Era um daqueles dias em que Lisboa parecia impossível de atravessar. Seis da tarde, 31 graus à sombra, e a cidade ainda fervilhava. Combinei com gabre, nome artístico de Gabriel Fetzne, um passeio pela capital para falarmos sobre o seu terceiro álbum, arquipélago de ilhas surdas, editado no início de maio pela Maternidade.
Curiosamente, há cinco anos, Gabriel não estaria habituado a este calor. Nascido em Gramado, na região de Rio Grande do Sul, no Brasil – uma cidade montanhosa e fria, com traços coloniais alemães, italianos e açorianos -, cresceu num ambiente bucólico, fortemente marcado pelo turismo. “Gostava de fugir desses espaços dominados por turistas e encontrar lugares mais escondidos, mais fora”, recorda. gabre passou tanto tempo a escapar durante a infância e a adolescência que esses sentimentos acabaram por penetrar na sua música. São marca de água.
Antes de criar o projeto a solo, inicialmente com o nome Gabrre, Gabriel fez parte de bandas de covers, desde os Beatles até blink-182 (um reflexo da sua fase mais emo). Em casa, os horizontes musicais expandiam-se graças aos discos da mãe. “Minha mãe ouvia muito Enya, The Police e Talking Heads. Nunca tive um estilo fixo”, conta o artista. Chegou a estudar Filosofia, movido por uma paixão inicial, mas rapidamente sentiu a desvalorização do ambiente escolar no Brasil. Foi nessa altura que começou a produzir as suas primeiras faixas em casa e a pensar num curso de design de som fora da sua cidade natal. Em Gramado, desenvolveu alguns projetos musicais, mas só em 2020, com tocar em flores pelado, o seu primeiro álbum, é que traçou o plano de deixar o Brasil. A faixa inaugural, “verão de novo”, escrita no final de 2018, já anunciava essa vontade. “Não tinha mais para onde crescer”, explica.
Veio para Lisboa no início de 2020, no exato momento em que a pandemia paralisava o mundo. “Vim para cá e fiquei logo trancado. Foi difícil. No começo fiquei meio sem saber o que estava acontecendo, e quando saí me senti muito mais confortável, porque é este ambiente que eu gosto: o mar, temperaturas quentes”, recorda.
Três anos depois, mais habituado à dinâmica da cidade, lançou o segundo disco, don’t rush greatness (2023), título que, ironicamente, contraria o processo acelerado da sua criação. Para gabre, este disco tornou-se um reflexo da sua ansiedade pelo futuro. “Estava super confuso, não sabia quem eu era”, confessa. Era o medo do futuro a dominá-lo, um sentimento partilhado por muitos no rescaldo da pandemia.

Com arquipélago de ilhas surdas, esse medo dissipou-se. “Foi um período muito ruim que passou, e consegui olhar para ele de forma cómica. Aceitei que o futuro pode ser muito mais interessante do que o passado”, afirma o artista. Depois de uma cerveja e um cigarro num café nos Anjos, seguimos a pé até ao seu lugar favorito na cidade, o Jardim da Cerca da Graça. O calor continuava, mas a conversa fluía fresca, como a cerveja que nos acompanhava.
Porque é que nos levaste até ao Jardim da Cerca da Graça? Foi um espaço que visitaste muito na produção do disco?
É um dos lugares onde mais gosto de vir. No verão está mais cheio, mas gosto bastante de vir aqui no inverno.
Na descrição do teu antigo canal do YouTube, apresentavas a tua música como “pop fofinho e confuso”. A definição mantém-se para este disco?
Completamente. Na verdade, nunca consegui definir muito bem o que é. No início usava só “pop fofo”, porque não é indie rock, não é experimental, não é ambiente, não é nada disso. Tem uma estrutura pop e é meio fofo.
E o confuso veio das camadas de som?
Isso e também porque não sou muito bom em me expressar, o que leva a que as músicas acabem sendo meio confusas. Por isso, abraço essa confusão.
É por isso que pensas muito nos acontecimentos que estão à volta das tuas músicas?
Acho que sim. As músicas não têm uma narrativa poética muito forte. São mais diretas. Isso vem do facto de canalizar os meus pensamentos sem ter muito filtro. Às vezes, não dá para entender muito bem o que quero dizer, mas funciona para o ouvinte. Quando estou escrevendo, fico confuso, mas depois escuto e penso: “ok, deu para entender o que é”. Só que é tudo cheio de reverb, então fica meio confuso. Não dá para saber o que é real e o que não é, sabe?
Isso quer dizer que este disco gira em todo do real e da ficção?
Há algumas partes do disco que não são cenas pessoais. Tem uma faixa, a “crime e carinho”, que é uma análise super irónica. É uma romantização da forma como tornamos as nossas relações banais: relações com o trabalho ou amorosas. Tudo é muito fácil e nada é orgânico, parece que se perde a essência. Colocar dinheiro num casino e ganhar de forma desonesta, ou conhecer pessoas de uma forma muito rápida e pouco orgânica. Essa música é basicamente uma ode a isso – como se fosse legal, mas não é. Acho que as pessoas estão cada vez mais agarradas a essas relações efémeras e super experienciais. Está super normalizado hoje em dia. No Brasil, por exemplo, tem aquela coisa do “tigrinho”.
O que é o “tigrinho”?
É um jogo de azar que podes jogar no celular. Tu colocas dinheiro lá e fica apertando, esperando que ele solte uma carta e ganhes dinheiro. Mas a situação está tão grave que jogo de azar é um problema de saúde pública. E no Brasil, muita gente com a renda comprometida, pessoas de baixa renda, colocam todo o dinheiro nisso. Tu fazes zero esforço e esperas que as coisas aconteçam de forma mágica e, obviamente, não vão acontecer. Acho que isso se estende também aos relacionamentos. A gente passa pouco tempo conhecendo alguém, de forma superficial, e já espera que aquilo seja perfeito. Acho que nunca mais vamos ter relações como antigamente — uma construção verdadeira.
Acho curioso que estejas a falar sobre isso porque neste disco vemos um sujeito mais apaixonado que nos outros.
Pois é. Nunca parei muito para escrever sobre isso, mas acho que acabei entrando meio involuntariamente no sentimento. Este disco é um pouco mais direto também. Tem menções por nomes nele. No entanto, já nem sinto mais tanto essas coisas, mas como estava na música, não poderia mudar. Ia ficar estranho. Ele é um pouco mais romântico, sim, mas é aquela paixão caótica. Acho o álbum bastante caótico, pelo menos a sua produção. Não é uma balada pop. É um disco mais atual e conectado com a desgraça do dia a dia.
E parece que cada álbum teu acompanha uma fase diferente da tua vida. O que é que aconteceu neste disco?
Escrevi praticamente a ideia deste álbum numa semana. Foi uma semana de desgraças. Lisboa estava completamente embaixo d’água; o Brasil perdeu a Copa para a Croácia num jogo ridículo; o meu gato, que estava no Brasil, faleceu; roubaram-me o computador com outro disco e com trabalho de faculdade.
Tudo o que acabaste de descrever está na canção “lisboa completamente debaixo d’água”.
Porque essa música acabou por ser o centro do disco. Foi a primeira que fiz, ainda em 2022. Foi ali que percebi uma fórmula técnica nova, que não estava habituado a usar. Quando consegui fazer aquilo daquela forma, vi que poderia deixar as outras músicas acontecerem ao redor. Não sabia ainda como elas iam ser, mas sabia como elas iam aparecer. Como se estivesse a ver as músicas já criadas, mas ainda meio desfocadas. Está praticamente em ordem cronológica. Tem transições, tudo bate certo.Todas as músicas estão conectadas. E acho que isso só aconteceu por causa dessa primeira música. Foi algo que sempre quis fazer, mas nunca senti que os álbuns anteriores pediam isso. Eu adoro ouvir discos em que as músicas são coladas, que fluem bem, mas se eu não tiver as músicas certas para isso, não adianta. Neste caso, elas realmente precisavam estar conectadas. A primeira, segunda, terceira… tudo segue uma ordem, depois há um centro e depois o fim. Foi muito natural.
Como é depois canalizaste esse episódio para o resto das faixas?
Ela é muito forte. É como se puxasse todas as outras músicas para si. Tanto que, no meio do processo do álbum, lancei o EP provisões de emergência em 2024 que não tinha nada a ver com este álbum. Era só guitarras, mais indie rock.
Porquê?
Porque estava cansado de samples. Já não aguentava mais trabalhar com aquilo. Então fiz um EP em duas semanas para arejar a cabeça. Depois, voltei para o projeto do disco, mais focado nessa técnica de sampling. Se não fosse para ser daquele jeito, com aquela estética e som, a faixa ia para outro projeto. As que são mesmo “canónicas” ali estão todas ao redor de “lisboa completamente debaixo d’água”. A abertura “chinese classics” serve para dar o tom, para criar o mood e anunciar o disco. As duas primeiras faixas são esse portal. A partir dali é que se entra. O disco está em ordem cronológica. Tanto no que diz respeito à narrativa como à criação das faixas. A única exceção talvez seja “crime e carinho”, que foi meio alheia, mas encaixou. Acho que a terceira faixa “i’m just like” veio ainda em 2022. Depois disso, já tudo foi feito em 2023 e 2024. Só que o processo é demorado. Às vezes, deixo uma música de molho durante um mês. Fica a fermentar no fundo da cabeça até saber o que quero fazer.
A primeira faixa é super instrumental. Que tipo de ambiente querias criar para que definisse o disco?
Queria anunciar que o disco não é mais tão “fofinho” como os outros. É a minha tentativa de ser mais sério. O disco é mais lento, mais caótico, mais cheio. A primeira faixa mostra isso. Depois, entra “lisboa completamente debaixo d’água”, que é mais leve e aérea. Os acontecimentos da música não são leves, mas ela soa assim — quase como se fosse uma “breaking news”.
E a capa do disco? Há uma relação entre ela e essa introdução?
Total. A capa é tipo um excesso sensorial, um monte de camadas e elementos do cérebro. Não é mística, é mais sensorial. E foi um caos criá-la, como tudo nesse disco. Eu tinha várias capas e ninguém gostava de nenhuma. Estavam todas erradas, mesmo. Duas noites antes do lançamento, fui para São Paulo e ainda não tinha capa. Estava com um amigo meu, que faz quase todos os meus videoclipes, e começámos a pensar no disco como um todo. Aí a ideia foi surgindo. Foi super colaborativa. Usámos os elementos do disco, como a água, e fomos construindo camadas. Lugares desfocados e irreais. É um sítio que tu não reconheces, mas parece familiar. É um meio paraíso.

A fonte que aparece faz-me lembrar a Casa do Alentejo. Já lá foste?
[Risos] Por acaso, não. Mas é engraçado dizeres isso. Aquela fonte é do Rio de Janeiro. Mas o Rio tem coisas muito parecidas com Lisboa. É como Lisboa só com muita cerveja [risos].
Falando do fim, a quem te referes na canção “nós vamos te amar para sempre”?
Essa foi a mais “bad”, digamos. Foi um período muito intenso: eu estava no fim da tour do disco anterior, tinha terminado um relacionamento, era inverno, estava a mudar de casa — saí da minha casa para voltar para a minha antiga casa. Uma grande treta. E eu estava num período bem preto: sem os meus equipamentos, só com um MacBook com o alto-falante estourado. Gravei tudo com o que tinha, noutra casa, com outras pessoas. A canção surgiu quando a minha mãe me mandou uma mensagem naquele dia. Eu estava muito em baixo, e ela disse para eu não ser tão duro comigo e para não deixar os meus olhos pararem de ver o que ainda posso ver, e que ela e os meus pets — os meus irmãos felinos e caninos — iam amar-me para sempre. E foi aí que nasceu a canção.
Então é uma música que escreveste para ti?
Sim e não. Ajudou-me muito. Fazer essa música foi uma forma de cura. Mas é também uma música para quem precisa ouvir isso. É para a minha mãe, também. Acho que ela é direta para ela. Mas no fundo, é geral.
Sendo tu um artista que costuma utilizar muitas imagens e sons de arquivo, como é que foste buscar esses samples todos? Gravaste alguns sons tu mesmo?
Alguns sim, especialmente os field recordings. Gravações de sons ambientes, tipo os pássaros, água, chuva, isso é tudo meu. Mas as outras samples, foi uma mistura. Muitas encontrei nesse mesmo fluxo que surgem as músicas. Às vezes, estava ouvindo algo e pensava: “tem qualquer coisa aqui”. Então ficava pesquisando sobre aquela música, tentando entender se encaixava.
E há muitas músicas com samples?
Quase todas. Acho que só duas tracks não têm. Algumas foram mais diretas, por isso já sabia que queria usar aquela música. Outras, tive de baixar umas gravações antigas de rádio, cheias de ruído, e procurar lá no meio alguma coisa que fizesse sentido.
Qual foi a canção mais rápida de criar?
A “nós vamos te amar para sempre”. Foi toda muito direta. A sample é um cover de Boards of Canada, só que tocado num piano desafinado. Eu não tinha instrumentos na altura, então usei essa base e fui adicionando camadas — drums, baixo, texturas, outro piano e synth. As outras eu gravei guitarras, baixos, baterias. Por exemplo, “Lisboa” tem aquele violão que eu mesmo gravei, e o resto foi para cima. Então, a sample é só a base mesmo.
Como funciona esse teu método de inspiração? Vais buscar a matéria-prima ao dia-a-dia através da observação?
Não, porque se fosse assim, ia perder a essência. Eu não sou muito de ficar observando e anotando tudo. As coisas só vão se juntando na cabeça — uma sequência de acontecimentos — e isso vai girando lá dentro. Aí, na hora de escrever, meio que aparece automaticamente. Na hora, eu lembro: “ah, são essas situações aqui”, e junto todas numa e faço uma track. Mas não fico observando com esse olhar de fora e escrevendo diretamente. É mais interno mesmo.
Pensei que talvez o fato de estares aqui – fora da tua cidade – pudesse ter ajudado a ter outro olhar. Um olhar mais crítico, mais atento ao que antes era banal.
Total. Quando morava na minha cidade, eu não via as coisas como quem chegava lá, porque a gente banaliza o lugar. Aqui ainda não banalizo. Já faz quase cinco anos que estou em Lisboa, mas ainda me surpreende. Acho que o estilo de vida aqui permite isso. Lisboa é mais devagar, não no sentido de parada, mas de ter um ritmo que convida a observar, a respirar.
Já começaste a sentir o lado turístico saturado de Lisboa como sentias em Gramado?
Sinto um pouco. Mas, assim como lá, a solução que encontrei aqui foi a mesma: não ficar no centro. Vou para outros lados.
E porquê esse método de compor a partir de acontecimentos e não de temas específicos?
Não sei. É só como começou e nunca senti vontade de mudar. Acho que nunca fiz uma música que fosse conceitual no sentido tradicional. Já quis – talvez faça um dia -, mas não é como pretendo criar música. Para mim, as músicas se manifestam. E eu canalizo elas. Não é místico, é simples: elas estão no ar, e eu trago. Quando as publico, nem sinto que sejam minhas. Nunca senti controle ou pertença. Quando um disco sai, já não é mais meu. Fiz parte do processo, estive com elas, mas depois, acabou. Quando estou no palco, estou só a interpretá-las. Não é a “minha música”.
É aquela ideia da arte que, ao ser exposta, deixa de ser do criador.
É isso. Acho uma forma saudável de trabalhar. Também nunca tive vontade de criar apego. O dia-a-dia já é fascinante o suficiente para mim, já me dá assunto. Mas quero experimentar outras abordagens no futuro.
Isso influencia o modo como tocas ao vivo?
As canções podem deixar de ser minhas, mas gosto muito delas. Então, eu me divirto. Ainda mais agora com a banda — meus amigos — o processo é todo mais leve. É como voltar para o momento da criação, só que com mais alegria. Estar em palco com eles a tocar já é tudo. Mesmo que as músicas não sejam “minhas”, eu estou ali com elas, junto do processo.
Achas que a presença da tua vivência na cidade nas tuas músicas remete a locais específicos?
Acho que sim, mas não é algo explícito. Algumas canções remetem para a praia, outras para as noites e outras para os dias. Mas não dá pra apontar no mapa. É mais um clima, um arredor. Lembro-me de uma faixa que se chama “água de beber”, do álbum don’t rush greatness, que é inspirada num bar, localizado em Lisboa, com esse nome. Só fui lá duas vezes, nem tenho uma ligação muito forte com ele, mas os lugares e as pessoas acabam por importar, mesmo quando tento fingir que não. É impossível separar.
E porquê essa tentativa de separação?
A ideia é ser algo mais universal. Não quero que fique demasiado pessoal ou codificado. Só quem conhece aquela pessoa ou lugar entende. Mas, ao mesmo tempo, é inevitável.
Produziste o disco todo em casa?
Sim, tudo em casa. Houve só alguns momentos em que fui ao estúdio para gravar baterias, e duas faixas foram mixadas por um engenheiro de som que também fez a master [Olímpio Machado]. Mas a maior parte foi mesmo no meu quarto: fim de semana, computador ligado, uma cerveja e um cigarro [risos]. É simples, mas ao mesmo tempo, não é. Fico muito tempo a ouvir outras músicas, a pesquisar sons e arranjos, a testar ideias. Faço muita coisa que nunca chega a sair, mas eu gosto disso. Faço música quase todos os dias. Este ano foi a primeira vez que fiquei uns três meses sem fazer nada, e foi estranho.
E como é que surge uma música, normalmente?
Começa com a base: geralmente uma sample. Depois, escrevo a letra. Aí, junto tudo e começo a adicionar os elementos: arranjos, texturas e synths. Essa parte é a mais demorada. Gravar, apagar, gravar de novo. Fico mexendo em detalhes por horas. Por isso demoro tanto a lançar: é difícil parar. Tem sempre mais um detalhe para mexer.
O que é que significa “arquipélago de ilhas surdas”?
Nem eu sei explicar [risos]. Esse nome apareceu na minha cabeça um dia e só fez sentido para mim. Não sei explicar muito bem, mas para mim, ele encaixa no disco inteiro. É como se cada faixa fosse um mundo próprio: um arquipélago. Elas existem no mesmo universo, mas são meio independentes. Comunicam entre si, mas também funcionam sozinhas. Dá para ouvir separadamente, mas há uma ligação. Para mim, é quase uma análise do contexto geral da sociedade onde a gente vive. A ideia dessas “ilhas surdas” veio de pensar em como a gente vive hoje: cada um fechado numa bolha, com uma opinião, numa eco chamber. Criamos essas pequenas ilhas de discurso que não se comunicam umas com as outras. Isso aparece na política, no debate cultural, em tudo. Gosto muito de política, então essas coisas entram naturalmente no meu pensamento, mesmo que de forma abstrata. Depois fui pesquisar e vi que esse nome nem existe em lugar nenhum.
E no disco, há alguma faixa que discute diretamente essa frustração?
Não. Acho que essa discussão atravessa o disco como um todo, mas de forma indireta. O disco, para mim, é quase uma forma de escapar desse debate — porque ele já está presente todos os dias na minha vida. O álbum é uma abstração, uma fuga através da observação do cotidiano. Pequenos gestos, pequenas cenas.
O que mais te inquieta nessa questão cultural?
São várias coisas. Mas sinto que vivemos num mal-estar geral. Culturalmente, até acho que estamos bem. Muita coisa boa está a ser feita. As tecnologias democratizaram o acesso à criação artística, e isso abriu um espaço criativo muito potente. Mas política e socialmente, acho que estamos num momento de retrocesso. É cíclico, mas está cada um por si. Perdeu-se aquela ideia dos anos 2000, até meados de 2010, de que o mundo estava a caminhar para ser uma aldeia global. Agora é o contrário: cada um se fecha, se isola, e que se foda o outro. A gente perdeu o hábito de debater coisas sérias de forma séria. Isso é mais evidente na direita, mas a esquerda também se perde às vezes. A gente se fragmenta em causas e deixa outras super importantes de lado. Viramos tribos — ou aldeias. Ninguém trabalha mais em conjunto. E o mais preocupante é que estamos a voltar para trás. Acho que isso vai durar mais uns quinze anos para recuperar tudo. Vai ser muito mais difícil.
Fizeste uma turnê pelo Brasil. Como foi voltar a casa?
Foi muito bom. Nunca tinha tocado no Brasil depois de lançar um álbum. E agora foram oito shows seguidos – foi surreal. Nem sabia se alguém me conhecia lá. Tenho uma base pequena no Brasil, mas não esperava que as pessoas soubessem as músicas. Foi estranho, mas muito bonito. Toquei com o Irmão Victor, que tem um projeto muito forte e também narrativamente parecido com o meu. Musicalmente, nem tanto. Mas os públicos são compatíveis. Foi legal ver a reação das pessoas. Meio envergonhadas no início, mas depois tornou-se numa festa.

Sabiam as letras?
Sabiam! Isso foi o mais inesperado. Eu próprio não lembrava de algumas letras [risos]. Havia uma faixa que errava em todos os concertos, porque não ensaio tanto. Fico mais preocupado com os outros elementos do show.
E como é que descobriram o teu projeto?
Acho que a maioria já conhecia o primeiro disco. Ele teve algum buzz, saiu em algumas playlists. E a tour também chama a atenção. Mas, honestamente, nunca investiguei muito como chegaram até mim. Até porque sou péssimo a ter essas conversas. Acabo mudando de assunto logo.
O que achas do engenheiro de som Eduardo Vinhas para dedicares uma linha da letra na faixa “lisboa completamente debaixo d’água”?
Cara, gosto muito dele. Foi meu professor quando tirei design de som na ETIC. E, sinceramente, acho ele um mago da produção musical. Ele é super técnico, super criativo, e admiro muito a forma como trabalha. Os discos que ele produz são sempre muito bons, e ele tem um jeito muito próximo de trabalhar com som que me inspira bastante. Como professor, ele foi genial. Ele conhecia as mesmas referências que eu levava, e isso dava uma segurança absurda. Mostrava uma ideia meio maluca e ele dizia: “Não, isso está certo. Isso é bom.” Só de ter passado aquele tempo com ele já me ajudou muito, não para aprender a mexer em plugins, mas para entender o processo criativo mesmo.
Ele teve alguma influência direta neste disco?
Não, acho que ele nem ouviu ainda. Mas também não importa. Teve uma fase minha em Lisboa em que ele era uma grande referência. Lembro que mandei uma mensagem para ele, a perguntar como ele gravou os violões da “Canção da Rejeição” do B Fachada. Ele só respondeu: “com microfones” [risos]. Foi genial. Acho que foi uma fase em que estava muito dentro das produções dele, e isso naturalmente ficou em mim. Um dia talvez mande o disco para ele.
Há alguma coisa que ele te tenha dito que guardaste para ti?
Quase tudo, na real. Principalmente essa ideia de que, no fundo, produção musical é só direcionar as coisas. Microfonar, testar, testar de novo. É isso que é divertido. Explorar o som como se fosse matéria física. Como se fosse um objeto que ocupa espaço. E aí, quando colocas esse som num espaço, numa sala, por exemplo, e depois trazes a sala para dentro do som. É mágico. Fiz um projeto com ele assim. As músicas estavam todas digitais, dentro da máquina. E aí decidimos gravar esses sons dentro de uma sala, reamplificá-los, e captar esse ambiente. Isso muda tudo. Cria uma identidade que nunca vai ser replicada. A música fica espacial, quase livre. Como se não pertencesse a ninguém.
Isso casa com aquela ideia que disseste há pouco das tuas influências já não serem exatamente tuas.
Exatamente. A música, às vezes, nem pertence a um lugar. Ela é só livre. No fim das contas, a música é inútil.
Como assim?
No sentido de que não tem uma função objetiva, uma chave de fendas ou um martelo. A arte em geral é inútil — e isso é o que a torna tão incrível. Ela não precisa servir para nada. Só precisa existir. Pode tocar alguém, marcar um momento, fazer companhia. E isso basta.
E o canalzero. Já fizeram as pazes?
[Risos] Eu e o Bernardo somos amigos. A gente teve a ideia de fingir uma discussão, uma treta falsa, para divulgar os concertos. Mas a coisa saiu do controle. As pessoas acreditaram mesmo. Estávamos num bar aqui perto de casa, o Tropical Time, e pensamos: “O que dá engajamento?” Resposta óbvia: desgraça. “Vamos fingir que brigamos.” Fizemos até um vídeo super longo, com o Bonança — que toca guitarra nas duas bandas — fingindo que estava a gravar escondido. Discutimos durante oito minutos sobre autotune, sobre como ele estava a cantar mal. Tudo fake.
É a tua nova estratégia de promoção de trabalho?
[Risos] Já não é a primeira vez. Para lançar um videoclipe, comecei a postar uns stories com fundo preto a dizer: “preciso falar a verdade”. Depois lancei um vídeo dizendo: “tudo o que aconteceu nesse vídeo é verdade”, mas claro que não era. Ou era. Estava num espaço meio cinzento. Foi um sucesso. As pessoas clicam. Eu clicaria. Todo mundo gosta de uma fofoca.
Fotografia de destaque: Renato Chorão
gabre apresenta arquipélago de ilhas surdas este sábado (21) nas Damas, em Lisboa. A abrir a noite, concerto de canalzero. A fechar a noite, xin yum b2b waitresslover_97. O bilhete custa 8€ e é adquirido à porta.