Disclaimer: falar de Barcelos é abrir uma caixa de Pandora emocional. É escavar as profundezas da minha mente e retirar uma série de memórias recheadas de conforto e saudade, que acabam, hoje, por me trazerem também alguma angústia. Apesar de nunca lá ter estudado nem vivido, fui presença assídua, e hoje em dia Barcelos é como aquela famosa marca de lacticínios – faz parte de mim. É possível que a veia emocional esteja bastante evidente no percurso deste texto (mais uma vez).
Barcelos é aquela pequena cidade no norte de Portugal de pulso musical que reflete o crescimento e diversidade cultural da mesma – consequências de malta com sangue na guelra e cheia de vontade de fazer coisas acontecerem.
É caracterizada por uma rica tapeçaria de bandas e artistas talentosos: Glockenwise, Indignu, ou Black Bombaim são apenas alguns exemplos de grupos que emergiram de Barcelos e conquistaram o território português de norte a sul. Estas bandas, juntamente com muitos outros artistas locais, representam a diversidade e a criatividade daquele sítio. O ponto de partida deste artigo é o Círculo Católico e Operários de Barcelos (CCOB), devido à ligação especial que aquele espaço detém no meu deck de lembranças, mas engane-se quem pensa que me esqueço do Milhões de Festa (saudades, Milhões de Festa), do Souto Rock ou do mais recente triciclo. Vamos a isto!
CCOB, o berço da inovação musical de Barcelos
Foi no Círculo Católico de Operários de Barcelos (CCOB) que vi Boogarins pela primeira vez. Tendo falhado o Milhões de Festa em 2014, dirigi-me até ao local que se viria a tornar um ponto de encontro essencial para músicos, artistas e entusiastas de música, já nas graças do triciclo, em 2018. Mais do que apenas um espaço físico, o CCOB tornou-se num verdadeiro catalisador para a criatividade artística que fervilha em Barcelos. Fundado com o objetivo de promover atividades culturais e sociais, tornou-se muito rapidamente num símbolo cultural. “Queres beber um fino depois do jantar? CCOB!”; “Queres fazer alguma coisa sexta-feira? CCOB!”; “Tens planos para hoje? Sim, vou até ao CCOB”. Ao longo dos anos, o CCOB foi palco de inúmeros concertos, exposições e eventos culturais que educaram e inspiraram a comunidade local. A importância deste espaço na cena musical de Barcelos não pode ser subestimada, pois serviu, durante muito tempo, como um espaço onde artistas emergentes se podiam apresentar e ganhar visibilidade, e onde o público podia usufruir de uma grande variedade de estilos musicais.
Em 2021, já o CCOB tinha fechado a sua atividade cultural, e em entrevista para o Canal Bazuuca, Leonel Miranda, uma figura chave na cena musical de Barcelos, descrevia o CCOB como “um lugar de encontros mágicos e descobertas inesperadas”. A atmosfera do CCOB era única – uma combinação de história, arte e paixão pela música que ressoava com todos que passavam pelas suas portas.
O encerramento deste espaço marca o fim de uma era significativa. Questões financeiras e logísticas culminaram no encerramento da sua atividade cultural, mas nem assim Barcelos parou. O sangue na guelra dos apaixonados pelo mundo da música já tinham encontrado outras formas para se manifestarem.
Milhões de Festa, a celebração eclética que transformou Barcelos
Em 2010 chega o Milhões de Festa, com o selo da Lovers & Lollypops, e rapidamente ganha a reputação de um dos festivais mais ecléticos e inovadores de Portugal. Realizado em diversos locais de Barcelos, o festival ficou conhecido pela sua programação diversificada que incluía rock, pop, electrónica, hip-hop e música experimental. A curadoria do Milhões de Festa – graças à Red Bull City Gang, à Baba Yaga’s Hut, à Monkey Week, à Matapadre e ao SWR – era cuidadosamente pensada para oferecer ao público uma experiência musical única e memorável, com artistas de renome internacional e talentos locais emergentes partilhando o mesmo palco: Jambinai, Johnny Hooker, Mykki Blanco (entre muitos outros) – tudo isto acontecia em Barcelos. Era possível perceber no Milhões o que iria estar “na berra” noutro festival qualquer, de grande dimensão, no ano seguinte.
O impacto do Milhões de Festa na cena musical de Barcelos é profundo. Para muitos músicos e bandas, tocar no Milhões de Festa tornou-se uma oportunidade de ouro para ganhar exposição e conquistar novos seguidores – era um verdadeiro caldeirão de criatividade, onde a música era celebrada em todas as suas formas e onde novas tendências e movimentos musicais surgiram. Milhões, atrevo-me a dizer: “temos saudades!”.
A pandemia de COVID-19 teve impactos profundos em diversos setores, incluindo o de eventos culturais e festivais. No caso do Milhões de Festa, a decisão de colocar o festival em pausa foi motivada por uma série de desafios impostos pela pandemia. As restrições de circulação e aglomeração, necessárias para conter a propagação do vírus, inviabilizaram a realização de eventos de grande porte. Além disso, a incerteza económica e necessidade de proteger a saúde pública tornaram-se prioridades, levando os organizadores a optarem por adiar a realização do festival. A “pausa indefinida” no Milhões de Festa só veio destacar ainda mais a vulnerabilidade do setor cultural.
Souto Rock: “onde rocka um, rockam muitos!”
Ainda assim, o sentimento de “milhões de festa” consegue ultrapassar o festival que nos deu tão boas memórias e faz parte duma série de eventos que foram surgindo ao longo dos anos, nunca deixando a cidade ficar perdida no esquecimento. Na freguesia de Roriz, nos arredores de Barcelos, encontramos o Souto Rock (entre o café Plátano e o largo do Souto) – testemunho do espírito comunitário e da paixão pela música que permeia a região. O Souto Rock é conhecido pela abordagem “do it yourself” e pela dedicação a promover bandas independentes e emergentes. O festival é organizado por uma pequena equipa que trabalha incansavelmente para criar um evento acessível e inclusivo para todos os amantes da música.
Numa espécie de celebração em família da música independente e da cultura underground, o Souto Rock acontece gratuitamente e recebe cartazes de sonho para os amantes do rock. A atmosfera íntima e acolhedora do festival permite uma conexão especial entre os artistas e o público, criando momentos marcantes na história das bandas que aquele palco pisam. Leonel Miranda, também ele um dos “cabecilhas” do festival, destaca que “o Souto Rock é um lugar onde a verdadeira essência da música é celebrada, sem barreiras ou pretensões”.
O cartaz da edição deste ano já foi apresentado: 800 Gondomar, Hetta e MAQUINA. fazem parte da panóplia de artistas convidados. No dias 11, 12 e 13 de julho todos os caminhos vão dar a Roriz.
triciclo, revitalizar a cena musical de Barcelos
Em 2018, numa resposta estratégica de manter viva a atividade cultural de Barcelos e em parceria com o município, surge o triciclo – um ciclo itinerante de concertos, showcases e workshops que percorre vários espaços da cidade com a melhor música nacional e internacional.
Com uma programação apresentada de 3 em 3 meses, o objetivo do triciclo é proporcionar ao público de Barcelos acesso a música de alta qualidade, promovendo tanto artistas estabelecidos como talentos emergentes e tornar-se uma plataforma vital para expressão artística e inovação musical.
Esta abordagem fortalece não só o envolvimento da comunidade, mas atrai visitantes durante todas as estações do ano, contribuindo para um desenvolvimento económico e sustentável da cidade.
Barcelos 2.0, a cultura como motor de mudança e persistência
A importância do CCOB e dos eventos associados não se limitou apenas à promoção da música; estes eventos desempenham um papel crucial na construção e fortalecimento da comunidade. Numa cidade pequena como Barcelos, espaços e eventos culturais como estes são essenciais para criar um senso de identidade, oferecendo um lugar onde o público se pode reunir, partilhar experiências e celebrar a cultura local. Para muitos, o CCOB e os festivais associados são mais do que apenas locais de entretenimento; são pontos de encontro onde surgem amizades, se trocam ideias e onde a criatividade é nutrida.
É fundamental criar um ambiente onde todos se sintam bem-vindos e valorizados. Este senso de comunidade era evidente em cada evento realizado no CCOB e perdura por toda a cidade – onde a paixão pela música e a camaradagem entre os participantes são palpáveis.
No entanto, a cena musical de Barcelos enfrenta desafios significativos. Em 2023, na reportagem “Por onde andam as bandas de Barcelos?”, assinada por Hugo Geada para a Comunidade, Cultura e Arte, levantou-se a questão: “será que com mais apoios da câmara municipal, sejam estes financeiros ou através da cedência de espaços, isto ajudaria novamente a uma maior proliferação criativa?” a resposta de Nuno Rodrigues (Glockenwise) revelava o ponto de quem sentiu o bloqueio no corpo: “existe uma recusa em proporcionar os meios para que as coisas possam chegar a outros níveis, o que não deixa de ser curioso. Não é só uma questão de estar de olhos fechados, é uma questão quase propositada de querer ignorar estas questões”.
Apesar da sustentabilidade financeira ser uma preocupação constante para muitos dos eventos e espaços culturais da cidade, organizar festivais e concertos de alta qualidade requer recursos substanciais e muitos dos organizadores dependem de patrocínios, apoios governamentais e bilheteira para cobrir os custos. A pandemia de COVID-19 evidenciou estas dificuldades, com muitos eventos a serem cancelados ou adiados, e espaços culturais lutando para se manterem à tona.
Eventos como o Milhões de Festa, o Souto Rock e o triciclo oferecem entretenimento de alta qualidade e desempenham um papel crucial na construção e fortalecimento da comunidade local.
Barcelos, com a sua rica tapeçaria cultural e vibrante cena musical, exemplifica o poder transformador da música na vida das pessoas e na dinâmica de uma comunidade. Nas memórias outrora vividas no CCOB e dos consequentes eventos e festivais que foram sendo criados, a cidade não preserva apenas as suas tradições musicais, mas abraça também a inovação e a diversidade.
Em suma, Barcelos é um espaço onde a música pode crescer em todas as suas formas e não apenas em formato de entretenimento; a música torna-se uma força vital que continua a moldar e a enriquecer a comunidade, deixando um legado duradouro para as gerações futuras.