10 anos da fascinante Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70

Tenho um grande fascínio por A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70, o segundo disco d’Os Capitães da Areia. Para a semana, a 23 de janeiro, faz 10 anos que foi lançado. Sentem-se velhos? Espero que não.

Desde a primeira vez que ouvi A Bordo do Apolo 70 que me surgiram várias questões. Megalomania desmedida ou à frente do seu tempo? Uma piada levada ao limite ou um plano executado na perfeição em que demasiados sims foram ditos e insuficientes nãos não o foram? 31 faixas em que cerca de 50% são interlúdios – para quê? Muitas questões, sim, mas uma certeza também. No meio de todas estas dúvidas, havia grandes, grandes canções.

Quando o segundo álbum d’Os Capitães da Areia foi revelado ao mundo, já o grupo lisboeta era reconhecido como uma das bandas com mais potencial da cena alternativa portuguesa impulsionada no final da década de 2000 pela FlorCaveira. Com a mentoria de Manuel Fúria, Pedro de Tróia (voz,  “guitarra” de ténis), Tiago Brito (guitarra), António Moura (bateria) e Vasco Ramalho (baixo) juntaram-se por acaso. Em 2009, um jovem Pedro de Tróia veio de Lisboa para Viseu e encontrava-se num estado de profunda tristeza. Eis então que Manuel Fúria, guitarrista e letrista d’Os Golpes e um dos fundadores da Amor Fúria, amigo do colega de casa de Pedro de Tróia, lhe lança uma sugestão bastante direta: Pedro devia começar uma banda chamada Os Capitães da Areia. Sem medos, o jovem aceitou o desafio. Partiu à procura de camaradas com quem tocar e descobriu outros quatro marujos (o “outro” Capitão tinha o nome de Fred), que rapidamente se tornaram três, com quem embarcar nesta viagem. Assim se formaram Os Capitães da Areia, “uma banda que acabou por se tornar num grupo de amigos”, como mais tarde declarou Pedro de Tróia no programa No Ar da Antena 3. Serão então Os Capitães da Areia uma espécie de boys band da Amor Fúria? De certa maneira, sim.

Os Capitães da Areia demoraram dois anos a preparar o seu disco de estreia, o apropriadamente intitulado O Verão Eterno D’Os Capitães da Areia, editado pela Amor Fúria em 2011. É um disco preenchido por sintetizadores e guitarras à anos 80, ecoando várias das referências que se tornaram cruciais para entender, quatro anos mais tarde, A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70: Heróis do Mar, GNR, Sétima Legião, Lena d’Água, Radar Kadafi.

Nota-se que O Verão Eterno foi feito por um conjunto de jovens com grande ambição e que Manuel Fúria teve mão na construção destes temas que falam muito sobre essa “ordem maior, a ordem do coração”. Em “Dezassete Anos”, uma das canções seminais d’Os Capitães, Pedro de Tróia canta “Tinhas só dezassete anos / E levei-te p’ra dançar / A pista estava vazia / Desculpa para te beijar”. Em “Mariana Bem-Me-Quer”, numa letra que talvez não envelheceu da melhor maneira, uma outra menção a ter dezassete anos: “Tivesse dezassete anos / E levar-te-ia para dançar”. Mas afinal, porquê esse fascínio com essa idade (além do mórbido óbvio)? Porque os capitães também tinham à volta de 17 anos. Quando O Verão Eterno foi composto, os integrantes d’Os Capitães da Areia tinham entre 16 e 20 anos. Daí que as canções deste primeiro álbum espelhem uma certa inocência, apesar de toda a musicalidade interessante. Quatro anos mais tarde, essa inocência desapareceria. Os Capitães da Areia continuariam a cantar sobre amor e a serem “candidatos a ser a banda portuguesa dos anos 80 que nunca existiu”, como os descreveu o jornalista Davide Pinheiro. Mas tudo o resto? Seria diferente.

O título do disco – A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70 – e a capa dão pistas para o tipo de disco que é o segundo álbum d’Os Capitães. É uma ópera-pop conceptual (mesmo que a banda indicasse que só se tornou conceptual por “acaso”) que retrata uma viagem da banda pelo espaço a bordo do Apolo 70, o primeiro centro comercial a abrir em Portugal, que se transforma em nave espacial na primeira canção do disco. Conceito megalómano, sem dúvida, e título mais que adequado a esta viagem que tanto de brilhante como de parvo.

“Consideramos mais o nosso disco um teatro de revista do que uma ópera”, afirmou a banda na altura em entrevista ao Altamont. Portanto, a verdade estará algures no meio. É um disco brilhante porque é parvo que este álbum tenha sido feito dado o seu conceito, absurdo que tenha sido completado pelos quatro anos que demorou a ser concretizado. O perfeccionismo foi desmedido e os Capitães queriam cumprir todos os sonhos de tocarem e cantarem com quem desejavam. “Se pudéssemos ter editado o disco duplo, teríamos seguramente o dobro dos convidados”, indicou Pedro de Tróia em entrevista ao Música em DX alguns meses após o lançamento d’A Bordo do Apolo 70.

Do primeiro ao último momento, não há dúvida que A Bordo do Apolo 70 é surpreendentemente. Uma faixa com Bruno Aleixo? Yep, existe (é ok, mas seria melhor sem a presença do Dr. Bruno Aleixo). Uma malha estonteante com a presença de Rui Pregal da Cunha e Toy? Yep, existe – e estava à frente do seu tempo. Se fosse lançada hoje, seria um hit. Uma batalha psicadélica com os Capitão Fausto para decidirem quem seria o verdadeiro campeão do indie lisboeta? Existe sim (ganham os Capitães no disco, ganharam os Capitão na vida real). Balada bonita cantada pelo Tiago Bettencourt? Há, pois. (Pausa para respirar) Treta romântico-nacionalista alimentada pelo Fúria? Não podia faltar. Um instrumental maravilhoso? Há disso – “Ájax”. Uma canção com Mel do Monte? Existe, e não devia. Esta homenagem aos Mfer Ife Dada é a pior canção do disco que não é um interlúdio.

Os sketches e intervalos de A bordo do Apolo 70 estão preenchidos por convidados do A a Z da música portuguesa e assombram o LP desde o seu lançamento. Grande parte das críticas menos positivas ao álbum na altura queixaram-se (corretamente) deles como o ponto fraco d’A Bordo do Apolo 70. Mário Lopes, a escrever no Ípsilon, apontou a dimensão extravagante do disco, muito fruto dos seus interlúdios, como não sendo “totalmente suportada pela música”. No Altamont, Tiago Freire escrevia que, independentemente da qualidade musical das “verdadeiras” canções d’A Bordo do Apolo 70, a existência de tanto interlúdio fazia com “que este fantástico disco” perdesse “a capacidade de ser tudo aquilo que poderia ser”. No entanto, A Bordo do Apolo 70 não deixa de ser um excelente disco. No final do ano de 2015, figurou na lista de melhores discos portugueses do ano do Expresso, do Altamont, da Mesa de Mistura, entre outros.

Porém, apesar destes entreatos ainda hoje terem demasiado peso na concretização do álbum, também se tornaram parte da razão pela qual A Bordo do Apolo 70 se tornou numa espécie de cápsula do tempo para o ano de 2015. Antena 3 a bombar o dia todo no carro, os tempos áureos da Radar e da Vodafone FM, o Canal Q (afinal, este disco também tem presença da Joana Barrios, pois claro) a dar de fundo o dia todo. Há pessoas que provavelmente gostariam de viver naquele verão de 2015 para sempre. Eu não sou uma delas, mas respeito a nostalgia por esses tempos. Afinal, A Bordo do Apolo 70 é um disco extremamente nostálgico, preenchido por romantismos tugas que, mais tarde, artistas como David Bruno ou João Não cavalgariam à sua maneira.

A Bordo do Apolo 70 foi o álbum que catapultou Os Capitães da Areia para uma dimensão maior do que alguma vez imaginaram ter. Se havia dúvida de que os Capitães eram uma grande banda e que Pedro de Tróia era um dos grandes escritores da língua portuguesa, as dúvidas tinham sido removidas. Afinal, tudo aquilo que eles faziam era música pop e era música pop de enorme gabarito. Sem grande surpresa, muita gente gostou da pop que esta nave espacial tinha para mostrar. Após o lançamento do álbum, Os Capitães da Areia perderam um membro (Vasco), ganharam um outro (Inês Franco), tocaram no 5 Para a Meia-Noite com Rui Pregal da Cunha e Toy (com a ajuda de uma crítica extremamente positiva de Nuno Markl), esgotaram um CCB em 2016, um ano depois do lançamento do seu álbum (com comboio à mistura – mais uma vez, à frente do seu tempo). Parecia ir tudo de vento em popa para os Capitães. E depois, silêncio. A banda tinha tendência para entrar em silêncio quando começavam a compor ideias, mas, desta vez, o silêncio perdurou. Apesar de terem “sonhado” um novo disco, a nave dos Capitães nunca mais descolou. Pararam de tocar.

Pedro de Tróia aventurou-se a solo com dois belíssimos discos (ambos contaram com ajuda na conceção de Tiago Brito), mas, fora isso, os Capitães não lançaram mais música. De certa forma, aconteceu aquilo que Mário Lopes previu na sua crítica no Ípsilon em 2015. O silêncio fomentou a “lenda” d’A Bordo do Apolo 70. Tornou-se num “disco de culto”, num “delírio de culto”, lembrado como um dos discos mais bizarros e especiais de uma era da música alternativa portuguesa que parece já distante, mas que se mantém presente na memória de muitos.

Para mim, que em 2015 não estava em Lisboa nem me encontrava muito ligado à música alternativa portuguesa, A Bordo do Apolo 70 é um disco especial porque me permite tentar imaginar o que seria ser adolescente a viver esses anos numa grande cidade. Um ano antes dos Capitão Fausto terem Os Dias Contados, A Bordo do Apolo 70 abriu as portas para a crescente popularidade da música alternativa cantada em português. Não é discernível de afirmar que os Capitães da Areia abriram caminho com ambos os seus discos para aquilo que seriam as Cuca Mongas desta vida.

10 anos depois, a mística em torno de A Bordo do Apolo 70 não desvaneceu. Pelo contrário. Só aumentou. A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70 era um disco bizarro e fascinante há dez anos quando foi lançado e só se tornou mais bizarro e fascinante com o passar do tempo. Não faz sentido que exista, mas existe.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Delírio de culto ou piada demasiado séria levada ao limite?

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