CANCRO: “Não estamos a querer influenciar artificialmente ninguém”

Portugal encontrava-se a meio de um mês de eleições legislativas e problemas como a crise habitacional, a falta de tolerância e a precariedade estavam mais do que nunca na boca do povo. É com estas temáticas como pano de fundo que os CANCRO decidem lançar para a mesa de debate o seu novo disco Influência Artificial, um longa duração que, sem qualquer intenção de se entrelaçar com a crise política (e não só) vivida pelos portugueses, acabou por se revelar adequado aos tempos.

No sucessor de + (2019), Fábio Jevelim, José Penacho e Tiago Lopes regressaram para expor outros “cancros” da sociedade. O processo “híbrido” permanece o mesmo: José Penacho começa por compor o beat base do tema, e só depois surgem as letras de Tiago Lopes (é ele a voz de CANCRO) e os instrumentos de Fábio Jevelim. Depois, seguem para estúdio para produzir e aprimorar as canções.

Capa Influência Artificial
Capa Influência Artificial

Depois de terem lançado o primeiro disco, o grupo ambicionava passar um tempo fora do estúdio e começar a tocar ao vivo. Ao que surge a pandemia. Segundo Fábio, Influência Artificial surge quando o grupo é fechado em casa. “Para ficarmos entretidos, começámos a criar este novo álbum, e ficamos com duas músicas feitas”, conta o produtor. Essas músicas eram “Fala-me” e “Bom Cristão.

“Fala-me”, a canção mais improvável deste álbum, é a adaptação à moda dos CANCRO de ”Fala-me de Amor”, êxito do grupo Santos e Pecadores. Esta versão já fazia parte de alguns alinhamentos dos concertos do primeiro álbum, mas com a pandemia surgiu a oportunidade de ser trabalhada em estúdio. “Achámos que o pessoal gostava e que funcionava bem ao vivo, por isso decidimos incluir no álbum”, contou Fábio. Ainda assim, Tiago Lopes confessou que, inicialmente, tinham a ideia de que a versão do álbum fosse gravada ao vivo. Face à original, “Fala-me” “deixa de ser tão romântica e passa a ser mais sobre gritar pelo amor”, referiu o vocalista, mas passa a ser uma crítica sobre “as coisas que achamos que estão menos bem, com o intuito de podermos ficarmos bem uns com os outros”. “Se não houvesse amor, também não haveria preocupação nenhuma em criticar”, acrescentou Fábio.

Por sua vez, “Bom Cristão”, que aborda o fanatismo religioso, trata-se de um tema mais pessoal, que surge de uma letra dos arquivos de Tiago Lopes. “Na minha infância, a religião teve muita influência na educação. E por isso, esse tema foi uma coisa que surgiu naturalmente e que eu critico diariamente”, refere o vocalista. Na faixa, “Vivi toda a minha infância e adolescência na adolescência na catequese / Vivi toda a minha infância e adolescência no dia da defesa nacional / E isso prendeu-me a várias catarses”, a sua posição revela-se.

Ainda que o título do longa-duração nos induza para a temática da inteligência artificial, os CANCRO vieram para desconstruir algumas influências que, no fundo, são artificiais e cancerígenas para a vida humana. “Somos artificialmente influenciados sem percebermos muito bem como, e por isso há muito pouca consciência sobre a felicidade que podemos ter. A maioria das pessoas vivem frustradas, atrás de uma vida perfeita, que é completamente artificial”, opina Fábio. Em faixas como “People Tristeza”, onde os CANCRO expõem a falta de livre-arbítrio (“Há people que não lê / Há people que anda dormente / Que o sente e não mente”) ou em “Instrução Primária”, onde falam sobre  a importância da imagem e sobre o egoísmo (“Escolho o meu look tão extenso / Enquanto penso no meu umbigo”),  a exposição do CANCRO dos “podres” da sociedade vem ao de cima. É o seu lado punk crítico a insurgir-se.

Embora o álbum seja de livre interpretação e auto-reflexão, o grupo não quis deixar de ser frontal sobre alguns temas. “Eu dei entrada / Paguei oito rendas / E agora eu moro numa tenda” é uma das frases que se destaca em “Francheisse”, faixa que critica abertamente a crise habitacional que se vive em Portugal. “A habitação é um tema mesmo in loco. Saí de Lisboa e está difícil de voltar. Não é só culpa da habitação, mas é um fator que não ajuda. Essa música foi escrita assim e já a pensar fazer parte do álbum”, explicou Tiago. O mesmo acontece com “Cindy Cato”, onde somos confrontados com a essência da frontalidade contra a precariedade, acompanhada por uma sonoridade agressiva e gritante. Há um objetivo por detrás destes momentos de Influência Artificial. Os CANCRO querem, em especial, como afirmou Tiago, mexer com os que “levam uma vida inteira a trabalhar e no fundo tiram pouco proveito dela”.

É também em “Cindy Cato” que, no meio da catarse, nos deparamos com algo que remete para a infância. “Se tu visses o que eu vi / Dominó / À porta do condomínio / Dominó / Um patrão que ruiu / Dominó / Da janela se atirou / Dominó / Esta rua cheira a sangue / Dominó / Foi alguém que se matou”, uma adaptação para o tema da habitação da banda de um tema infantil conhecido por todos nós.

Após citarem a canção “Balão do João” em Deixa-me Acabarde +, a banda justifica este novo repescar ao passado como uma desconstrução: “A música e muitas outras da nossa infância eram mórbidas, e serviam para nos incutir o medo. Achámos que era mais uma técnica que podíamos utilizar como ironia. Até porque este é o peso que estas músicas infantis deveriam ter”, explicou Fábio.

A ironia não é uma característica única de “Cindy Cato”. É um estilo identitário da música de CANCRO desde o primeiro single. Tiago explica que o uso da ironia funciona como uma  “proteção” que lhe ocorre “naturalmente”. “É como usar uma personagem ou uma atitude que não gosto, e escrevo como se estivesse no lugar dela”, conclui.

Apesar do seu olhar afiado e crítico, o grupo não se define como a cura desses “cancros”. “Não queremos influenciar artificialmente ninguém. Este álbum é uma opção de ver as coisas”, refere Fábio. Num momento de turbulência política e social, os CANCRO escolhem o punk e o hardcore como armas frontais, produzindo um retrato honesto e provocativo da realidade portuguesa. Um disco importante de revisitar, não só pela sua qualidade, mas também como um possível método de ponderação.

Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
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De regresso para expor outros “cancros” da sociedade.

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