. Mas a Sara sabia que o seu chamamento musical era uma jornada espiritual diferente. Não é por acaso que a primeira aventura (quase) a solo é um álbum de gospel (ao lado dos Shout!). Com o tempo, a música da Sara mudou, e considero-me muito privilegiada em fazer parte de uma geração que assistiu a esse processo de auto-descoberta, de encontro da sua identidade através da música.

Mi Ma Bô (1999) deixava adivinhar parte desse caminho: o título do álbum em crioulo e o abraço da herança cabo-verdiana enquanto parte de si e da sua expressão artística. Mas a grande viragem chegou em 2005, com a edição de Balancê pela neerlandesa World Connection. O requinte da produção valeu-lhe um lugar na lista dos melhores do ano cá dentro e lá fora, incluindo o farol britânico BBC. Apesar da recepção calorosa do público e das sucessivas validações da crítica especializada, Sara nunca se deixou levar por cantigas impostas por algo que não era a sua verdade. Recusava-se a simplesmente cantar músicas de outros artistas, tinha de imprimir a sua própria visão em qualquer composição que lhe passasse pelas mãos. Cantava num crioulo mesclado de variantes, desenhado à medida daquilo que a expressão numa língua que sempre esteve na sua vida, mas que só adoptou como sua já em adulta, permite. Sem ilusões sobre o que o peso que a indústria podia ter nas suas ambições, o seu posicionamento em relação à indústria do exotismo que vendia “world music” sempre foi crítico. Pouco depois de Xinti (2009), a doença afastou-a dos palcos e da música, mas assim que conseguiu foi voltando devagarinho. Essa força para continuar a criar, continuar a cantar, esteve lá até ao fim – nos últimos doze meses, lançou quatro singles, deixando antever um regresso aos álbuns, mas o tempo não lhe chegou.

O impacto que teve numa geração de artistas afro-descendentes eleva a representação que ofereceu a estes músicos a um patamar de relevância extraordinário, mas o seu legado musical extravasa em muito as questões identitárias. Mesmo sem o alarido ensurdecedor das constelações pop, a sua música era querida e ouvida com uma adoração justificada pela verdade do seu talento e trabalho. De “Nha cretcheu” a “Coisas Bunitas”, passando por “Balancê”, “Lisboa Kuya”, “Ponto de Luz”, “Exala”, “Eu sei” e inúmeras participações em que a sua voz se fez ouvir, são músicas que persistem nas listas de melómanos e de fãs mais devotos, mas também nas vidas de pessoas que ouviram nas canções Sara uma cumplicidade que só se sente em versos e acordes que saem mesmo do coração. Uma curiosidade interessante sobre a importância da sua música para o público é a entrada de Mi Ma Bô nas tabelas de álbuns mais vendidos em Portugal em 2018, quase vinte anos após a sua edição.

“Há uma Sara Tavares a cada 100 anos”, disse Aline Frazão ao Público. Certamente, poucos artistas serão tão completos: Sara Tavares cantava como poucos, mas também escrevia, compunha, tocava, arranjava, produzia, editava e misturava muita da sua música. E emprestava sem pudores o seu talento a outros, brilhando sempre sem nunca ofuscar: a sua lista de colaborações vocais enquanto convidada vai de Moullinex a Laura Pausini, passando por Nelly Furtado, Ala dos Namorados, Buraka Som Sistema, Carlão, Tiago Bettencourt, Richie Campbell, Slow J, os projetos Língua Franca e Filarmónica Gil, entre outros. E isto é só obra gravada. Ao vivo, Sara Tavares oferecia a sua presença como plataforma de lançamento a outros artistas (como a própria Aline, por exemplo), elevando qualquer concerto, e sem nunca ter medo de construir pontes entre géneros.

Nas próximas edições da Playback, escreverei sobre os álbuns que Sara Tavares deixou, para que a sua obra não se perca na espuma dos dias, numa tentativa de reafirmá-la como figura maior da cultura nacional.

Este verão, um amigo meu casou-se ao som de “Eu sei”, do seu primeiro álbum a solo. Não me lembro há quantos anos não revisitava aqueles versos, mas enquanto a melodia alagava a Sé da Guarda as lágrimas espreitaram e o coração apertou. Achei engraçado ouvir a Sara dizer, durante uma entrevista em 2012, que era uma pessoa relativamente desapegada, quando a história que as mensagens dos que se cruzaram com ela escrevem é outra. A Catarina Furtado chamou a Sara de “algodão-doce”, e as homenagens dos que se cruzaram com ela vêm todas embrulhadas em ternura e amor, muito mais do que os pêsames que a trágica notícia impõe. Era sempre o amor que transbordava na sua relação com os outros e, claro, na sua obra. Creio que a única cover que deixou gravada é uma versão de “Problema de Expressão” dos Clã. A música que deixou cá fora sublinha uma alma que encontrava no amor a sua maior força.

E eu serei para sempre sortuda por ter na minha vida uma banda sonora assim.

Escuta abaixo uma playlist com 35 canções onde Sara Tavares emprestou a sua voz.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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