A primeira – e única – vez que vi Amuleto Apotropaico ao vivo foi em 2023, na edição desse ano do Zigurfest. Na altura, fiquei impressionado. A química entre Francisco Pedro Oliveira (guitarra, flauta, eletrónica) e António Feiteira (percussão, eletrónica), as suas explosões catárticas de rock ruidoso, o seu domínio de um “jogo de opostos entre a tensão e a libertação”, como escreveu o Filipe Costa nestas páginas da Internet sobre o projeto, deixaram-me com água na boca para perceber o que se seguiria para o duo. Ficou a promessa no ar – em 2023 – que o seu disco de estreia estaria para breve. Porém, talvez António e Francisco não esperassem que esse “para breve” significaria quase dois anos.
Contudo, às vezes, é necessário que assim seja. As sementes precisam de tempo para germinarem, as ideias musicais precisam de tempo para se consolidarem. No caso dos Amuleto Apotropaico, o tempo é essencial. É dono do duo, das suas canções, canções que na realidade de canção têm pouco, mas que não deixam de invocar infinitas memórias nos seus sons delineados por uma experimentação profunda e uma ancestralidade necessária.
No álbum de estreia homónimo do duo, editado na sexta-feira passada pela estreante Perf, Francisco Pedro Oliveira e António Feiteira apresentam quatro canções que são muito diferentes daquilo que vi em Lamego há dois anos. De rock, têm pouco. De ruído, ainda menos. As guitarras que se escutam em Amuleto Apotropaico não são barulhentas. Pelo contrário, soam texturais e praticamente limpas de qualquer sujidade. A bateria, essa, também não é agressiva. A percussão pulsante de António Feiteira aconchega as experimentações de Francisco Pedro Oliveira com guitarra e flauta e, por consequência, os nossos corações e preocupações. Resultado? Malhas dispersas que soam a memórias distantes. Dissonantes, confusas, emocionantes. A questão é: que memórias?
Entender a génese dos Amuleto Apotropaico é crucial para entender o seu álbum de estreia – e a sua música. Francisco Pedro Oliveira e António Feiteira cresceram ambos em Santa Maria da Feira, localidade do distrito de Aveiro pertencente à zona das Terras de Santa Maria. Esta é uma zona marcada pela influência religiosa e mística, local onde lendas e folclore provinciano se foram mantendo como parte da gíria ao longo das mais recentes gerações. A música que os Amuleto Apotropaico apresentam no seu álbum de estreia tem muito esse toque – o místico, o fantástico, as memórias de um tempo passado que tanto tem de real como de imaginário. Onde está o limite entre o vivido e o simulado? Entre o esquecido e o relembrado? Entre a margem e o centro? Questões que ocupam a mente de Francisco Pedro Oliveira e António Feiteira, questões para as quais tentam apresentar uma resposta neste álbum, resposta essa que acaba por posicionar este disco no mesmo campo lírico que Gótico Português dos Glockenwise.
Tal como os seus camaradas oriundos de Barcelos, os Amuleto Apotropaico procuram na sua génese uma certa espiritualidade perdida entre a nostalgia de um passado perdido e o futuro que pretendem construir sem ser kitsch. Tal como os Glockenwise cantam sobre a sua “margem”, também os Amuleto Apotropaico tentam pintar um retrato sobre a sua ancestralidade marginal. Para o fazerem, refletem sobre o tempo. O tempo que passaram na sua terra e como isso os impactou. O tempo que passaram a tocar ao vivo, a explorar em estúdio, e como demoraram a conseguir colar estas canções a partir de momentos ao vivo de concertos do duo dos dois últimos anos. O seu presente nasce a partir dessa exploração de um passado mais recente e outro mais antigo – a ancestralidade só se constroi assim.
Em “Apotropia I” e “Apotropia II”, dois capítulos interligados do álbum, o duo invoca rituais ancestrais ligados ao paganismo nortenho; em “Albedo e Rito”, o free jazz troca-nos as voltas entre passado, presente e futuro; em “Bruxa do Calhau Branco” – excelente título -, os sons tristes de florestas encantadas vêm ao de cima, conferindo tons melancólicos que lembram muito “Água morrente” dos Glockenwise.
É impossível desassociar estas obras de um determinado pathos ligado à experiência de viver na margem. Se o tempo passa e nada muda, como podemos esperar resultados diferentes? A melancolia parece ser a mesma, o esquecimento idem. Tristes continuamos em busca de um fado que nos possa iluminar o caminho, que nos permita finalmente ascender a escada que teima em aparecer. O brilhantismo de Amuleto Apotropaico, e particularmente dos últimos momentos luminosos de “Bruxa do Calhau Branco”, é precisamente esse. No meio destas experimentações estranhas, surge uma esperança mínima de que é possível encontrar paz e alterar o rumo das coisas, de que é possível finalmente abandonar o nosso destino enquanto gente de margem aparentemente fatal. Disco maravilhoso, experimental, e belo, que invoca o passado e comenta o presente sem cair numa alegada portugalidade bacoca e saudosista. Escutem. Com atenção.