Os Divã não têm medo do rock, e é através dele que se descobrem a si mesmos. Do humor à dramatização, e fazendo jus à abrangente definição de pós-punk no seu trabalho, da banda espera-se o inesperado. Filho Prodígio, o seu EP de estreia, lançado no final de novembro, não quer ter um som nem caber numa caixa. De igual forma, é também reflexo de um grupo que já demonstra um nível de maturidade notável para quem ainda agora começou.
Orgulhosamente sediados na Amadora, Salvador Lobo Xavier (bateria), Gabriel Nery (voz, saxofone), João Milho (guitarra), Francisco Nunes (guitarra) e Mafalda Andrade (baixo) cruzaram-se todos pela primeira vez na Escola Superior de Teatro e Cinema. “[A ideia da banda] surgiu como uma piada. Eu, o Salvador, o Chico e o Rodrigo Duarte, um amigo nosso, numa aula, tivemos a ideia de fazer uma banda de paródias relacionadas com cinema”, revela João. “Nasceram” aí os na altura Dedo na Porca, que pouco depois dariam o seu primeiro concerto na garagem da faculdade em abril de 2023, numa festa da associação de estudantes, já como Divã. O concerto foi tão ruidoso que “nem foi preciso amp”, lembra o guitarrista.
Foi durante esse soundcheck que surgiu “Barracuda”, o single de estreia da banda. Segundo eles, reflete o estado de espírito do grupo nesses momentos iniciais – de quererem tentar simplesmente “compor alguma coisa”. “Vou ser sincero, antes de tocarmos na SMOP [o segundo concerto da banda], achava que não íamos a lado nenhum”, admite Salvador. “Achava que íamos só dar esse concerto na AE e que tudo isto era para a brincadeira.”

Nesta altura, e como seria de esperar, a filosofia DIY reinava no reino dos Divã. Tanto “Barracuda” como “Joelhos”, a segunda demo que lançaram, foram gravadas no estúdio caseiro de Salvador, com 15 almofadas e o seu divã (que, de acordo com o baterista, dá nome à banda) a fazer de isolamento, e uma cadeira a fazer de tripé. Mas, além do elemento técnico, a banda não sentiu uma diferença muito grande entre as gravações de Filho Prodígio, nos Estúdios Cedofeita, e do seu trabalho anterior. De qualquer forma, para Gabriel, a palavra-chave foi preparação. “O EP foi uma coisa mais estruturada. Para além de ter músicas que precisavam de um trabalho diferente sem ser esse DIY em casa, fizemos o crowdfunding e tínhamos dinheiro dos concertos. E pronto, gravando nos Estúdios Cedofeita, sentimos que devíamos ir com uma preparação diferente.”
O processo de gravação acabou por ser um processo de descoberta para a banda. “Achava que éramos muito mais pesados do que éramos quando fomos gravar.”, diz-nos o vocalista. “Acho que a única coisa que se manteve ao longo do tempo é esse ímpeto de criar músicas que salientam diferentes géneros. As nossas músicas não são todas uma ‘Ponto Morto’, não são todas uma ‘Morte em Abrantes’”, refere. Isso é notório em Filho Prodígio: um EP que é uma coleção de sons e filosofias que se entrelaçam de uma forma extremamente interessante. Como Salvador refere, os Divã não estão “preocupados em fazer algo porque sim”, mas em ser fieis às suas ideias, transformando-as em músicas. Se há algo que define a banda, é a experimentação. Desde “Ponto Morto”, uma faixa prego a fundo sem medo da distorção, a “Sangue”, que enverga por um caminho mais introspetivo mas sem ser menos catártica, Filho Prodígio surpreende a cada faixa, e por isso é um disco que dá vontade de ouvir uma e outra vez. Mas a grande surpresa do projeto adveio de uma das músicas que foram lançadas como demo. “Morte em Abrantes”, definitivamente a faixa mais icónica do grupo até ao momento, sofreu vastas alterações. Na versão single, ouvimos uma música extremamente teatral, muito por culpa da performance vocal de Gabriel e de uma composição que se definia pela repetição, a dar uma sensação de marcha (talvez fúnebre, a olhar para o título). No álbum, ganha uma outra fluidez, alterando de forma bastante drástica a ideia narrativa que passava para o ouvinte na sua versão anterior.
De acordo com o vocalista, também autor da letra da faixa, as mudanças surgiram de um distanciamento que o próprio sentia em relação ao que a música representava. “A ‘Morte em Abrantes’ é uma espécie de corta e cose de alguns episódios que me aconteceram numa altura em que eu não estava muito bem. Gosto mais desta nova versão, não num sentido qualitativo de dizer que as escolhas que fizemos no EP são melhores, mas porque me libertou daquilo que era a canção.” Este impulso perfeccionista é uma das grandes bandeiras dos cinco membros da banda. “Acho que estamos sempre a descobrir-nos”, refere Salvador. “Crescemos muito juntos, seja a forma como tocamos os nossos instrumentos e como um conjunto”, declara o baterista. Os Divã, como qualquer banda que passa muito tempo a tocar, já melhoraram muito desde do primeiro concerto na garagem da ESTC. “Além de estarmos todos a tocar melhor, sabemos melhor como tocar uns com os outros”, conclui.

Foi por isso merecido o convite para abrir os dois concertos dos britânicos Maruja em Portugal em novembro passado, experiência essa que também lhes alargou muito a sua perspetiva, especialmente na forma de estar em e fora de palco. “O pouco que falei com o Harry (Wilkinson, vocalista dos Maruja), ele estava sempre, antes dos concertos, na paz do senhor, a fazer a sua cena, e depois entra em palco e é aquilo que vimos. Isso deu-me uma visão muito diferente do que é estar em palco e fora de palco, e fez-me pensar como é que isso se podia aplicar à nossa realidade”, diz-nos Gabriel. Já para Salvador, as lições foram outras. “Acho que aprendemos muito a ler melhor o público. No início, eu não sabia ler o público, pedia moche em todas as músicas, e às vezes isso não resulta. Eu só queria que o pessoal se mexesse. Agora, sei que às vezes o pessoal não se quer mexer, e é preciso perceber se a malta quer dançar ou não.”
Não é que os Divã sejam uma banda que alguma vez tenha tido problemas em como se apresenta ao vivo. Aliás, uma das suas grandes conquistas foi a vitória no concurso de bandas de Corroios. Mas a familiaridade de que Salvador fala mudou a sua presença nos concertos. “Agora que as coisas [ao vivo] são feitas com mais segurança, podemos dar-lhes mais propósito”, diz-nos Gabriel Nery. Salvador dá o exemplo de um dos seus mais recentes concertos, no Ferro Bar, no Porto, com os Nikita Curtis. Durante esse concerto, durante a bridge da “Ponto Morto”, o baterista foi para o meio do público puxar por eles. “O Salvador de repente sair da bateria poderia ter sido uma situação em que eu ficaria atrapalhado se fosse há seis meses”, reflete Gabriel. “Não sentia ainda a segurança que sinto agora com a banda.”
Porém, quer falemos dos Maruja, assumida influência da banda, o que tornou ainda mais especial a oportunidade de abrirem para eles, ou dos IDLES, que também os inspiraram inicialmente (Gabriel recorda ter tentado fazer “um rip-off” de Joe Talbot, mas rapidamente percebeu que não funcionava com o som que queriam alcançar), os Divã enfatizam a importância de seguir o seu próprio trajeto. Foi ao conhecer mais daquilo que se faz no nosso país e ao ir a mais concertos que a banda ganhou confiança para fazer as coisas à sua maneira: inscrever-se noutras coisas, em concursos, “planear concertos de forma diferente”, descreve Gabriel. O objetivo dos Divã é claro: perceber como encontrar o seu lugar no paradigma musical português sem perderem a sua essência. “Queremos perceber como ser levados a sério sem precisarmos de o ser”, reflete o vocalista. Com isso em mente, os Divã olham para os 800 Gondomar como uma referência a seguir, por sentirem que o trio nunca perdeu esse lado, e que a sua música não é levada menos a sério por isso.
É em “Mãe”, a segunda faixa de Filho Prodígio, que se encontra uma outra característica crucial para entender os Divã. Uma das músicas mais populares do EP, é também uma das que mais mudou ao longo do tempo. Tal como “Morte em Abrantes”, Gabriel revela-nos que, entre a primeira vez que a banda tocou a malha até à versão que se encontra no EP, até os acordes foram alterados. O poder de “Mãe” está no seu carácter introspetivo. Nela reflete-se sobre a experiência universal da relação entre mãe e filhos, ou entre o indivíduo e a pátria: “Acho que acedermos àquilo que achamos que é ser português é de valor e é algo que queremos muito fazer.” Na verdade, é isso que os separa de muitos outros: os Divã são verdadeiramente uma banda de rock português, apesar das suas influências serem maioritariamente estrangeiras. A banda explora tanto a sonoridade pós-punk britânica atual como recupera o espírito irreverente e áspero do trabalho que se viu sair da editora de culto B. “Eu quero que isso esteja cada vez mais nas nossas músicas. A ideia de se puxar pela identidade portuguesa naquilo que fazemos”, diz-nos João.
Os Divã tanto querem mudança e imprevisibilidade como “voltar às raízes”. Este seu primeiro trabalho é um grande primeiro passo nas duas direções. De qualquer forma, já têm um percurso do qual se devem orgulhar. “Mesmo que acabe agora, pisar o mesmo palco que uma das minhas bandas favoritas já vai ser algo de que me vou lembrar até ao final da minha vida”, partilha Gabriel, a relembrar a experiência da sua banda abrir para os Maruja.
Perto de cumprirem dois anos como banda, os Divã estão muito longe do fim da sua história. Enquanto continuarem a evolução que têm demonstrado neste seu caminho, serão uma banda que vale a pena ouvir e assistir. Até lá, vão manter-se fieis àquilo que são. “Gostava mesmo que nos vissem como a banda da Amadora. São os Buraka (Som Sistema) e estamos nós a seguir”, chuta Francisco, provocando o riso, como em grande parte da entrevista que a Playback teve com a banda. Já Salvador deixa-nos uma promessa, inspirada nos 800 Gondomar. “Se um dia tocar na Grécia, vou despir-me todo.” Fica mais um incentivo para o punk português lá chegar.
Fotografia de destaque: Carolina Rebelo