O meu percurso no underground começou no dia 29 de setembro de 2018, com 16 anos. Após muitos pedidos à minha querida mãezinha, consegui convencê-la a ir, junto com o meu recente amigo de cabelo comprido, à Rua do Souto em Braga para assistir ao concerto da banda Vai-te Foder (a abrir para os Parkinsons). Este concerto fez parte da Braga Music Week na altura, evento cultural da cidade bracarense que decorreu entre 2013 e 2019, e decorreu em cima de um palco com rodinhas que circulava pela cidade inteira.
Ao chegar, deparei-me com um enorme grupo de pessoas, todas vestidas de preto e coletes de ganga, que dançavam freneticamente e violentamente ao som da banda. Sem saber, estava a presenciar uma das bandas mais marcantes da cidade, que recentemente tinha lançado Poço, o álbum que melhor caracteriza o movimento underground bracarense. Os cinco integrantes, Paulo, Patife, Cirro, Morcego e Jordi, no meio da fumaça, euforia e muita Super Bock, tocavam músicas com letras sobre Braga que ainda não faziam sentido para mim, embora me chegassem com sabor a casa.
Mesmo com um final abrupto provocado pelo rompimento da corda da guitarra (não havia uma substituta à mão), a festa foi um sucesso. No término, liguei à minha mãe e disse com uma voz ainda intocada pela puberdade: “Está feito, podes vir-me buscar”. A partir daquele dia, a minha vida mudou para sempre. Tal como o homem descobriu o fogo, eu descobri a música underground ao vivo e foi desenvolvida uma fome insaciável.
O cenário daquele dia para os Vai-te Foder não surgiu por acaso. Foi o resultado de muito trabalho, suor e dedicação. Antes daquele concerto lotado, muitos outros ocorreram, construindo uma história rica, embora pouco documentada tanto na Internet quanto em registos físicos. Para compreender como a Câmara Municipal de Braga permitiu que uma banda chamada Vai-te Foder atuasse no centro histórico, cantando músicas como “Bófia de Merda” e “Sempre a mesma Merda”, seria necessária uma investigação aprofundada. Algo que se aproxima a esta investigação terá sido uma conversa com Paulo Ferreira, ou Paulinho para os amigos, vocalista da banda, ou como a Antena 3 os chamou, “a banda cujo nome não deverá ser mencionado”, culpado tal como os restantes membros da banda de inspirar o underground bracarense.
Como conta Paulo, tudo começou no início do século, não num concerto, mas sim num local mitificado na memória de apenas quem o viveu: o Canoa. Este bar, que na verdade não era um bar mas sim um café/snack-bar, foi o ponto de encontro dos metaleiros de Braga durante vários anos. O termo metaleiro abrangia tanto os fãs de metal quanto os punks, unidos pelo amor ao crust punk e ao grindcore. O Canoa representava a essência de Braga, com o seu ambiente caótico e estranhamente acolhedor. Com um espaço minúsculo, onde se podiam encontrar matraquilhos dentro das casas de banho masculinas, encostados aos urinóis, e frequentado por uma clientela fiel, o Canoa tornou-se o café preferido de quem viria a construir o underground bracarense.
O ambiente do Canoa proporcionou um boom musical em Braga, unindo pessoas com um sonho partilhado: ouvir e fazer música. Centenas de litros de Super Bock foram bebidos, amizades para a vida foram forjadas e álbuns dos subgéneros mais obscuros do metal foram partilhados através de fones de ouvidos pouco higiénicos ligados a walkmans com cassetes com gravações dúbias.
Mesmo com tanta mística criada à volta do espaço, este apenas permanecia aberto até às 2 da manhã e não tinha condições para concertos, o que só demonstra mais que o Canoa não era apenas um espaço físico: era uma comunidade. Após o fecho, apenas restavam os resistentes que ficavam na conversa nas ruas de Braga.
Para satisfazer a sede por concertos, ainda que houvesse locais como o Insólito e o Puzzle Bar no centro de Braga, que promoviam eventos esporádicos e onde atuaram bandas/artistas como Wormrot, Peste & Sida ou Allen Halloween, amigos e famílias estavam dispostos a pegar no carro e a percorrerem longas distâncias para verem concertos de bandas com logos ilegíveis na Junta de Freguesia de Panoias.
Estes concertos, tanto em Panoias quanto em Braga, eram maioritariamente organizados pelos irmãos Veiga, responsáveis por festivais como o SWR e pela organização NAAM – Núcleo de Apoio às Artes Musicais.
Estes bracarenses apaixonados por música não só gostavam de ver música ao vivo como também a queriam criar. No entanto, a falta de salas de ensaio acessíveis para bandas underground agravava a situação musical obrigando-os a recorrer a garagens ou sótãos emprestados pelas famílias.
Foi nestas condições precárias que, contra tudo e contra todos, surgiram os Vai-te Foder na passagem de ano de 2002 para 2003. Durante anos, a banda enfrentou dificuldades para encontrar espaços estáveis para ensaiar, recorrendo frequentemente ao Sótão 666, que na verdade era apenas o nome que a banda deu ao sótão dos pais do Patife, vocalista da banda.
Um momento de viragem foi 2007, quando surgiram salas de ensaio no Estádio 1º de Maio, numa iniciativa de Miguel Pedro Guimarães, baterista e um dos membro-fundadores dos Mão Morta, que apresentou a proposta à autarquia em 2004. Essas salas ofereciam condições excelentes para os músicos produzirem a sua arte sem limites de horário, o que apesar de parecer uma boa ideia, abriu uma panóplia de possibilidades para os músicos bracarenses se portarem mal durante a madrugada. As salas de ensaio no Estádio 1º de Maio foram um marco histórico, oferecendo um espaço acessível a preços simbólicos de 25 euros por mês por banda.
Apesar de já parecer um cenário prolífero para a criação de música, faltava uma peça essencial para concluir este puzzle: materializar o trabalho destas bandas em discos. E para isso faltava um espaço para o fazerem.
A peça que viria a concluir este puzzle foi um senhor chamado Pedro Grave, que, deparando-se com tanto potencial desperdiçado, criou a Grave Studios, um estúdio localizado mesmo debaixo da sua residência. Se um álbum desta primeira década de 2000 foi gravado em Braga, a probabilidade de ter sido gravado na Grave Studios é altíssima – veja-se o exemplo de discos de bandas como como os Tenebrae ou os icónicos Holocausto Canibal.
O Grave Studios foi um marco para qualquer banda/artista de Braga daquela época, abrangendo não só o metal mas também o hip hop (bons exemplos são MC Zero e DJ Casca). Contudo, apesar da importância do Grave, este não era particularmente acessível financeiramente para bandas pequenas como os Vai-te Foder. No entanto, ao ver o potencial da banda de Paulinho, Pedro convidou-os a gravarem o seu primeiro disco com ele, aceitando como pagamento a promessa de continuarem com o projeto. O resultado foi o longa-duração Viciados no Degredo, lançado em 2007. A gravação, embora não tivesse a melhor produção, foi suficiente para impulsionar a banda.
O lançamento de Viciados no Degredo marcou uma geração do underground bracarense e coincidiu com um boom cultural na cidade. Discos de outras bandas emergentes como Nuklear Goat, Atomik Destruktor e Decrepidemic surgiram nesta altura, fortalecendo ainda mais a cena musical local.
Para finalizar esta fase inicial do movimento, surge ainda o termo que representaria a cidade: Poço, nome que mais tarde os Vai-te Foder pediriam emprestado para o seu segundo álbum . A expressão surgiu de Cirro, guitarrista da banda, que nos vários regressos a Braga após concertos pelo país, exclamava “esta merda parece um poço invertido, está sempre a chover”. Assim se criou uma expressão que ainda hoje perdura. Embora nunca formalizada, esta percorreu a cidade, ganhando fama na comunidade musical onde perante a pergunta “de onde és?”, exclamavam com orgulho “sou do Poço”.
Até cerca de 2014, ter-se-á verificado um período de estabilidade: as bandas conseguiam concertos regulares em Panoias ou em concertos esporádicos em Braga e as salas de ensaio funcionavam como era suposto. No entanto, como tudo que é bom acaba depressa, na segunda década de 2000 a história de muitos espaços de Braga chegou ao fim. O Canoa fecha e Panoias deixa de organizar concertos com a mesma frequência.
Com o fecho destes espaços outros abriram no seu lugar, e a verdade é que, embora muitos tenham ficado melancólicos com a falta do cheiro a urina enquanto se jogavam matraquilhos, muitos outros surgiram para preencher este vazio. Espaços como o Rockstar, Sé La Vie, Mavy e Sé Café tornaram-se novos espaços de convívio e o Toca e o Projétil novos destinos para música ao vivo. O Projéctil, em particular, revelou-se importante porque não era apenas um espaço para música ao vivo: servia também como um sítio onde bandas podiam ensaiar, funcionando como uma espécie de coletivo das bandas residentes, de onde saíram projetos como os Bed Legs, os Ermo, entre outras.
São também criadas salas de ensaio no shopping de Santa Cruz. Para falar das salas de ensaios que iam existindo em Braga, basta olhar para o currículo dos Vai-te Foder, que devido a situações caricatas e repetitivas percorreram todas as que existiram em Braga: as salas do 1º de maio, o shopping de Santa Cruz, Projéctil e atualmente ensaiam no Centro Comercial Galécia.
Com a existência destes novos hot spots, o underground de Braga retornou a uma época de fertilidade musical, tendo o movimento crescido principalmente no sentido de ecleticidade, surgindo bandas não só de metal, mas também de rock alternativo e muitos outros géneros como drum’n’bass, noise e múltiplos espectros de música experimental. O que permanece inalterado é o espírito contracultural, caracterizado pelo ódio comum a Braga, enfiados num poço obrigados a coexistir com os moradores.
O ódio aos vizinhos surgiu pelas regras impostas por estes, que perante o barulho constante interrompiam concertos e ensaios, mesmo quando licenças para os fazerem eram obtidas. Isto provocou o fecho de locais como o Projéctil, deixando um espaço vazio no coração do Poço.
Esta foi a altura em que eu, com os meus 16 anos, conheci o movimento e me envolvi, frequentando com frequência os espaços aqui mencionados. Não conhecendo a história, esta noção de falta de espaços nunca foi sentida por mim. Quando me envolvi nesta comunidade, o Jordi, o Moca, a Perdiz, a Leonor, o JC e o Ben criaram o atual coletivo Cantigas do Poço e um novo espaço de ensaios no centro comercial Galécia, onde já aconteceram concertos à porta fechada para o underground. Neste novo espaço ensaiam mais bandas do que as que ensaiavam no antigo Projéctil, contando com um coletivo de pelo menos 22 bandas.
O coletivo Cantigas do Poço é agora o coração do underground bracarense e, apesar de ter raízes intimamente ligadas ao metal com bandas como Capela Mortuária e Morto, recebem de braços abertos bandas e artistas de todos os géneros como o post-punk gótico dos semivitae, o stoner rock dos Mau Jesus, o rock alternativo dos Obsc3na, o drum’n’bass de NoiseDecoder e LowFatik, entre outros. O papel do coletivo não se trata apenas de providenciar um espaço para as bandas ensaiarem, mas também de impulsionar o seu crescimento.
Escrevo este texto de coração cheio pois esta história demonstra a ambição constante e crescente de criar música em Braga. Face a todas as adversidades, o objetivo era comum e todos trabalhavam para isto. Prova disso é o boom atual de discos lançados em Braga, deixando como exemplos Selva dos Quadra, Astromorph God dos Travo, Tormento dos Pé Roto e ainda Cansado dos Vai-te Foder.
Tudo isto começou há 20 anos, naquele espaço pequeno onde cerca de 40 pessoas sonhavam com um futuro onde Braga fosse reconhecida como uma cidade prolífera musicalmente. Os espaços vão e voltam, mas o amor à música fica e vai passando de geração para geração na forma de uma chama cada vez mais ardente.
Queria agradecer ao Paulinho pela aula de história e pela cerveja e a todo o esforço dos que vieram antes de mim, para que eu possa todos os fins de semanas ver concertos de bandas do Poço.