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Estavam a descer as escadas da igreja quando a tia Rita perguntou: “Então passas lá em casa mais logo antes do jantar? Há uns caixotes que a avó deixou marcados com o teu nome.” A Sofia ainda nem tinha conseguido encaixar a situação, queria lá agora saber de caixotes. Lutava contra as lágrimas porque sabia que se começasse a chorar o mais certo era não parar durante semanas. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que um dia deixasse de haver avó Cristina no mundo. Deu um sim baixinho antes de se afastar com a mãe e entrar no carro, sem saber bem se realmente teria força mental e emocional para lidar com essas coisas tão cedo.

Mas às cinco horas lá estava, a bater à mesma porta a que tinha batido desde que se conhecia sempre que precisava dum refúgio das brigas dos pais, das querelas na escola, dos arrufos com o namorado, ou simplesmente para dar duas de treta com a avó preferida. Ela tinha sempre histórias incríveis de quando era mais nova e se esquivava para ir ver bandas (“conjuntos,” chamava-lhes ela) ao Monumental. Ano após ano, as histórias iam mudando ligeiramente de tom até a Sofia um dia perceber que estava a ter acesso às diferentes versões; algumas coisas teriam sido difíceis de explicar a uma criança.

A tia Rita veio abrir com um sorriso cansado no rosto e um pano do pó na mão. Deu-lhe dois beijinhos e disse-lhe que entrasse: “Não repares, está tudo meio em pantanas. Ainda estamos a tentar perceber o que valerá a pena guardar, quanto espaço será necessário, essas coisas.” Tudo parecia demasiado frívolo para a Sofia, mas a tia adivinhou-lhe o pensamento e comentou: “Eu sei que num mundo ideal teríamos mais tempo. Mas a casa vai voltar para aluguer no final do mês e não podemos estar aqui com muitos atrasos. Olha, e se calhar é melhor. A quente às vezes dói menos…” Na última frase a voz falhou-lhe, e a Sofia limitou-se a dar-lhe um abraço.

Foram até à sala, e a tia Rita apontou-lhe três caixas de cartão a um canto, junto às estantes: “Não sei bem o que está ali dentro, mas a avó sempre disse que um dia aquilo haveria de ficar tudo para ti.” Com o coração a saltar de ansiedade e um misto de tristeza e curiosidade, a Sofia sentou-se numa cadeira que arrastou para perto das caixas enquanto pegava num x-acto para cortar a fita-cola castanha. “Estou na cozinha se precisares de alguma coisa,” disse a tia Rita antes de desaparecer corredor fora.

O peso intrigava-a, mas assim que abriu o primeiro caixote o rosto da Sofia iluminou-se: dentro estavam dezenas e dezenas de discos de vinil alinhando-se em colunas iguais, todos cuidadosamente estimados (se bem que alguns com marcas de terem sido tocados até à exaustão) e arrumadinhos de forma a não sofrerem danos se fosse necessário mover caixas sem as abrir. Mesmo assim, não se via qualquer indicação de “frágil” ou algo do género; a avó Cristina era claramente uma pessoa de fé. Havia LPs, singles, e muitos EPs daqueles que se usavam nos anos 60 com duas faixas de cada lado, moda muito usual em França e Itália nos tempos do ié-ié. Alguns eram portugueses, mas também havia muitos estrangeiros. Aliás, estava ali uma pequena fortuna para a grande maioria das famílias de classe média portuguesa (se é que isso verdadeiramente existia) do tempo da outra senhora.

Acariciando-os como se estivesse a abraçar a avó, a Sofia retirou alguns com cuidado para observar de perto as capas. Havia o primeiro EP dos Conchas ao lado dum Aznavour; uma balada da Dalida e um hit do Adriano Celentano; um dos inúmeros álbuns do Roberto Carlos chamados, inspiradamente, Roberto Carlos; dois singles do Elvis e uma colectânea meia vagabunda dos Beatles. Não é que a Sofia fosse propriamente fã daquilo (para dizer a verdade, algumas coisas só conhecia por ter ouvido a avó falar), mas o facto de ter herdado aquele pequeno tesouro fazia-a sentir-se a pessoa mais especial do mundo.

Ao pegar num EP do Richard Anthony, reparou que qualquer coisa tinha caído de dentro da capa. Baixou-se para pegar no que parecia um papel pequeno quando percebeu que se tratava duma fotografia. “Palmela, 13 de Março de 1965,” lia-se no verso numa caligrafia que a Sofia sabia ser a da avó. Virou-a. A fotografia a preto e branco mostrava quatro raparigas mais ou menos duns dezasseis anos, vestidas em saias um pouco acima do joelho e blusas soltas, sorrindo para a câmara enquanto posavam em frente a um MG. A da esquerda segurava uma guitarra clássica como se fosse servir-se dela para bater no fotógrafo; a meio estavam outras duas posando em espelho e sorrindo de soslaio; e à direita, já perto do porta-bagagens, estava uma outra segurando umas baquetas. Essa, a Sofia reconheceu imediatamente, era a avó Cristina.

Por momentos hesitou se devia perguntar por tudo isto à tia Rita. Mas se calhar era algo que a avó nunca tinha partilhado com muitos detalhes, ou que preferia até que nem se soubesse. Guardou a fotografia no bolso e espreitou de novo para dentro da capa de onde tinha caído. Meio colado ao interior havia um recorte de jornal, mais amarelecido e em pior estado que a fotografia—aliás, a Sofia teve até medo que se desintegrasse quando o puxou. Não havia referência à data ou nome do jornal pois apenas tinha sobrevivido o artigo, mas a foto minúscula que o acompanhava era semelhante à que tinha saltado. Em cima, em letras modestas, lia-se: “Conjunto Garotas Do Twist Ganha A Eliminatória.” A Sofia quase deu um guinchinho. Avidamente leu o resto, que infelizmente não continha muito mais informação. Percebeu que aquilo nem seria grande notícia se não fosse o caso—como frisava o texto—de se tratar do primeiro conjunto pop totalmente feminino que se conhecia em território nacional. Mencionava ainda uma final em Lisboa, mas não dizia onde nem de quê. Os nomes também eram dados sem apelidos e não indicavam quem era quem; só se sabia que a Maria Eduarda, a Cristina, a Sofia, e a Fátima tocavam juntas o twist. Espera, a Sofia? Que engraçado ter o mesmo nome que ela.

Voltou a pôr tudo direitinho na caixa e nem se preocupou muito em abrir as outras. Só por esta já via que tinha ali horas e horas de exploração. Entrou na cozinha para beber um copo de água enquanto a tia Rita arrumava a gaveta dos talheres e colocava tudo em montes. Tentou soar casual quando perguntou: “Tia, tu conhecias as amigas da avó?” A tia Rita pareceu um pouco espantada pela pergunta, mas respondeu: “Algumas, acho. Mas a maioria já faleceu.” Numa nova tentativa, a Sofia insistiu: “E sabias os nomes, ou…?” A tia Rita virou-se para ela: “Porquê tudo isto agora? Alguma coisa a ver com aquelas caixas?” Tentando disfarçar a curiosidade, a Sofia respondeu: “Ah, são uns disquinhos da avó, creio que de quando era solteira? Não sei, imaginei-a a ouvi-los com as amigas.” A cara da tia Rita ficou um pouco triste antes de comentar: “Então têm de ser de há muito tempo. A avó nunca mais pegou muito neles depois do acidente.” “Acidente?,” perguntou a Sofia. “Sim,” disse a tia Rita, parando de limpar. “Uma vez vinham todas de casa duma amiga, acho que para os lados da Morais Soares, e o carro da frente teve um problema qualquer. Parou no meio da estrada e aquilo deu um choque em cadeia horrível.” Suspirou. “Não sei muito mais porque a avó não falava muito disso, mas sei que perdeu uma das melhores amigas no acidente. Afastou-se um pouco das outras depois.” A Sofia ainda hesitou em largar um “sabes como se chamava a amiga que morreu?,” mas como a tia Rita não parecia disposta a dar mais detalhes, optou por ficar calada.

Voltou para a sala e começou a avaliar como haveria de levar aquilo dali, se iria precisar do carro de alguém ou se bastaria chamar um táxi. Ao meter as mãos nos bolsos, sentiu a fotografia. Até saltou, porque se tinha esquecido que a tinha guardado ali. Voltou a olhá-la, e apesar de não ter qualquer tipo de informação extra sobre o que mostrava, imaginou todo um universo mágico para aquelas Garotas do Twist. Que eram pioneiras e tinham mudado a música pop em Portugal. Que um dia gravações delas seriam descobertas num cofre qualquer e seriam reeditadas com toda a pompa e circunstância, e que até haveria direito a uma feature no Bandcamp. Que se faria uma minissérie sobre elas e nasceria toda uma nova vaga de riot grrrl tuga inspirada só e exclusivamente pelas Garotas do Twist. Nesse momento, a Sofia prometeu mudamente ouvir todos aqueles discos de fio a pavio. Quem sabe, talvez descobrisse ali mais avó Cristina do que ela lhe tinha contado. Ou até mais pistas sobre o quarteto fantástico, para que um dia aquele pudesse ser um segredo partilhado.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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