Gótico Português: Glockenwise e uma visita à “margem” quimérica

A “margem.” Definições. Linha ou zona que limita um espaço. Limite externo de algo. Borda. Orla. Beira. Cercadura. Periferia. A “margem” pode ser isto tudo e, na realidade, é (ainda) mais. É na margem onde ocorrem os fenómenos de interesse, onde se criam (e se procuram) focos para cenas que depois viram regra para o mainstream. É na margem onde surgem as estórias que nos fascinam, capazes de tanto nos poderem horripilar como encantar. Acima de tudo, é da margem que eu venho.

Em Gótico Português, os Glockenwise olham para a margem como um conceito idílico. Descrevem-na através de canções recheadas de melancolia, que no seu cenário lírico à la southern goth (influenciados pela sua visita ao Museu de Lamas), ajudam a caracterizar um local, quiçá imaginário, quiçá real, que se preza pelo seu teor fantástico e fantasioso. Como recheio deste cosmos sonoro, ao quinto disco – o segundo de uma nova adolescência iniciada com o mui-aclamado Plástico, editado pela Valentim Carvalho em 2018 –, Cláudio Tavares (bateria), Nuno Rodrigues (vocais, guitarra, letras), Rafael Ferreira (guitarra, coros) e Rui Fiusa (baixo, coros) reformulam aquilo que podemos esperar da parte destes bons rapazes de Barcelos.

Se Plástico era um disco direto (todavia, qualquer sinal de poptimismo em Plástico é destruído por todo o cinismo pós-moderno que caracteriza as letras do disco), Gótico Português quase que inverte totalmente os sentidos dos ponteiros do relógio que dirige a vida criativa dos Glockenwise. As canções de Gótico Português são as mais longas e progressivas que já escreveram – escapa-se a estes termos a fantástica “Besta”, a mais direta e “pop” (ruidosa, como deve ser) de todo o disco –, e a melancolia nostálgica é a constante que conecta a quimera do álbum, esteticamente o mais consistente da sua carreira.

A melancolia dos Glockenwise não é inerente a Gótico Português. Ao longo dos seus trabalhos anteriores, ela sempre esteve lá, mas  neste trabalho é o acompanhamento que inseriram para explorar noções de portugalidade que, além de românticas e fantabulásticas, surgem como consequência da própria maturação da banda. Se os Glockenwise passaram os seus três primeiros discos – Building Waves (2011), Leeches (2013) e Heat (2015) -, cantados em inglês, a tentar utilizar o rock e o punk como escape para a monotonia aparente de um local como Barcelos quando o Milhões de Festa (saudades…) não ocorria, a nova maturidade encontrada com Plástico permitiu-lhes vislumbrar com novos olhos as suas raízes.

Glockenwise
Glockenwise. Fotografia: Renato Cruz Santos

Esses novos olhares da banda encontrados em Plástico servem como base para Gótico Português. Em Plástico, a banda já piscava o olho a alguns momentos mais estridentes, texturas e melancólicos – “Dores” ou “Dia Feliz,” por exemplo -, é em Gótico Português que essas noções passam a ser o prato principal da sonoridade do álbum. Escutam-se manifestações mais “góticas” – à la Manchester dos anos 80, evidenciadas em faixas como “Gótico Português” ou “Lodo” – e ruidosas – dream pop à la Disintegration, dos The Cure, bem evidente na ambiência das guitarras de “Natureza” ou na dissonância shoegaze da incrível “Vida Vã” (nome da editora criada pela banda para auto-editar Gótico Português)  –, e neste disco, os Glockenwise acabam por delinear uma identidade que lhes faz todo o sentido tendo em conta o seu percurso (escute-se alguns dos momentos mais ruidosos de Leeches, por exemplo.) “Acho que esta banda que nos estamos a tornar, a banda que agora podemos ser, é aquela que sempre devíamos ter sido.”, contava Nuno Rodrigues em entrevista à Time Out Lisboa, sobre a “nova” vestimenta da banda.

Tenho algo a admitir: os três primeiros discos dos Glockenwise não me dizem grande coisa. Da malta que se estreou em 2011 – Capitão Fausto, Os Capitães da Areia, Trêsporcento, You Can’t Win, Charlie Brown, Prana, a explosão oficiosa dos 1001 projetos da Flor Caveira, etc. -, os Glockenwise foram, durante muito tempo, a minha “ovelha negra” dessa colheita. O seu rock soava, num primeiro momento (Building Waves), demasiado jovial e pouco aprimorado; em Leeches, a coisa melhorou, mas em Heat, basta dizer o seguinte: a reformulação de “Heat” para “Calor”, com Rui Reininho, é infinitamente superior a qualquer música presente nesse seu terceiro longa-duração.

No entanto, com Plástico, a minha relação com a música dos Glockenwise mudou. O moldar do som da banda através de referências de pop rock dos anos 80 e a escrita em português de Nuno Rodrigues – mais aprimorada e poética comparativamente a quando escrevia em inglês – tornara-se símbolo dos tempos que mudavam e, hoje em dia, em que nada parece estar a melhorar (pelo contrário, não é?), é um disco que soa ainda mais urgente. Não queremos “viver no fim da história” como cantavam em “Bom Rapaz,” mas há dias em que a coisa não apregoa nada de bom para podermos prosseguir em direção ao futuro.

Em parte, Gótico Português é também uma resposta à contemporaneidade. No seu lugar de mais fantástico comparado com o seu predecessor, o cinismo não deixa de estar presente. Os Glockenwise questionam aquilo que nos rodeia e de que forma podemos tentar lidar com as mudanças que ocorrem (resposta: com as tentativas de amor que surgem no nosso dia-a-dia, por mais mínimas que pareçam). Em “Natureza” – uma das melhores letras que Nuno Rodrigues já escreveu (ao nível da letra, este é o melhor e mais abstrato disco da banda) – dois versos chamam à atenção para esse apontamento: “Eu nem sei/Se mudou ou se está tudo igual”.

Letras como a de “Natureza” ou a de “Lodo” – uma das melhores canções assinadas pelos Glockenwise -, combinadas com a instrumentação sonhadora-melancólica ordenada pela banda e com o abraçar de um registo vocal mais baixo por parte de Nuno (se outrora os vocais de Nuno podiam ser o ponto fraco do grupo, em Gótico Português é talvez a chave para o sucesso estético do disco, uivando como um lobo triste, floresta encantada adentro, em busca da sua matilha), transportam-nos para um local que não sabemos bem existir, mas que parece eternizar-se na nossa memória de alguma forma. Contudo, isso é um sonho, porque na realidade, sempre que lá voltamos, algo está diferente. Quiçá, a paisagem musical sofreu alterações. Quiçá, o café da nossa rua agora tem esplanada, aquela estrada de pedra agora é alcatroada, ou aquela loja de móveis que parecia algo fraudulenta efetivamente fechou. No pior dos casos, também pode agora existir alojamento local na rua onde cresceste (é verídico). A margem, em suma, torna-se uma quimera distante, alcançável apenas via memórias (curiosamente, muitas delas associadas com música…).

No primeiro parágrafo deste texto, contei que “vinha da margem,” desse local que os Glockenwise descrevem como tendo “tendência para deslumbrar” e onde “ninguém se espanta” se “qualquer gente canta, na onírica e introdutória “Margem.” Durante os meus primeiros 18 anos de vida, antes de vir para Lisboa (por azar!) estudar, cresci e vivi em Vila de Cucujães, uma freguesia de Oliveira de Azeméis (por sinal, localizada nas margens do Rio Ul), um local onde volto – infelizmente com menos frequência – e que, independentemente das memórias que guardo do local, se continua a modificar com o tempo. A realidade em si desprende-se da memória, e esta ganha vida própria, consolidada na nossa mente (um sentimento espelhado por faixas como a melosa “Deixar Ferver”).

É por isso que, de certa forma, estava condenado a nunca conseguir ser objetivo a olhar para este Gótico Português. A quimera sobre a qual os Glockenwise cantam ao longo do disco remete-me para as memórias idealizadas da minha infância, dos locais fantásticos, dos Tardos, cujas histórias escutei enquanto crescia. A minha memória de Cucujães é a minha “margem,” e os Glockenwise, apesar de virem de um local q.b. distante (Barcelos fica a pouco mais de uma hora de carro de Cucujães), parecem estar a cantar para alguém que, se outrora se viu com um marginal face ao “lodo” de onde vinha, agora olha para esses resquícios com desejo constante de voltar (por favor, não se refiram às vossas raízes como “terrinha”!) No limite, isto podia ser tudo muito emo – não há volta a dar.

Contudo, Gótico Português surge numa altura onde as fronteiras, parafraseando o que escreveu João Mineiro no Rimas e Batidas sobre o disco de estreia dos BANDUA, “largamente artificiais, entre o ‘cosmopolitismo’ e o ‘tradicionalismo’, o ‘campo’ e a ‘cidade’, o ‘rural’ e o ‘urbano’, o ‘passado’ e o ‘futuro’, o ‘local’ e o ‘global’, o ‘particular’ e o ‘universal’,” no contexto da música portuguesa, começam a cair. Edgar Valente, dos supracitados BANDUA e também de Criatura, tem sido um dos intervenientes mais ativos nesse movimento que visa, de certa forma, reconstruir folclores, tradicionalismos e noções de portugalidade que vão além de serem apenas uma exploração de uma estética dita kitsch: Pedro Mafama, a própria Ana Moura, Sreya, Conan Osiris, David Bruno, Ana Lua Caiano… a lista continua.

Mas se a lista de artistas acima tem desconstruído, de forma sincera, esses “novos folclores” (da pop) como veia para trilhar novos caminhos sonoros (sem serem isentos a críticas – nem a própria ROSALÍA o é), visando desconstruir ideais do passado associados a essa portugalidade “escondida” e com o cuidado de não cair em saudosismos esotéricos e nacionalismos bacocos, existem outros que parecem estar, ao aproveitar-se dessa mesma estética, a reduzi-la a apenas a um movimento de neo-revivalismo desprovido de qualquer sentido desconstrutivo. Em momentos, a coisa até é levada tanto avante que, no final, acaba por virar paródia e estereótipo daquilo que, talvez na realidade, até pretendem homenagear de forma q.b. sincera.

Neste Gótico Português, os Glockenwise lembram que, para realizar essas desconstruções, é preciso pensar além do enquadramento estético da coisa. Quando os Glockenwise musicam um poema de Camilo Pessanha, em “Água morrente,” fazem-no com um objetivo além do de apresentar uma faixa esparsa e bela; quando utilizam excertos de uma reportagem de 1968 com a ceramista Rosa Ramalho em três interlúdios, fazem-no como mais do que um simples adorno para mover a narrativa em torno da ambiência do álbum. Em ambos os momentos, relembram que, nos escombros das divisões artificiais entre a margem e o centro, existem pessoas escondidas, estórias para serem contadas, e lendas a descobrir que vão além de, como indicaram ao Expresso, “lenços de Viana e Pauliteiros de Miranda.” Quem diz Rosa Ramalho, pode também dizer Franklin Vilas Boas. Quem diz Pessanha, pode também falar de Agostinho Gomes. Quando se efetua uma incursão por caminhos que pretendem quebrar barreiras entre a margem – quimérica, pois claro – e o centro – ele próprio também uma construção social -, há que fazê-lo com sinceridade; quem, de facto, cresceu na margem e com essas tradições, agradece que assim o seja.

Com o enquadramento devido, os Glockenwise voltaram a entregar um disco que, no seu universo, é urgente. Após Plástico, olharam p’ra si mesmos visando perceber quem eram e, por consequência, construíram um disco que, enquanto sonora e poeticamente merece os elogios assinados por adjetivos adorados dos críticos – incrível, fantástico, maravilhoso, estonteante, etc –, se revela também como uma exploração vastamente interessante da sua identidade enquanto entidade. Ao tentarem responder, em plena vida adulta, à pergunta de quem são, estes já não-tão-putos de Barcelos construíram um universo onde, para quem veio da “margem” ou do “lodo,” encontramos um aconchego que nos relembra não estarmos sozinhos nas vivências, nos pensamentos, nos desafios, nas barreiras a quebrar. Porque, independentemente de onde terminamos e por onde passamos, sabemos que, se pudéssemos, era na “margem” onde ficaríamos eternamente, pois ela é o nosso âmago. Sorte a nossa, já os Glockenwise pregam esse sentimento em “Vida Vã”:  “A vida inteira num lugar/Ficava aqui até ao final”. Sem tirar nem pôr. Enorme disco.

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Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, The Guardian e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas, WhereTheMusicMeets e, claro está, na Playback.
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No limite, isto podia ser tudo muito emo.

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