Estou Viva Outra Vez: Uma Ode ao ZigurFest

Conheci o Tó na faculdade, éramos do mesmo grupo de amigos. Partilhámos alegrias e corações partidos, noites a fio, borgas, concertos, trocámos álbuns e ficheiros MP3. Lá para o final do curso, comecei um podcast sobre netlabels, ele começou a sua própria netlabel. Não tenho dados que me permitam provar isso, mas arrisco que o Tó tinha o iPod com melhor curadoria da esplanada da FCSH. Foi com ele que conheci Mars Volta, Porcupine Tree, Peeping Tom e por quem me atrevi a gostar de Tool mais a sério. Foi também ele que me mostrou Lovage, oferecendo-me uma banda sonora para a vida.

Estagiámos na mesma mega corporação, ao mesmo tempo, mas a travessia do deserto pós-licenciatura com uma Troika às costas afastou muitos amigos, aproximou outros. Fez com que o Tó regressasse a Lamego.

em 2011, acabados de sair da faculdade, ou a fazer o mestrado, entretanto muitos emigraram, a vida acontece e já houve bebés na equipa, e a vida segue e a equipa está mais pequena. no início, éramos uns 15, mas nem contratavam técnicos de som, os PAs eram dos amigos, era tudo muito DIY, mas a estrutura foi-se profissionalizando. a equipa técnica de agora está connosco há seis anos. desde o inícío-início estão umas cinco pessoas, mas vão entrando novas, a equipa diária fixa vai ter 20 pessoas.”

Em 2011, não fui porque só tive oportunidade de férias nessa altura – como trabalhava em festivais, a última coisa que queria era mais uma colecção de palcos. Em 2012, provavelmente o mesmo. Depois emigrei, depois voltei, depois quis ir todos os verões, mas só lá cheguei em 2022.

– São 21h30 e estou enfiada numa carrinha que vai para Lazarim. Não sei onde é, nunca estive aqui, aqui é tudo no meio do nada. Os holofotes verdes e vermelhos pintam a igreja de tons fantasmagóricos, a praça é minúscula. Há mais algumas almas por aqui. PUM PUM PUM  Começa o techno, os samples retalhados. PUM PUM PUM Os caretos invadem a rave, metem-se com todos, levam crianças, obrigam-nos a dançar, tudo parece assustador e fenomenal. PUM PUM PUM

ESTOU VIVA OUTRA VEZ

Enfiamo-nos todos na carrinha e regressamos à cidade. Nunca tinha ido a Lamego, nem sequer perto. “O ZigurFest como forma de recontextualizar o património” Cheira a farturas e festa, ouve-se o concerto dos Calema ao fundo, o barulho diabólico dos carrosséis. É assim todos os anos, desde que o ZigurFest começou. –

“quero acreditar que esta cidade já não existe sem o ZigurFest, o festival está enraizado na cidade. durante 12 anos, aconteceu nas festas dos remédios, mas há pessoas em Lamego que continuam sem saber o que é realmente o ZigurFest, achando que faziam só parte das festas, daí a mudança de datas – queremos perceber se a cidade nos acolhe com a mesma vontade. é uma fase de transição e um teste, mas em termos logísticos também é bom, porque a Câmara Municipal de Lamego está mais disponível”

Há poucas vistas tão incríveis como as dos concertos no Horto do Castelo. Quando cheguei aqui no primeiro dia, o Tó estava em polvorosa porque se tinham esquecido de ligar a electricidade, os concertos estavam atrasados. Mas foram fins de tarde tão lindos.

Estou sentada de frente para o Zé Menos. “não há barreiras, nem separação palco/público, é tudo muito cru”  E ele canta os poemas com que me salvou há três anos, e esbraceja ‘o chão do parque’ de entranhas na voz, numa apresentação tardia que a pandemia não deixou que acontecesse antes. E estamos ali os dois a fechar ciclos. Ele a cantar, eu a chorar. No final, vou ter com ele e agradeço-lhe. Cá dentro sei que não chega para o que ele sarou, mas é o mínimo. Foi a primeira vez que tocou no ZigurFest, também é provável que seja a única.

ESTOU VIVA OUTRA VEZ –

Lamego
ZigurFest, em Lamego. Fotografia: Rute Correia

“não há repetições nos cartazes, mas há quem volte como público. ao longo dos anos, os alinhamentos foram-se transformando, não só pelo nosso gosto pessoal e o delírio de programador, mas reconhecendo a importância de ter alguém no palco com quem as pessoas se identifiquem e se sintam seguras”

– Não sei bem como conseguiram arrumar o placo naquele recanto, nem se caberá mais alguém nesta praça. Não vejo nada cá atrás, quero estar lá à frente. À minha volta, um grupo de miúdos eufóricos. 15, 16, 17 anos, não mais que isso. Passam umas cervejas e uns cigarros entre eles, vão entoando os refrões que esperam ouvir. Meio a cantar, meio a berrar. Que bom que é ser jovem num concerto que queremos ver tanto. O joão e o nuno sobem ao palco, * JOÃO NÃO E LIL NOON APRESENTAM* mas há ali uma falsa partida, um mau contacto qualquer. A multidão não demove e cantam, e cantam, sabem todas as letras mas querem ouvi-las do seu novo ídolo. O joão parece atrapalhado, o noon puxa pelo público, mais e mais, está tudo ao grito, e eis o joão a florescer como a Rosa Rubra que canta. Tem uma voz mais velha do que a cara de bebé que mostra, e versos de poética refinada (jogos de palavras inteligentes, aliterações inesperadas, rimas de métrica certeira e vocabulário faustoso), uma eloquência inusitada para quem deve estar ali a bater nas duas décadas de vida. A magia do ritmo de noon no seu PC a mandar a batida certeira bota a multidão e abanar a anca. E aparece o Kenny Berg, * ONTEM TAVA EM BAIXO, HOJE NÃO* e o delírio continua e ninguém arreda pé. E eu danço no meio dos miúdos, e fazemos um mini moche, e cantamos estrofes sem parar *ONDE É? ONDE É? ONDE É QUE EU METO O MEU PÉ? ONDE É? QUE EU METO A MÃO NO ESCURO, SINTO A TUA E ESTOU SEGURO – TU QUE SEGURAS TUDO* e no amor àquele momento somos um só, que a música segura tudo. Sinto-me quase adolescente de novo.

ESTOU VIVA OUTRA VEZ –

“soube há uns tempos que há uma miúda que está a fazer uma tese de mestrado sobre o ZigurFest. Tem 23 anos e veio dizer-me «O ZigurFest é bué importante para a minha geração» e eu fiquei, man, nós quando começámos o festival, tu tinhas 11 anos! e é incrível saber que o festival tem esse impacto, que é um espaço seguro de auto-expressão de novas gerações. e é isso que queremos que seja.”

Como é normal acontecer, eu e o Tó seguimos caminhos cada vez mais paralelos à saída da faculdade, mas fomos mantendo o contacto aqui e ali. Encontros quase sempre patrocinados pela devoção musical de uma amizade que ainda hoje tem respaldo aí. Talvez o carinho que ganhei ao ZigurFest seja reflexo dessa intimidade longínqua. Mas não tenho dúvidas de que os palcos de Lamego são mesmo especiais.

ZigurFest 2023
Cartaz da edição de 2023 do ZigurFest

A 12ª edição do ZigurFest decorre entre os dias 27 e 29 de julho, em Lamego. A entrada para os concertos é grátis.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
Artigos criados 21

Em conversa com o co-fundador António Silva, Rute Correia celebra memórias do festival lamecense.

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