déjà vu.

Não havia grande margem para erro, pensava o senhor Serafim enquanto fazia o inventário semestral. Abrir uma loja de instrumentos musicais numa vila relativamente remota nunca iria dar grande lucro, mas se conseguisse manter um equilíbrio razoável entre vendas e aquisições talvez a coisa fosse sustentável por mais uns aninhos. De qualquer das formas, era algo que fazia falta e que o senhor Serafim sempre achou injusto existir só e apenas em cidades grandes.

Era sábado à tarde em finais de julho, um daqueles momentos que parecem parados no tempo e em que todos os sons são ou distantes ou não-existentes. Os estores estavam corridos para minimizar o calor insuportável que se tinha instalado há já alguns dias, e os fios de luz que passavam por entre os posters e anúncios quase descolorados por anos de exposição a um sol impiedoso iluminavam os grãos de poeira que pairavam no ar. A um canto, o rádio tocava baixinho. O senhor Serafim estava sentado à secretária ao lado da vitrine central, que continha peças e acessórios para guitarras, violinos, e outros instrumentos de corda. Ao fundo, vislumbrava-se um escaparate com livros do Eurico A. Cebolo e partituras diversas, a maioria contendo canções que os miúdos de hoje em dia provavelmente já nem conheciam.

Tão embrenhado estava nas contas que o senhor Serafim nem deu pela porta a abrir. Quando levantou os olhos e viu o rapaz a dois palmos da sua cara, até se assustou. Agora que pensava bem, nunca o tinha visto antes –o que era um pouco estranho, sendo que conhecia praticamente toda a gente da vila. “Boa tarde,” disse o rapaz, que não devia ter mais de onze ou doze anos. “Boa tarde,” respondeu o senhor Serafim. “Posso ajudar-te?” O rapaz olhou demoradamente em redor antes de responder, como que a avaliar se estava no sítio certo. Por fim, voltando a fitar o senhor Serafim bem nos olhos como se o quisesse hipnotizar, respondeu serenamente: “Quero um acordeão.”

Nem era bem o tom com que tinha respondido, ou sequer a singularidade de alguém daquela idade pedir assim, de forma quase irreflectida, um acordeão em pleno século XXI; era mais a gravidade que parecia emanar daquele miúdo. Como se dentro desse metro e quarenta vestido com uns jeans e t-shirt azul escura estivesse um mestre sinfónico de meia-idade a lutar com todas as forças para sair. O senhor Serafim sentiu-se estremecer como se de repente alguém tivesse aberto uma janela e passasse uma corrente de ar. O rapaz continuava impávido e sereno, aguardando que o seu pedido fosse atendido.

“Muito bem, que tipo de acordeão?,” perguntou o senhor Serafim após pigarrear para limpar a garganta. O rapaz tornou a olhar em volta como se procurasse algo sem saber bem o quê. Dois longos minutos depois, os seus olhos fixaram-se numa prateleira ao lado do escaparate do Cebolo: “Aquele,” declarou, apontando para um Paolo Soprani Jubilee IV vermelho. O senhor Serafim olhou para onde o rapaz indicava e engoliu em seco. Nem sabia muito bem de que maneira aquele acordeão tinha vindo parar à loja, principalmente porque nunca na vida teria tido dinheiro para uma aquisição daquelas –nem os seus clientes meios para o comprar. Mais, até se envergonhava em admitir que muitas vezes se tinha esquecido de que possuía aquela preciosidade. Mas ali estava ele, limpo e brilhante como se tivesse acabado de chegar do armazém. E tinha claramente chamado a atenção do rapaz.

Sem espírito para contrariar (ou, se calhar, curioso por ver onde aquilo tudo iria dar), o senhor Serafim levantou-se e foi buscar o dito acordeão. O mais natural teria sido perguntar ao rapaz se estava a aprender a tocar, onde e com quem, se o acordeão era para ele –essas coisas básicas. Mas algo o fazia crer serem questões desnecessárias. Ao voltar carregando o Soprani, reparou que o rapaz nem sequer se tinha mexido: limitava-se a seguir todos os movimentos do senhor Serafim com os olhos, fitando gulosamente o instrumento como se fosse dele por direito inato. Ao pousá-lo no balcão enquanto lhe dava mais uma limpadela, o senhor Serafim notou pela primeira vez que as mãos do rapaz estavam irrequietas: mexiam-se como se tivessem vida própria, contrastando com a rigidez altiva do resto do corpo.

Em vez de pensar em assuntos práticos como onde iria aquele rapaz arranjar três mil euros duma assentada só, o senhor Serafim foi buscar um banco e convidou-o a sentar-se. Ao passar-lhe o acordeão para as mãos, foi como se uma força magnética invisível colasse instantaneamente o instrumento ao colo do rapaz. Tremendo por dentro, murmurou: “Então e tocas aí qualquer coisinha para a gente?” Não foi preciso pedir duas vezes. O rapaz atacou imediatamente uma polka complicadíssima, abraçando o acordeão como se se tratasse duma alma gémea perdida há muitos séculos. De olhos fechados, o senhor Serafim desfrutava daquele momento mágico sem tentar analisá-lo com demasiada lógica. O que teria trazido aquele rapaz ali, naquele momento, para pedir um acordeão cujas origens e histórias lhe eram desconhecidas, e tocá-lo como se nunca tivesse feito mais nada na vida? Mas isso também não tinha importância. Quando a música acabou e o rapaz pousou delicadamente o instrumento no chão, o senhor Serafim limitou-se a perguntar: “Levas assim ou queres que te vá buscar um saco?”

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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