5 Anos de Deepak Looper: Como é que anda a borboleta?

Impressionante como começar um artigo nunca é uma tarefa propriamente fácil, especialmente se que o que tencionamos escrever em diante tem uma responsabilidade tão grande devido ao elevado carinho que tecemos pela matéria a abordar. Porém, ao olhar para o título provisório desta peça, notei existir um dado que não pode deixar ninguém indiferente: 2018 foi há 5 anos – já tenho a vossa atenção?Pois, meia década passou a voar. De facto, também andámos dois desses anos entre máscaras e álcool em gel, o que contribuiu para a velocidade a que nos afastamos desse já longínquo ano de 2018. Ainda assim, há obras cujo engenho nela envolvido faz com que estas envelheçam como se fossem adornadas por toques de Baco. 5 anos não são uma eternidade, é verdade, mas nesta era digital da fama de 15 segundos e da prevalência do doom scroll, é de louvar qualquer projeto que consiga sobreviver e manter a sua relevância intacta. Além disso, casos como o álbum de estreia de Papillon, Deepak Looper, que conseguem dístico de clássico desta forma tão rápida e eficaz, são raros e devem ser devidamente celebrados.

Ora, na modalidade do hip hop tuga, um desporto que alberga tanto adepto fervoroso e, por vezes, facilmente fascinado, é normal uma obra robusta e bem estruturada como Deepak Looper gerar muito burburinho em seu redor. Ao fim ao cabo, o hip hop, na década passada, assumiu o leme dos números, sendo o estilo mais ouvido (especialmente pelos mais jovens) e o que mais se vende (basta olharmos para os nomes que reinam nas paradas musicais portuguesas).

Em Portugal, no hip hop, nunca foi necessário longas-duração para se estar no topo do game. Não que estes projetos não sejam apreciados ou menos respeitados pelos fãs – basta olharmos para o discurso que rodeia os LPs de Sam The Kid ou Allen Halloween, por exemplo -, mas a verdade é que, mesmo sem estes projetos, os artistas conseguem manter o momentum – vejamos o caso de Valete. Talvez seja por isso mesmo que, por vezes, não se encontre por esses andares muita estrutura na conceção destes projetos, não sendo todos os dias que existe a possibilidade de escutarmos um projeto conceitual ou totalmente coeso.

Não é preciso o olho mais atento nem a cabeça mais sabichona para perceber que este projeto não se trata de uma simples assembleia de canções.

Num ano em que ainda ressacávamos do fenómeno a revelar-se (e a confirmar-se) chamado Slow J, fresquinho de lançar em 2017 The Art of Slowing Down, o seu álbum de estreia que, com grande irreverência, conquistou o público português com a sua música eclética e os dotes de um artista maduro que escapulia à norma do rap português, em fevereiro de 2018 víamos o seu nome a assinar a produção da estreia a solo de Papillon, nome artístico de Rui Pereira, que lançava “Impasse”. Nesta faixa de proporções épicas, sentimos uma fuga do som sobre o qual o MC operava no seu icónico grupo de Mem Martins, os GROGNation (que findaram atividade em 2022). A malha é catártica e orquestral, carregada com as guitarras eletrizantes de Vasco Ruivo (que realizou o videoclipe e ainda acompanhou este projeto na estrada) e um tom epopeico emanado pela voz de Papillon, que falava com a vontade e com o saber de quem tinha algo valioso para nos dar. E assim foi. No mês seguinte, a 21 de março de 2018, Papillon entregava-nos o puzzle total que era Deepak Looper.

Não é preciso o olho mais atento nem a cabeça mais sabichona para perceber que este projeto não se trata de uma simples assembleia de canções, mas sim de uma obra conceptualmente maximalista com significado em todas as entrelinhas – pistas dadas logo por um simples vislumbre da tracklist e da capa. Nesta, observamos um casulo encurralado pelas palavras que dão nome ao trabalho e, lá dentro, vemos uma silhueta de Papillon em posição fetal enquanto em seu redor o verde da natureza o coloca em conformidade com o cosmos.

Na contracapa da edição física de Deepak Looper, avistamos a lista das canções a darem uma volta – dando essa ideia de acabar no começo – ao nome do rapper, e por baixo lê-se: “A MINDSET 2 YOUR HEART”. Lá dentro, do lado esquerdo, vemos os agradecimentos. Primeiro: “Ao Slow J, Produtor executivo […]”, evidenciando aquele que seria um dos team-ups mais entusiasmantes e influentes (quiçá, milagrosos?) da tuga. Ao removermos o CD antes de o inserir na aparelhagem, conseguimos ver a capa do disco  (sem Papillon lá dentro) acompanhada de uma quintilha:

“A vida dá voltas
Revolta-nos e troca-nos as voltas
Até ao ponto em que já não há volta a dar
Mas por cada volta que a vida der
O importante é aprender a dar a volta por cima”

Quanto ao(s) significado(s) disto tudo, Papillon sempre deu uma de Lynch e motivou os consumidores a tirarem as suas próprias conclusões, com o MC de Mem Martins simplesmente a funcionar como guia na direção certa. Portanto: Deepak Looper vem da ginástica das palavras deep e loop; os títulos começam por “Im” para remeterem para o conceito de “I am” (“Eu sou”, revelou ao Rimas e Batidas em 2018) – reforçando o tom pessoal do projeto; o casulo significaria o ciclo das “coisas” – a larva morre para dar lugar à borboleta.

Contudo, não é só pelos artefactos que rodeiam a música desta obra que ela ganha a densidade que ostenta, pois a sua transdimensionalidade é só mais uma valência que ajuda a esculpir o todo, todo esse construído através das canções, cada uma meticulosamente escolhida e talhada. Há experiências que gostaríamos de poder experienciar novamente pela primeira vez e a de mergulhar de cabeça em Deepak Looper é certamente uma delas. Não me é difícil relembrar, 5 anos mais jovem, deitado na cama depois da escola, pronto para experienciar um projeto que me chamava à atenção, sem saber que ia embarcar num dos discos que mais marcaram (e ajudaram) a minha adolescência.

Entramos com a intro que carrega o nome do disco (“Deepak Looper”). Ouve-se uma porta a fechar e depressa questionarmos se não se trata de uma publicidade e se já estamos realmente a ouvir o álbum. Em seguida. é-nos direcionado um conjunto de questões, entoadas como se de um verdadeiro entusiasta da persuasão se tratasse, que tocam na ferida de qualquer jovem perdido entre o que quer ser e ainda não é (parafraseando J), e é instantânea a imersão e a vontade de ingressar nesta “instituição”. Segue-se o primeiro momento musical, “1:AM”, e com este chega um dos refrões mais relacionáveis e instantaneamente orelhudos para qualquer integrante da geração doomer, que por conta ora do colapso social iminente, ora pela constante descrença no mundo que se avizinha, já foi duramente visto como “mandrião” por alguém próximo: “O pai diz que eu só como, cago e durmo” (admito: identificar-me com esta canção foi dos atos mais rápidos que tive com aquilo a que chamamos “música portuguesa”). Neste sonho musicado, a personagem morre, e ao aperceber-se de que se encontrava no mundo onírico, olha para a vida com vontade de se agarrar a esta “nova oportunidade”. Assim se entra na segunda parte da música, onde ouvimos Papillon, lúcido e com uma performance cínica e decisiva, a jogar-se com tudo para um beat mais trap, cheio de pujança e bem artilhado com o seu engenho, para lançar a próxima pedra para o caminho desta sua obra.

Segue-se “Impulso”, o convite para quem quiser embarcar nesta viagem. “Vem, vem mesmo assim/Com pouco ou nada/Coroa e cara/Só não para/Mesmo assim/Vem, vem mesmo assim”, atenta-se no refrão da faixa. Não interessa de onde se é ou como se é, o que interessa é avisar o hip hop tuga que chegou a hora de algo grandioso. E, no final da faixa, ouvimos pela primeira vez o “narrador” – assim nos referimos por falta de melhor termo -, que nos dá as boas-vindas, alertando que esta escola não se encarregará de dar a validação que o resto do mundo não dá.

De “Chico Fininho” a “Jeremias, O Fora Da Lei”, passando por “Dia de Um Dread de 16 Anos” ou “Sofia”, a música portuguesa em todos os seus magníficos espectros sempre teve boas canetas e vozes que cantassem belíssimas histórias. Papi revela-se um nato nessa arte em faixas como “Imediatamente”. Por cima de um beat noturno, construído via melodias de piano, Papillon conta-nos três histórias que, para além de indicarem algumas fragilidades da sociedade, pretendem revelar como, por vezes, vontades supérfluas e êxtases momentâneos podem marcar irreversivelmente a vida de cada um, podendo-se sentir isso em “Vivo rápido, morro imediatamente” ou em “A satisfação é um poço, vou caindo mas nunca toco no fundo”.

Após escutarmos o primeiro single catártico (lembrete: “Impasse”), é vez de “Impressões”, onde se celebra a identidade e se revolta contra o ensino e parâmetros sociais que nos exigem ou pressionam que nos tenhamos sempre de moldar ou, enfim, mudar quem realmente somos para benefícios de estatutos sociais ou monetários– e isto é realizado de forma muito positiva, com um refrão inspirador e uma energia toda ela cativante. O tema da identidade prolonga-se para “Imito”, onde se gera um debate interior e Papillon coloca frente a frente heróis e vilões, tentando perceber onde se enquadra nesse espectro. “Se tiveres de salvar alguém, da próxima começa por ti”, remata Papillon após enunciar heróis como o seu pai (tema fulcral à obra do artista), Thierry Henry do Arsenal, ou até Martin Luther King; por contraste, na segunda estrofe Papi revela que nunca quis ser como Salazar, Agente Smith, Judas, Scar ou Voldemort, mas que percebeu que seremos sempre o vilão, pois para isso basta não estarmos em concordância com todas as pessoas, findando o segmento com “Se tiveres de matar alguém da próxima começa por ti”. No último momento da faixa, após um switch no beat de Fumaxa, Papillon tira as suas conclusões:

“Não sei de qual dos dois acabarei por ser extensão 

Só sei que até lá prometo ser sempre 

Eu”.

O momento mais tocante do disco chega com “Imagina”. Despido de vaidade, Rui larga o seu coração numa bandeja de sinceridade, viajando por traumas, mirando curar estas feridas interiores e viajar pela forma como três marcas da sua vida o construíram e o deixaram. O instrumental húmido de Holly faz sentir-nos encharcados de chuva melancólica ou das lágrimas que deitamos, e ouvir esta faixa pela primeira vez deixou-me sem chão. Ver um rapper português abrir-se desta forma foi rejuvenescedor. Não que nunca tivesse ouvido um rapper português a ser introspetivo, mas desta forma penso que tenham sido muito poucos a fazê-lo (pelo menos, de forma tão eficaz, pura e sem filtro). Não tardou até usar esta faixa para tentar curar as minhas próprias feridas que por cá andavam.

Avançamos do ponto mais emocional do disco para um dos mais revoltados. Em “I’m the Money” encontramos uma dicotomia dogmática em busca de entender o poder do dinheiro na sociedade. Papillon começa por encarnar a voz do capital num primeiro momento, contrapondo rapidamente na segunda estrofe com a sua própria ótica de como o dinheiro afetou a sua vida, culpando este de muito do que há de mal no mundo. No final, após mais um breve debate com esta entidade monetária, percebe que a culpa não é intrinsecamente do dinheiro, mas sim das pessoas e da forma como o percepcionam, deixando-nos uma das barras mais imortais de Deepak Looper: “Tu dás valor ao dinheiro, o dinheiro não é o valor em ti”. Esta é uma das passagens mais sóbrias do álbum, onde Papillon, como se já não tivesse provado isso a este ponto, se mostra maduro e autoconsciente, indo contra si mesmo na busca de fazer as pazes consigo e com o que o rodeia.

A reta final do disco é marcada pela tentativa de Papillon de espalhar amor e celebrar a vida. De coração pleno, faz-nos chegar “Impec”, onde se tenta amar (e ser amado) durante esta aventura que é estar vivo. De seguida, após tanto trabalho pessoal, é tempo de olhar à nossa volta, reunir quem amamos e celebrar, pois a vida pode também ser uma festa – e que festa iminente que esta é. Com a ajuda de Plutónio, “Iminente” é pura celebração sonora. Slow J brinda-nos com mais uma bela malha na produção – sendo esta a passagem mais alegre do disco – e Papillon dá-nos um veneno dançável que deixaria um Dino d’Santiago orgulhoso, culminando tudo com o regresso do narrador para nos relembrar da nossa mortalidade, que já tinha enunciado em “Imagina”: “A má notícia é que vais morrer/A boa notícia é a mesma que a má notícia”.

Metamorfose Fase II” é a derradeira malha do disco, e aqui se sumariza tudo o que se viu ao longo da obra. Começamos pela ascensão do artista a um novo estágio, pela gloriosa concretização do disco, enquanto o último verso nos oferece o resumo dos ensinamentos de cada faixa, com diversas referências aos diferentes sons e culminando com os “10 Mandamentos de Papillon”. No final, o narrador despede-se de nós e ouve-se o som de uma porta a abrir – remetendo para o primeiro barulho do álbum (uma porta a fechar) e para o loop em que estamos, na realidade, presos – o da escola da vida.

Há experiências que gostaríamos de poder experienciar novamente pela primeira vez e a de mergulhar de cabeça em Deepak Looper é certamente uma delas.

Nesta metamorfose assistida, Papillon – nome que em francês significa borboleta – construiu uma obra multidimensional, que ao terapeuticamente trabalhar em si e ajudar quem ouve o seu trabalho, talhou uma das peças musicais mais ousadas, singulares e densas que o hip hop português já assistiu. O projeto reforça a todo o custo que um álbum é mais do que uma obra artística, é uma experiência, demonstrando praticamente que a pessoa que começa Deepak Looper não será a mesma pessoa quando o acaba. Ensina, educa e, acima de tudo, tenta moldar o ouvinte, não através de uma doutrina manipuladora ou hipnotizante, mas sim através de um “olhar para dentro” e de reflexão motivada pelo que se ouve. O seu sucesso foi visto (e ainda o pode ser) sempre que Papillon pisa um palco. Na altura, durante a sua primeira digressão em torno de Deepak Looper, (chamada, corretamente, de First Loop Tour), escutávamos fãs a cantar em uníssono por todo o país, numa comunhão saltante e dançante que dava a Papillon o cunho de ser um belo performer ao vivo.

Mesmo passado 5 anos, e já adicionadas cargas valentes ao seu repertório a solo, os momentos do disco de estreia de Papillon continuam a fazer furor. Para além disso, o êxtase que acompanhou o lançamento do seu segundo álbum, Jony Driver, em novembro de 2022, é exemplo de onde o artista de Mem Martins colocou a fasquia com Deepak Looper. Sem surpresas, o segundo disco de Papillon é simultaneamente conceptual e incorre em muito duplo sentido e transdimensionalidade. Jony Driver talvez não seja tão imersivo e sonante quanto o seu predecessor, mas é bem mais ambicioso, com faixas mais robustas, extensas, aventureiras e um puxar de envelope (musical e artístico) mais assente. É uma obra mais extensa (embora igualmente singular) e um projeto que não se sente derivado de nada que se ouça por aí. Ao invés, existe antes como mais uma pérola caída da mente de Rui Pereira. Mas poupemos palavras para uma retrospetiva daqui a 4 anos e mais uns meses que, honestamente, bem merecerá.

Quanto a Deepak Looper, veremos como envelhecerá daqui em diante; mas, por agora, merece a etiqueta de “clássico” que tem atrelado, e é um dos maiores empurrões para Papillon, que apesar de ter “só” dois discos, já ganhou direito a um pé no panteão do hip hop nacional. Uma coisa é certa: nos dias que correm, com tudo o que nos rodeia e nos aflige, estarmos aqui vivos é obra; e para uns quantos – inclusive para quem vos escreve – Deepak Looper é capaz de ter ajudado nessa tarefa. O que por si só, é impressionante.

Nascido e criado em Faro, divide o seu coração entre as suas duas grandes paixões, o cinema e a música. Aspirante a cientista da comunicação, já passou pelo Espalha-Factos onde foi um dos autores do À Escuta. Conseguem apanhá-lo em festivais de música e em cineclubes!
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Um casulo onde todos os recantos (ainda) importam.

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