Ao terminar o ano de 2019, o caminho de Isaura parecia estar traçado. Estava numa major label – a Universal Music Portugal. No ano anterior – 2018 – tinha lançado um disco de estreia bastante sólido, Human (2018), que a confirmava como umas artistas mais excitantes do panorama nacional. A vitória no Festival da Canção e consequente representação portuguesa na edição de 2018 do Festival Eurovisão da Canção com “Jardim” – tema interpretado por Cláudia Pascoal –, apresentou-a a um público muito mais mainstream do que aquele a que estava habituada. Depois, em finais de 2019, com o EP/mixtape Agosto, cantado em português, revelava uma espécie de statement of intent da pop capaz de encantar bastantes ouvidos (se assim houvesse justiça).

Mas no início de 2020, tudo mudou para a artista natural da Guarda e criada em S. Paio, concelho de Gouveia. Em fevereiro de 2020, anunciava nas suas redes sociais que tinha sido diagnosticada com cancro da mama. “Estou pronta para dar cabo dele”, escrevia na altura. E porque um mal nunca vem só, daí a pouco mais de um mês, em março de 2020, o mundo ia parar devido à pandemia da Covid-19.

Forçada a interromper o seu caminho, Isaura contemplou o que a rodeava e refletiu. Abraçou uma nova liberdade e passou a encarar a criação musical – e não só – com novo propósito. A Universal Music Portugal tornou-se uma miragem do passado e uniu-se a Filipe Survival para, ao longo de um ano e meio, criar aquele que é o seu segundo longa-duração, e o primeiro cantado inteiramente em português: Invisível, lançado no passado mês de março.

Capa Isaura - Invisível
Capa de Invisível (Fotografia: Pau Storch)

Neste disco, escutamos uma Isaura livre, leve e solta – como cantariam os D’Alva –, a contar as histórias e sentimentos que vivenciou nos últimos três anos. E o universo sonoro? Eclético, a desbravar novos caminhos, sem quaisquer medos de experimentar ou de apontar a pretensões mais comerciais. O que liga tudo? A voz de Isaura e a sua escrita, mais direta e vívida que nunca. Pop da boa – recomenda-se a escuta.

Para sabermos mais sobre como Isaura chegou a este Invisível, a Playback foi sentar-se à conversa com a artista no seu mui-acolhedor estúdio, localizado no rés do chão de um prédio em Telheiras, Lisboa.

Quando estava a preparar esta entrevista, fiquei com algumas dúvidas sobre como a começar. Mas depois ocorreu-me uma pergunta que, de certa forma, resume este Invisível para mim: Para ti, o que é ser leve neste momento?

O que é ser leve para mim? Olha, acho que é muito fácil nós às vezes, na nossa vida, seja no nosso trabalho, nas nossas relações, tanto com os outros como com nós próprios… Agora termos de estar sempre ligados, não é? Por causa de como agora tudo se processa, pelo que a sociedade se tornou. Há sempre redes sociais, há sempre tanta informação em todo o lado, e sinto que às vezes é muito fácil que estejamos sempre assoberbados por tanta coisa. Há um bocadinho de tudo a mais. Como há tanta informação, há muita coisa para fazer e muita coisa para saber ao mesmo tempo. Acho que para mim ser leve é ter a capacidade de – tanto que nessa canção [“Leve“] uso a expressão bolha – construir um bocadinho uma bolha à nossa volta em que conseguimos não estar assoberbados e dedicar o tempo especificamente àquilo que queremos. Porque acho que esta coisa de parecer que somos tanta coisa ao mesmo tempo – tudo ao mesmo tempo, não é? –  faz com que eu sinta as pessoas [à minha volta] e a mim às vezes desfocada, sabes? Há tanta–

Everything Everywhere All At Once!

Exatamente! E a palavra leve tem muito a ver com isto de podermos ser o que quisermos. E é muito preciso sermos uma coisa de cada vez. Não sei se faz sentido, mas acho que é um bocadinho isto.

Mas é curioso, porque neste teu novo disco, a nível sonoro, há muita coisa de diferente a acontecer.

Sim. Acho que é um disco onde me permiti… Antes castrava-me um bocadinho nisso. Eu gosto de vários estilos de música e gosto de cantar e de experimentar contar as minhas histórias em vários estilos de música. E neste disco, acho que me senti confortável com experimentar ou contar histórias em vários polos diferentes. Se é uma balada, é uma balada. Se é para dançar, é para dançar. Se é muito intenso, é muito intenso. Ou seja, permiti-me experimentar. Para mim, o meu único objetivo era que houvesse, quando vais da canção um à canção 12, uma sequência que faça sentido. E acho que faz.

Sim, até porque neste disco tens coisas como a “Só quero que te sintas bem”, que é uma coisa muito Dua Lipa – pop dançável –, mas depois tens toques de fado na “A noite não conta”. Como foi gerir o alinhamento do disco para construir essa tal narrativa que acabaste de referenciar?

Acho que acabou por ser muito fácil e orgânico porque tinha determinadas histórias para contar. O disco é muito biográfico, mas não é só biográfico no sentido de ser só as minhas histórias. Há histórias que não são minhas, mas são sobre coisas que me afetaram. Ou seja, [o Invisível] representa um bocado o sítio de onde vi o mundo. Portanto, como no fundo é um relato daquilo que foi acontecendo, foi muito fácil encaixar as peças. Depois, os temas, mesmo quando a produção é um bocadinho diferente, acho que tenho a sorte do meu timbre ajudar a ligar as coisas. Mas também acho que foi fácil porque antes, nos outros discos, eu trabalhava com muitos produtores ao mesmo tempo, e neste fiz praticamente tudo com o Filipe Survival. Nós conhecíamos muito bem as canções, o que queríamos dizer, e foi fácil depois organizar.

Ia-te perguntar sobre a tua relação com o Filipe [Survival]. Como o conheceste e como se foi desenvolvendo a vossa relação à medida que foram trabalhando no disco?

Olha, eu conheci o Filipe quando fui fazer uma participação numa canção [“Feels”] do Xande e ele era o produtor dessa canção. Desde aí, fiquei muito atenta ao que ele fazia e percebi que era um produtor com uma versatilidade muito grande. E para mim, que queria experimentar vários registos, isso era fundamental. Quando lhe lancei o convite, foi muito fácil [ele aceitar]. Começámos a trabalhar no disco assim os dois muito timidamente, mas acabámos o disco como amigos. Porque passamos muito tempo juntos. Foi um ano e meio para fazer este disco. Nós falamos muito. Contei-lhe de onde é que vinham aquelas histórias, muitas confidências – minhas e dele –, e é assim que acho que se desenvolve a relação entre um produtor e um artista. É falando muito. Mesmo falar sobre as inseguranças. “Será que devo fazer uma canção que é tão pop? Será que devo fazer uma canção que é tão esquisita?” E ganhar essa segurança foi fundamental com ele. A nossa relação desenvolveu-se muito à base de comunicação.

Isaura por Fábio Mota
Fotografia: Fábio Mota
Quando lhe lançaste o convite já tinhas alguma canção mais ou menos escrita?

Sim, já. Porque antes de ir para estúdio produzir, fiz umas rondas de songwriting sozinha e com outros artistas. Portanto, quando fui ter com o Filipe, já tinha se calhar umas três ou quatro ideias. Mas acima de tudo já tinha uma noção sobre o que queria falar, que acho que é o mais importante. Depois, o resto foi aparecendo ao longo do processo. Algumas foram feitas com o Filipe – umas duas ou três – e outras eu fazia e levava. Foi muito fácil depois perceber como é que íamos atacar o disco.

Mais ou menos em que altura é que começaste a trabalhar no disco?

Comecei a compor para o disco em janeiro de 2021, muito devagarinho. Depois, em outubro de 2021, fui para estúdio e comecei com o Filipe. Desde que fui para estúdio até terminarmos o disco foi praticamente um ano e meio.

Durante esse período, fizeste uma canção com os D’Alva chamada “Sala de Espera“. Essa canção surgiu quando exatamente?

Essa canção começou a ganhar forma durante a pandemia, quando tivemos a ideia de fazer qualquer coisa juntos. Era quarentena, estávamos todos em casa–

A jogar, pelo que já ouvi dizer!

Exato [risos]! A jogar. Porque era a única maneira de nos encontrarmos, não é? As pessoas encontraram várias formas de se comunicar [durante a quarentena]. Uns passavam a vida no Zoom e comecei a jogar um jogo, que é o Call of Duty, e o Ben [Monteiro] também jogava esse jogo. E às vezes acabávamos de jogar e ficávamos só os dois à conversa montes de tempo. E depois tivemos esta ideia de fazer uma canção. Eu já estava com vontade de voltar a fazer música, porque parei durante uns tempos por questões de saúde, e disse [ao Ben] que achava que estava a ficar com vontade e ele sugeriu fazermos uma música com aquilo de estarmos a jogar, que podia ser o conceito para essa faixa. Isto porque eu tinha gravado um bocadinho dos sons do jogo com o meu telefone, porque quando entras nesse jogo aquilo faz uns barulhos esquisitos, e eu gravei isso e achei que um dia podia usar aquilo como sample. Então, a história veio daí, e fizemos a “Sala de Espera”, que no fundo é sobre relações, mas onde usamos analogias do jogo.

Foi com os D’Alva, se bem me lembro, que regressaste acima de um palco, na edição de 2022 do MEO Kalorama. Como foi esse momento para ti?

Sim, mas antes disso já tinha feito uma participação no concerto dos Basilda, no Teatro Maria Matos [em Lisboa], onde cantei uma música que eu produzi [“Real Close”]. Eu não canto com eles em estúdio essa canção, mas foi assim uma participação interessante e foi assim das primeiras vezes que comecei a perceber que já estava com imensas saudades. Depois, com os D’Alva, eu gosto mesmo muito do Ben – somos muito amigos e ele trabalhou em três canções do Invisível – e gosto muito de estar com eles todos. São pessoas que me fazem ter vontade de fazer a música como eu entendo. E quando participei no Kalorama, aí já era mais do que declarado que eu estava cheia de vontade de voltar, de fazer e mostrar as minhas canções. Quando toquei no Kalorama, já tinha mesmo muito do disco avançado. Muito mesmo. Estava quase, quase feito.

Em 2015, numa entrevista que deste à Bodyspace, falavas que fazias questão de nunca “deixar que a música fosse uma pressão” para ti. De que forma esse pensamento, já referenciado há uns anos, se manifesta na liberdade presente nas canções deste Invisível?

Olha, não sabia que tinha dito isso, mas sempre foi um objetivo meu. Acho que o que sempre senti em relação à música… Fazer música é uma coisa que gosto muito. É a minha coisa favorita. E é muito fácil, e especialmente quando profissionalizamos uma coisa, principalmente para o tipo de pessoa que sou – às vezes sou um bocadinho exigente demais comigo própria, sou perfeccionista –  colocar pressões extra a mim mesma porque quero que as coisas sejam bem feitas. Não gosto de falhar datas porque não gosto de deixar de fazer uma coisa e depois a equipa estar a trabalhar e, de repente, não consegui terminar a tempo. Então, eu sempre percebi que esta coisa de às vezes me causar pressão e, como fazer música é mesmo a minha coisa favorita, não posso estragá-la por causa disso. Então tive sempre de fazer essa gestão, até porque a música que mais gosto de fazer não é sempre muito comercial em Portugal. Às vezes gosto de fazer canções baladinhas, como a “Glória“, que é uma canção muito mais comercial do que alternativa, mas na maioria das vezes gosto de fazer canções que, para aquilo que é o mercado português, não são as mais comerciais. E eu sempre vivi nesta dualidade e fiz-me essa pergunta várias vezes: “Então, mas o que é para mim mais importante? Fazer música e ter números muito grandes e viver da música ou fazer a música como eu gosto?” E a resposta sempre foi fazer a música que gosto. Porque a música, e a sensação de fazeres uma canção, de lançá-la e as outras pessoas ouvirem e mandarem-te stories ou mensagens a dizer que ouviram a música e isso as faz felizes… Isso é o que eu gosto! Então, sempre vivi muito com esta preocupação de não querer estragar esse sentimento. Portanto, eu já na altura [em 2015] tinha isso muito presente e acho que hoje em dia mais ainda. Porque quando levas um susto como eu levei e de repente tens um problema de saúde, ficas com medo, sabes? Porque não sabes o que vai acontecer. E isto acho que não foi só na música, mas noutras áreas da minha vida. Fui obrigada a pensar sobre o que estava a fazer e o que era mesmo importante para mim. E mais uma vez, a conclusão é a mesma. A música é mesmo importante para mim, mas para eu ser mesmo feliz, com a música que faço, eu tenho de fazer a música que quero. Se quero uma baladinha, faço uma baladinha. Mas se quero fazer uma coisa super esquisita, faço. Portanto, acho que hoje essa ideia está ainda mais reforçada e deu muita liberdade e convicção para fazer o disco com as canções que achava que faziam sentido.

Relaciono-me muito com o que acabaste de contar face a quando escrevo sobre música. Acho que tenho o mesmo dilema. Questiono se fizesse isto a full-time se ia ter o mesmo gosto ou a mesma liberdade que tenho agora. Acho que é um dilema complicado de lidar. Eu gosto muito de fazer isto mas o que aconteceria se eu só fizesse isto?

Ya, também penso muito nisso.

Só que olhando para o jornalismo musical e cultural enquanto profissão… Se calhar o prazer desaparece.

Acho que não é o facto de ser profissão a 100%. É depois o que isso significa. Ou seja, a tua profissão tem que te dar um ordenado, não é?

Sim.

Para tu pagares as tuas coisas. A tua casa, as contas. E ou tens a sorte de escreveres ou de seres um jornalista que encaixa muito bem naquilo que o mercado precisa, e tens sempre trabalho e é realmente aquilo que tu gostas, ou então acontece que aquilo que tu gostas realmente de escrever não serve depois para te dar um ordenado. Ou seja, é muito esta gestão. Infelizmente, tudo o que tem a ver com cultura ou artes tem estes dilemas. Mas eu acho que em última instância nós temos que fazer sempre esse balanço. Eu prefiro ter um trabalho full-time, como tenho, que não é a música, e prefiro às vezes ficar maluca [risos] com a gestão do tempo–

Isso é bué eu!

Exato [risos]! Mas quando chego à parte de fazer música, enche-me mesmo o coração. Enche-me as medidas e dá-me saúde, vida, alegria. Pode ser que algum dia consiga encontrar um equilíbrio diferente. Às vezes também penso, “Fogo, se eu só fizesse música, era mesmo fixe”, porque só fazia aquilo que gostava. Mas infelizmente, a gestão destas coisas, as oportunidades, é um pouco mais difícil. Portanto, percebo perfeitamente aquilo que estás a dizer.

Sinto exatamente isso. Será que eu se escrevesse a full-time num jornal conseguiria escrever sobre aquilo que quero com a liberdade que quero?

Sim, percebo perfeitamente aquilo que estás a dizer. É uma gestão difícil. Só nós é que sabemos. Ou seja, não há uma resposta certa nem errada. Acho que só tu é que sabes e vais entender qual é a medida certa. E essa medida pode ir mudando! Já senti essa medida a mudar várias vezes. Acho que é por fases. Ou seja, nós não decidimos uma coisa para sempre. Por exemplo, neste último ano, ano e meio, estive super focada em fazer o meu disco. Se calhar, agora preciso de descansar um bocado, e nos próximos três, quatro meses, apesar de ter coisas da música para fazer, não são coisas tão criativas. Então, vou relaxar e dedicar-me mais a outras coisas. Acho que isso é positivo. É por ciclos e uma pessoa vai-se orientando.

O teu disco de estreia, Human, foi editado pela Universal Music Portugal, mas este Invisível foi editado de forma independente. Parte da libertação que encontraste foi também de abandonares uma major para fazer as cenas à tua maneira?

Sim, acho que sim. Porque apesar da Isaura ser um projeto que não é uma banda – sou eu sozinha –, a música de um projeto não se faz sozinha. Portanto, nunca senti que isto é o meu projeto e isto são as minhas coisas. Ou seja, as pessoas com quem vou trabalhando, para mim, sinto que são da minha equipa, de todas as formas. Portanto, se eu estou numa major, e uma major é altamente focada no mercado, eu sinto essa responsabilidade também. Como são da minha equipa, quero trabalhar com eles e alinhar-me com o objetivo deles. Isso tem a ver com a minha forma de ser. Não sei, se calhar outros artistas não o fazem, mas isto é a minha forma de ser. Portanto, de alguma forma, mesmo que mais ninguém me causasse essa pressão, eu sentia essa pressão. Gosto de vestir a camisola. E lá está, mais uma vez, como quero ter a liberdade de fazer uma canção que é muito alternativa e uma canção que é uma balada super comercial no mesmo disco, isso se calhar não é uma gestão fácil. Portanto, hoje em dia sinto-me mais conectada com a minha música porque me oiço mais a mim e não estou tão preocupada com os objetivos dos outros. Acho que tem a ver com isso. Portanto, sim, acho que sim. Diria que o facto de eu ter montado uma equipa, escolhida a dedo, e fazer isto de forma independente, ajudou, sem dúvida. Não sei se o próximo será assim, mas agora senti que era o passo essencial para eu me sentir bem com este disco.

Este é o teu primeiro longa-duração cantado inteiramente em português – fora aqueles momentinhos na “Leve” em inglês [risos] , mas em 2019 lançaste um EP/mixtape cantado em português, Agosto. Muitas das bases dos sons de Invisível nasceram nas explorações que fizeste em Agosto ou foi algo totalmente novo para ti?

Acho que foi algo totalmente novo. Acho que no Agosto foi uma experiência muito mais indie. Foi só mesmo uma primeira abordagem que, na altura, senti que era importante fazer, porque não me sentia preparada para fazer um disco em português. E acho que o Agosto foi muito importante para agora me sentir mais confortável e mais confiante a fazer este disco. Mas acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Não há um seguimento, não só a nível de som, como também na minha forma de escrever. O Agosto foi feito muito a medo porque era a minha primeira vez a fazer um trabalho com várias canções em português. E quando tu dizes uma coisa em português, sentes-te mais vulnerável, mais despido, não é? E o Agosto foi todo feito à base de metáforas e de não ter a coragem de dizer exatamente aquilo que queria. No Invisível, eu digo mesmo palavras super difíceis. No Agosto nunca teria conseguido fazer isso. Ou seja, acho que foi um caminho mais de maturidade e de me sentir confortável com as palavras em português do que se calhar ao nível da estruturação dos sons, se é que isso faz sentido.

O Invisível é mais direto também. És mais clara naquilo que queres dizer.

Sim. Mas acho que isso vem também de eu ter feito essa primeira experiência com o Agosto. Ou seja, acho que a única ligação que têm é esta. Ter ganho coragem para usar as palavras exatamente como as queria dizer.

Antes disso, o “Jardim” tinha sido a primeira experiência tua a escrever em português, certo?

Sim. Eu sempre escrevi muito em português mas nunca tinha editado nada em português. O “Jardim” nem era uma canção que achei que fosse editar. Aconteceu. Mas sim, foi a primeira, pelo menos desde que faço música profissionalmente.

Como é que hoje lidas com o que viveste no Festival da Canção e no Festival Eurovisão da Canção?

Acho que foi mesmo uma experiência super enriquecedora. [A Eurovisão] É um ambiente e um circuito muito específico, com um público muito específico e uma dinâmica muito particular. E as pessoas têm prestado muita atenção nestes últimos anos ao Festival [da Canção] e à Eurovisão, principalmente desde que o Salvador [Sobral] e a Luísa [Sobral] ganharam. Então, foi interessante, especialmente para mim que sou uma artista super alternativa, lidar de repente com toda essa atenção. E acho que talvez na altura até foi um pouco confuso para o público perceber quem era a Isaura porque estava a lançar um disco em inglês. Mas acho que há mais do “Jardim” neste Invisível do que em qualquer outra coisa que fiz até aqui. Porque é o português vulnerável. Acho que isso é o mote deste disco. É eu ser vulnerável e dizer as coisas exatamente como as sinto. Portanto, vejo neste disco um bocadinho do “Jardim”.

Isso é interessante porque, olhando de fora, poderia achar que olhas para essa experiência como algo quase estranho que te aconteceu e poderias não sentir muita ligação a isso.

Não. Eu genuinamente gostei muito da experiência. Se é uma experiência bizarra? Isso é. É tão fora do normal em tantas coisas. Ainda por cima participei e nunca na vida pensei um segundo sequer que nós [Isaura e Cláudia Pascoal, que interpretou “Jardim”] poderíamos ganhar. Portanto, também fui para ali completamente despreparada. E depois foi um ano muito difícil e ingrato, de certa forma. Portugal tinha ganho no ano anterior e a edição era cá [em Lisboa] e emocionalmente foi muito difícil por muitas coisas. Mas vejo isso acima de tudo como uma aprendizagem e um amadurecimento inevitável. Essas experiências são boas para nos ensinarem coisas. Lá está. Se foi confuso para o meu trabalho enquanto artista? Isso foi. Talvez tenha confundido muitas pessoas. Mas também foi muito bom. Houve pessoas que nunca tinham ouvido falar de mim que hoje em dia ouvem a minha música. E atualmente estou no meu caminho, ou seja…. Talvez, se eu pudesse voltar atrás, participaria de forma igual, mas faria a gestão de como eu lancei o meu disco de forma diferente.

O Human?

Sim, porque uma coisa meio que atrapalhou a outra. A gestão do lançamento do Human talvez fosse a única coisa que faria de diferente.

Queria perguntar sobre um detalhe do Agosto. Esse EP conta com participações de malta como Salto [na “Meu Amor”] e o Ivandro [na “Só Vejo A Tua Boca”], que vêm de dois universos mega diferentes, e trouxeste-os para a tua visão da pop. E acho curioso o Ivandro estar ali. Hoje ele é um gigante em Portugal.

Eu ouvi a primeira canção que o Ivandro lançou, e que se chamava “Porta“. Apanhei essa canção no Youtube e tinha 300 plays. Eu ouvi aquela canção e pensei que aquele miúdo era genial. A produção era super interessante, ele a cantar, a voz dele, o timbre dele, o que ele escreve. Gostei mesmo muito daquilo e pensei que aquele miúdo tinha qualquer coisa de especial. Depois, convidei-o para ele entrar naquela canção [“Só Vejo A Tua Boca”], e quando estivemos juntos a gravar, no final ele ficou a mostrar-me montes de canções que ele já tinha preparadas. Montes, montes, montes, coisas que ele depois lançou mais tarde. Eu pensei: “Este miúdo vai ser gigante, vai rebentar mesmo à séria”. Ele tem mesmo muito talento. Quando o convidei, convidei-o porque gostei muito dele. Gosto do trabalho dele, da forma como ele escreve. É bom ver todo o caminho e todo o percurso que ele fez.

Numa entrevista que deste à M80, referiste que tentavas que o medo funcione como uma ampulheta para perceber o que realmente querias para ti. Tendo em conta tudo o que aconteceu nos últimos três anos, entre a pandemia e o teu problema de saúde, de que forma é que o medo te guiou ou te ajudou a voltar a criar?

Acho que é mesmo inevitável pormos tudo em perspetiva. Somos forçados a reorganizar prioridades, sabes? Acho que tem mesmo a ver com isso. Acho que quando tu tens medo que o tempo acabe, inevitavelmente tu pensas no que é que gostas mais de fazer e queres fazer muito disso e o mais rapidamente possível. Acho que sinto também que… Sabes quando estás com a sensação que és interrompido? Ou seja, eu estava a fazer o meu caminho, mesmo em relação à música, e interrompi praticamente durante três anos. Praticamente não, durante três anos! Então, há uma sensação que é o medo de não teres tempo para fazeres uma coisa que gostas tanto e para deixares o que tens a dizer e, ao mesmo tempo, o medo que o tempo se acabe antes de dizeres exatamente o que queres dizer e fazeres o que gostas. Ou seja, é um constant reminder de fazeres exatamente aquilo que queres e como queres. Acho que é isso que o medo nos faz. Força-nos mesmo a lidar com as nossas prioridades e a tomar decisões em função de sermos genuínos, sermos verdadeiros. Se não gosto de fazer isto, porque é que vou estar a levar com isso? São coisas da vida, não é? Se eu não gosto do meu trabalho, das 9 às 5, porque é que não procuro uma coisa que gosto mais? Porque no final do dia nós temos que ser felizes no caminho – não é só quando chegamos a um sítio. Acho que hoje em dia tenho esta coisa mais aguçada de ter menos paciência de levar com coisas que não me interessam. Portanto, o medo faz-nos isso. Força-nos a revermos as nossas prioridades.

Na “PHTGDM?” [“Porque hás de tu gostar de mim?”], há um pequeno verso que me ficou logo na cabeça: “Porque hás-de tu querer saber de mim/Eu que estou assim perdida dentro de mim“. Quando tenho muita ansiedade, sinto muitas vezes que sou um peso para aqueles que me rodeiam, e esse verso disse-me muito por causa disso. Como é para ti, de momento, lidar com essas ansiedades que estás a exprimir em alguns momentos deste Invisível?

Olha, essa tua leitura desse verso está 100% correta. Foi nesse sentido que o escrevi. Mas não o escrevi como sendo eu a dizer. Isso era uma coisa que outra pessoa me dizia. Esta é uma canção um bocado confusa em que eu escrevo do ponto de vista dessa pessoa e depois também escrevo do meu ponto de vista. Ou seja, eu imaginei uma conversa entre duas pessoas, mas as versões das pessoas não são contemporâneas. É um bocado esquisito. Mas há outros momentos no disco em que falo da minha própria ansiedade, apesar de nessa não estar a falar sobre mim. Não sei, acho que todos nós estamos a lidar com ansiedade e estabilidade emocional em várias frentes. Vejo muitas pessoas com depressão, com fear of missing out. Mesmo que não chegue a ser ansiedade, andam meio que sempre irrequietas e instáveis com o sítio onde estão. Eu acho genuinamente que isso, a minha preocupação em relação a este tema já vem com a “Liga-Desliga”, que é sobre a minha necessidade de desligar do mundo e focar mais em mim e com o caminho pessoal de nos aceitarmos, com as nossas falhas, os nossos problemas. Aceitarmos isso e irmos eliminando o que dá ansiedade na nossa vida.Eu estou nesse caminho. Acho que eu, tu, e tanta gente à nossa volta, principalmente malta que está nos vintes e trintas… é a nova epidemia, porque parece que não nos lembramos bem do que é viver mais devagar. Estamos num ritmo que não é o nosso, que não nos faz bem. Portanto, olha, eu tento voltar ao meu conceito de leve, que é viver na minha bolha, ser mais verdadeira comigo própria sobre o que quero realmente fazer, não ter medo de às vezes dizer que não–

Às vezes tenho bué medo de dizer que não.

Ya, mas temos de aprender a estar confortáveis a dizer que não. Não há razão nenhuma para não estarmos. É só que aquilo não é importante para ti e pronto. Acho que à medida que o tempo vai passando e vamos treinando isso vamos ficando melhor. Acho que é um exercício que vamos fazer até ao final dos nossos dias.

Também concordo que às vezes temos de clicar no botão de desligar.

Sim. Olha, eu ontem postei uma coisa no Instagram, porque ia tocar em Aveiro [no Teatro Aveirense], mas antes disso, já tinha decidido que eu, durante três meses, não ia utilizar as redes sociais diariamente porque as redes sociais dão-me imensa ansiedade. Gosto muito de como as redes sociais nos permitem falar com as pessoas. Por exemplo, adoro receber mensagens de pessoas que estão a ouvir o meu disco e de saber o que é que acharam. Isso é uma parte muito boa. Tens uma relação direta com milhares de pessoas que de outra forma não terias. Mas somos bombardeados! O nosso feed está cheio de coisas que às vezes não estamos mentalmente preparados para ler ou para ver. Causa-nos uma insegurança gigante. Estamos constantemente a comparar-nos e constantemente a pensar sobre o que devíamos estar ou não a fazer, mesmo que saibas que o que te apetece fazer é ir para casa ler um livro. Estamos sempre neste turbilhão de ideias. Neste momento, estou numa fase em que me apetece viver três meses a tentar lembrar-me de como era sem estar sempre nas redes sociais. E isto é uma das múltiplas coisas em que penso nessa tentativa de tirar a ansiedade, de viver mais conectada fora de pé. Eu chego a falar sobre o campo e sobre a natureza neste disco, é um bocado o meu momento Alberto Caeiro. E genuinamente acho que todos nós precisamos um bocadinho mais disso e de menos confusão.

Eu concordo mas às vezes é MESMO complicado desligar. Parece que somos obrigados a estar em cima do acontecimento.

É mesmo! É muito difícil mesmo. E depois a nossa mão já vai sozinha às redes sociais e tu de repente–

Nem dás por isso e estás no Instagram outra vez, a scrollar. Isso acontece-me às vezes quando estou em transportes…

Sim, e eu estive este tempo todo ok com isso. Mas neste momento sinto-me tão saturada que gradualmente tenho ido cada vez menos [às redes sociais]. Tenho ido mesmo muito pouco e tenho-me apercebido que, quando não vou, estou muito melhor. Ou seja, estou a fazer outras coisas de que gosto mais. É só isso. E de alguma forma sinto-me um bocado culpada. “Epá, se calhar devia ir e pôr umas coisas, mas agora não me apetece, estou na minha”. E sinto que nas redes sociais as pessoas ficam formatadas a escrever… Sei lá, eu pareço um telegrama! Estou a contar caracteres, sabes? E estamos ligados a muito mais pessoas, mas a minha pergunta é se essas ligações são genuinamente qualquer coisa de importante ou se são muito superficiais. Às vezes, até temos a sensação que vemos os nossos amigos e que sabemos o que eles estão a fazer, mas há quanto tempo é que não falamos genuinamente com eles e lhes damos toda a atenção do mundo? Comecei com estas perguntas e tenho-me sentido assim. Então, fiz esta escolha. Eu não sei, é uma experiência e vamos ver como me sinto. Mas acho que me vou sentir bem.

Entre as canções deste disco, há uma que para mim tem um gostozinho especial, que é a “Fica mais perto”. Como ocorreu a criação dessa faixa?

Olha, essa canção vem mesmo de um sítio de muita ansiedade e muito medo e muita inconstância. Essa canção fala sobre principalmente à noite eu ter pensamentos de ansiedade e medos. Isto foi na altura em que estava a fazer tratamentos e à noite, às vezes, uma pessoa começa sempre a pensar no que não deve. O que nós queríamos com essa canção era com aquelas samples de voz criar uma sensação de ansiedade, e depois, quando chegas ao refrão, aí é como se entrasses dentro da minha cabeça e vês a confusão que lá vai. Ou seja, tens um instrumental com piano e com a forma de cantar algo mellow, em que explico essa ansiedade, e depois entras para a minha cabeça e aquilo está lá uma festa gigante de coisas malucas. É um bocado esta dualidade. Lembro-me montes de vezes, de estar sentada no sofá, mas a minha cabeça parecia uma rave techno de pensamentos esquisitos. Então [na “Fica mais perto”] sou eu a contar um bocadinho essa história e essa dualidade.

No faixa-a-faixa que fizeste para o Rimas e Batidas, referiste que a “Isso” ia ter uma nova versão algures durante este ano. Como foi o desenvolver dessa faixa? No disco está em forma de interlúdio neste momento, mas pelo que percebi, há mesmo uma versão inteira desta faixa…

Essa canção foi a primeira canção a ser feita para o disco e vai ser a última a sair. É uma canção da qual gosto muito e que sofreu muitas transformações. O refrão, por exemplo, é diferente daquilo que tinha feito inicialmente. E à medida que fomos avançando na canção percebi que aquilo não era um monólogo, não era uma história só minha. Sentia que aquilo era um diálogo com alguém. E quanto mais avançávamos, mais eu tinha a certeza que era um dueto, que era uma conversa com alguém. Não era algo que ia cantar sozinha, mas precisava de encontrar a pessoa certa. E encontrei! Ainda não quero dizer, é segredo! Mas estou muito feliz porque encontrei a pessoa certa, a voz certa para cantar aquela canção comigo. Portanto, essa canção já existia. Depois, como não queria que ela estivesse já na versão digital, porque queria lançar só mais à frente, por gestão de disponibilidade da outra pessoa, e também para ter um bocadinho de tempo para chegar a versão física do disco. Quero que ela esteja na versão física. Achei que era giro deixá-la mais para a frente e sair quando lançar a versão física, o vinil. É quase um encerrar de ciclo do Invisível. E estou mesmo muito contente com essa canção. É interessante que tenha sido a primeira a ser feita e a última a sair, e depois porque gosto do nome: “Isso”. Acho fixe.

Isaura por Fabiana Tavares
Fotografia: Fabiana Tavares
À Visão, confessaste que te sentes cada vez mais preparada para “escrever para outros artistas”. Para quem é que gostavas de escrever uma canção?

Para a Ana Moura e para a Carminho, por exemplo. Acho que talvez estas duas artistas. Gosto muito de escrever fado, de escrever coisas um pouco mais melancólicas. Portanto, à primeira, diria a Ana Moura e a Carminho. São duas fadistas que gosto muito e super diferentes uma da outra. A Ana Moura agora num caminho mais alternativo, que eu acho super fixe, e a Carminho naquele fado mesmo que nos bate no peito que só ela sabe fazer. Portanto, diria elas as duas.

Já tocaste este disco ao vivo algumas vezes desde que saiu. Como têm sido esses concertos?

Olha, muito fixes. Agora este último foi em Aveiro e há uma canção que é mágica, mas que achava que era mágica só para mim, que é a “Salto”. Mas tenho percebido que é mágica em concerto. As pessoas desatam aos saltos a dançar [risos]. Não sei, talvez seja do beat, que é ali meio kizomba e meio afro, e então as pessoas desatam a dançar. É mesmo engraçado. Os concertos têm corrido bem, mas ainda estamos a afinar umas coisas. Vamos mudando uma coisa ali, uma coisa acolá, porque percebes sempre que há qualquer coisa que podes melhorar. Por exemplo, do Musicbox para Aveiro, já senti que o alinhamento fazia muito mais sentido. Se calhar agora no próximo concerto volta a mudar mais qualquer coisa. Mas é um concerto em que toco o Invisível todo, toco algumas do Agosto, toco a “Change It” do meu primeiro EP, o Serendipity, toco a “Gone Now”, que é a única música que toco do Human. E é um concerto muito, muito divertido. Dá-me mesmo prazer aquele concerto. Tem corrido muito bem.

Por curiosidade: o Serendipity não está nos serviços de streaming.

Deixou de estar–

Só tem a “Change It” mesmo.

Sim, porque essa foi distribuída como single, mas imagino que vá voltar a estar muito em breve. Deixou de estar porque o contrato de distribuição que tinha para esse EP acabou e depois fui adiando e adiando. Estava a fazer este disco e também achei que não fazia sentido tratar disso agora. Mas talvez no final do ano volte a colocar.

Falaste aí numa edição física. Para quando é que está prevista mais ou menos?

Neste momento, com tudo o que está a acontecer na Ucrânia e etc., há muitas fábricas e matérias primas que faltam. Então, as coisas estão meio atrasadas. Mas se tudo correr bem, o vinil sai em outubro.

E este ano, a nível de concertos, que tens mais na manga?

Olha, o próximo concerto é a 5 de agosto no Festival N2, em Chaves. Depois vou tocar também em outubro no Porto e em Coimbra, vou fazer lá as apresentações do disco. Para já, são estes os concertos que estão anunciados. Mas o de Agosto estou super contente porque nunca toquei no N2. Então estou muito contente por ir.

Fotografia de destaque: Daniel Coimbra

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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