Nostalgia até ao infinito com Inês Marques Lucas

Nos últimos tempos, temos testemunhado um florescimento de artistas femininas no cenário musical português. Consigo carregam narrativas inundadas de sentimentos à flor da pele e fórmulas sónicas arrojadas (umas mais do que outras), e é assim que prometem alimentar na perfeição a paisagem sonora. Todo este movimento, que vai além das fronteiras convencionais da música, oferece uma riqueza de perspectivas e de estilos, desafiando as expectativas dos mais cépticos, redefinindo os limites musicais e elevando a diversidade artística. Permitam-me sublinhar que esta diversidade não se limita a uma mera afirmação de género, mas sim a uma celebração da individualidade e da visão artística única que cada mulher traz para a sua arte.

Já dizia Mimi Froes na entrevista que me deu: “Neste momento, não venham com coisas, nós somos mais que eles, mas muito mais”. É-me impossível discordar. A Sul, Ana Mariano, Bokor, ela li, INÊS APENAS, Inês Monstro, iolanda, Malva, Rita Onofre, Sara Cruz: são só alguns dos (infindáveis) nomes emergentes a reter, fora aquelas que já dão cartas há mais tempo. Ora portanto, hoje venho-vos falar sobre Inês Marques Lucas e o seu álbum de estreia, Horas Mortas, que destila uma originalidade cativante que a posiciona como uma das mais excitantes novidades do universo pop nacional. Ouvi o disco pela primeira vez duas semanas depois do lançamento (perdoem este meu atraso, não é costume, normalmente estou sempre em cima do acontecimento, mas cheguei ao destino, é o que interessa) e recordo-me de ficar totalmente abesbílica com o que acabara de escutar, e pensar “porra, qualidade não nos falta – e talento também não”.

Inês Marques Lucas destaca-se com uma abordagem que transcende as convenções, criando uma sonoridade que é simultaneamente única e acessível. Ao explorar territórios musicais entre o indie pop e o pop rock, Inês desafia a previsibilidade, fazendo-se eco da rica tradição musical portuguesa mas, ao mesmo tempo, percorre diferentes nuances que refletem a sua visão autoral. Horas Mortas, editado no passado dia 29 de setembro, tem uma sonoridade moderna, original e refrescante, e está recheado de histórias de vida que podiam perfeitamente ser as de qualquer um de nós (aliás, eu revejo-me nalgumas), marcado por uma honestidade e vulnerabilidade esmagadoras. Diga-se que o disco é, todo ele, uma catarse emocional e nostálgica. Não há muitas estreias em formato longa-duração como a de Inês Marques Lucas.

Com oito músicas e com mais ou menos vinte e cinco minutos de duração, Horas Mortas abre com “Dormente”, uma faixa que, em crescendo, atinge o clímax com os vocais exaltados pelo refrão (“Já nem me dói / Estou só dormente / Não se destrói / Um corpo ausente”) a perfurarem a instrumentação carregada de uma aura psicadélica agridoce. O mesmo acontece com “Cedeu”, a derradeira explosão emocional (a minha preferida!). “Procurava-te pelo rio / Pelo Tejo que era teu / Agarrava-te por um fio / Até que ele cedeu”. É daquelas cantigas que dispõem de um recheio tão grande de intensidade que não é muito difícil render-nos à sua beleza. Quando a canção termina, ansiamos por mais, de maneira a sermos, de novo, transportados no tempo, ao mesmo tempo que é evocada uma avalanche de emoções profundas.

No alinhamento do disco encontra-se ainda a injeção de energia renovada “Do Avesso” – tema que serviu de apresentação ao LP – que, juntamente com as ritmadas e dançáveis “Sofá” e “Pago a Renda em Canções”, mete-nos num transe que nos deixa preso às melodias contagiantes. Se estas malhas tocassem numa pista de dança, a disposição corporal de quem estivesse presente não se iria manter normal, confiem. Fale-se também dos refrões gigantes, sustentados por quanto nos fazem querer cantá-los em alto e bom som. Ora sintonizem:

“Já não te conheço / Tu não eras assim / Estás do avesso / Ou será de mim?”

“Deixa que ele veja / A tua fragilidade / E que te abrace / Quando for preciso / Deixa-o contar / Todas as histórias que sabe / Até teres de volta o sorriso”

“Pago a renda em canções / Mas será que depois / Queres ouvir / Até amanhecer? / Pago a renda em canções / Eu não conto tostões / P’ra sentir / Que estou a viver”

Com uma sensibilidade bonita de se sentir, Inês Marques Lucas oferece-nos também duas baladas distorcidas, “Trambolhões” e “Eu Já Me Habituei”, que soam altamente grandiosas, qualificadas para hipnotizar qualquer um. Por fim, mas não menos importante, a única canção em colaboração, “Não Restou Nada” com Miguel Laureano (Choro) – dupla maravilha que é incapaz de desiludir. Há algo de divino no experimentalismo desta faixa, e muito disso deriva da fusão entre a nostalgia refletida no instrumental – muito próprio de Choro – com os vocais que vão aparecendo, culminando numa atmosfera nostálgica e ansiosa mas que, de alguma forma, nos aquece o coração.

Em Horas Mortas, Inês Marques Lucas cria uma narrativa onde os riffs de guitarra distorcidos, um baixo que teima em resistir à vulgaridade, uns teclados utopistas, uma bateria certeira e uma percussão cautelosa idealizam um universo otimista no espírito, mas evidentemente melancólico na essência. Há vestígios de Men I Trust e Parcels aqui e acolá, e atrevo-me a mencionar Olivia Rodrigo pelas camadas de distorção que roçam o power pop (já agora, leiam a crítica a GUTS que o nosso playbackiano Miguel Rocha escreveu). É um álbum que diverge no que toca às sensações, sendo que a serenidade e a inquietação estão sempre de mãos dadas, emergindo alternadamente em primeiro plano. É um álbum que consegue soar etéreo num momento, e áspero no próximo, e a conjugação nunca nos pára de fascinar pelo quão bem funciona.

Embebido numa estética sonora a resgatar ambiências coloridas da adolescência em contraste com as letras dilacerantes dos medos e dos receios que a vida adulta carrega, Horas Mortas é um trabalho altamente eclético com uma produção abusiva e louvável. O disco que chegou para aquecer os dias chuvosos de Outono revela uma artista que tenciona crescer no meio e, sobretudo, marcar estados e fases de vida. Uma estreia a deixar em aberto um futuro que soa, com toda a certeza, promissor.

Se não acreditam no que vos digo, então façam o favor de escutar o álbum com atenção ou, melhor ainda, apareçam na apresentação de Horas Mortas no Teatro Maria Matos, em Lisboa, a 8 de novembro.

Podes adquirir bilhetes para a apresentação de Horas Mortas no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no dia 8 de novembro aqui.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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Uma artista fora de série e um disco que satisfaz a alma e o coração.

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