No dia 25 de julho, uma sexta-feira, desmarquei compromissos e decidi algo raro: ficar em casa e deitar-me cedo. “Está tudo bem, estás doente?”, perguntou a minha mãe, estranhando que eu não tivesse planos para a noite. Respondi-lhe com naturalidade: “Está, mas amanhã tenho de acordar às cinco da manhã. Vou a um festival que começa às seis.”. Ela abanou a cabeça e disse: “Pois, só podia.”

E assim, no dia 26 de julho, nasceu o Extremo. Integrado no programa Braga Capital Portuguesa da Cultura e organizado pela associação cultural Capivara Azul, o festival começou de forma inesperada – às seis da manhã, com um concerto a coincidir com o nascer do sol – e num local inesperado. Desde o anúncio do festival, algo me intrigava sobre o espaço escolhido para o evento: o monte da Falperra, em Braga – habitualmente reservado a passeios religiosos de domingo em família ou, dependendo da fé de cada um, a marotices dentro do carro. Além disso, intrigava-me o Extremo ser um festival de música experimental, algo que eu nunca tinha experienciado. Quando soube desta novidade, senti-me desafiado e preparei-me para estar lá pleno, pronto para descobrir do que se tratava.

Segundo a organização, esse era precisamente o objetivo: desafiar o público. Mas também para eles foi um risco. Debateram longamente se deviam abrir o festival logo de madrugada, mas decidiram manter-se fiéis à ideia inicial. O maior obstáculo era o receio de não haver adesão. Afinal, quem se levantaria às cinco da manhã, num sábado, para assistir a concertos de música experimental?

Aparentemente, pelo menos 100 pessoas. A prova foi a longa fila para o shuttle que nos levou ao topo da Falperra de madrugada e o aglomerado de pessoas cheias de boa disposição. Os concertos da manhã decorreriam mesmo no topo da Falperra e, para evitar congestionamentos e ruídos desnecessários, a única maneira de lá chegar era através de um shuttle providenciado pela organização do festival.

O som da alvorada

O festival começou com um concerto conjunto do músico Cody XV e do cenógrafo Diogo Mendes. O palco estava montado junto à capela no topo da montanha, e à volta via-se o público a absorver a beleza e a imponência do cenário. Cody XV tocou entre placas acústicas de plástico que, surpreendentemente, num local tão ventoso, funcionaram muito bem para garantir uma acústica capaz de satisfazer a audiência. Munido de um sintetizador, apresentou música calma e contemplativa, perfeita para abrir o dia e abrandar os ânimos. No público via-se de tudo, desde festivaleiros que estavam lá para riscar mais festivais da lista, moradores idosos que estavam curiosos e ainda pessoal que viu ali uma oportunidade de conhecer a Falperra e de dar um passeio com os seus amigos caninos.

Já perto do final, o concerto ganhou uma nova dimensão quando Tiago Sampaio – também conhecido pelo seu trabalho como St. James Park – surgiu entre os plásticos, de guitarra em mãos, acrescentando novas camadas de som ao espetáculo. Confesso: podia ter tocado mais, porque foi o momento em que fiquei mais rendido.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

A grande adesão ao concerto de abertura surpreendeu todos. E não foi apenas em número: a qualidade do público era evidente, já que quem estava ali queria mesmo estar. Afinal, o único verdadeiro (e grande) obstáculo era o horário, pois o festival era gratuito. Além disso, a organização tomou medidas para facilitar o acesso, através de parcerias com os transportes urbanos de Braga.

Mal o concerto terminou, segui para a capela ao lado, onde aconteceria o próximo espetáculo. Como a minha investigação sobre o cartaz do festival se resumia a saber que o foco seria na música experimental, cada concerto tornava-se uma aventura. E este foi, sem dúvida, um dos melhores a que assisti.

Quem me rodeava explicava que a artista em palco seria Maria W. Horn, que tinha aberto os concertos dos Swans na sua mais recente passagem por Portugal. Dentro da capela, no fundo do espaço, estavam mesas com copos de vidro cheios de água em diferentes alturas. Maria subiu os degraus e colocou-se diante da mesa, com uma imagem de Nossa Senhora por cima dela e, através dos movimentos suaves das mãos nos copos de vidro e de backing tracks que solidificavam ainda mais o som, começou a invocar anjos e demónios que pareciam habitar aquelas paredes. Foi surpreendente como, às sete da manhã, consegui ficar tão desperto para ouvir música calma, capaz de me conduzir a uma sensação de paz. Esse foi o tom que marcou o dia: a paz. A meio da atuação juntaram-se Mariana Caldeira Pinto, Maria João Vieira Leite, Mariana Vital e Maria Bustorff, acrescentando um coro etéreo e mais copos a soar que elevaram ainda mais a experiência já catártica.

No meio desse som hipnótico, a capela estava cheia, imóvel e atenta a este ritual. As portas permaneceram abertas durante o concerto, já que muitos não conseguiram entrar e se sentaram do lado de fora para ouvir. Os copos ecoavam e, curiosamente, numa capela minúscula onde nem o sermão de um padre teria boa acústica. Tudo soou perfeito.

Quando terminou o concerto, voltamos cá para fora, para o meio das árvores e pedregulhos, e tomámos café, todos reunidos por uma energia estranhamente familiar. De seguida, preparamo-nos para uma caminhada pela floresta até ao recinto principal do festival. Como a organização não esperava tanta gente, foi preciso improvisar: rapidamente formaram-se grupos para descer o monte da Falperra e em pouco tempo estávamos a caminho.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

A descida, dependendo de quem perguntasse, podia ser considerada fácil ou mais exigente, mas sempre agradável. Para os que tiveram dificuldade, não faltou espírito de camaradagem pelo percurso. Pelo percurso houve duas paragens para residências artísticas, sendo a que mais me fascinou foi a instalação da Cláudia Martinho.

Numa clareira, viam-se objetos dispostos de forma quase ritual, um espelho no chão com água, sons de natureza, música tradicional e vozes a ecoar. Num grupo de pelo menos vinte pessoas, ficámos imóveis, num instante que pareceu durar uma eternidade e um segundo ao mesmo tempo. O que mais me marcou foi a sensação de experiência coletiva: todos atentos, sem distrações, só a ouvir e a absorver o espaço. Algo que noto muitas vezes é a incapacidade das pessoas em simplesmente estar paradas, sem recorrer a estímulos tecnológicos. Aqui, não havia isso. O som atravessava-nos como um fantasma partilhado, e eu sentia-me seguro no meio de estranhos.

Foi uma caminhada leve e no necessária, porque precisávamos de estímulos para esquecer que tínhamos acordado às cinco da manhã. Quando chegámos finalmente ao palco principal, confesso que senti uma ponta de tristeza: estava a gostar muito do percurso.

O concerto seguinte foi de Alexandre Centeio, a apresentar o seu mais recente disco, Silvo, lançado em 2024. Às 11h30 começaram a soar os primeiros estalidos da música de Alexandre – ruidosa, mas com momentos de harmonia que ofereciam algum sentido até a quem não fosse apreciador de ambient e noise. O concerto aconteceu num espaço incrível: em frente à capela de Santa Marta do Leão, num corredor amplo, rodeado de árvores e com a sombra tão necessária para um dia que ultrapassou os 30°C.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

Foi ali que se revelou um dos pontos mais fortes do Extremo: a liberdade para viver o festival como quiséssemos. Ao contrário da imagem cliché de um evento de música experimental – gente carregada de drogas, a olhar fixamente para um artista escondido atrás de uma mesa de mistura – aqui não havia rótulos. Via-se gente deitada a relaxar, pessoas sentadas a contemplar a comer o seu lanche da manhã e outros, de facto, atentos, sem desviar o olhar de Alexandre. Eu deitei-me sobre a pedra, fechei os olhos e deixei-me levar pelo ruído, que combinava na perfeição com a brisa, o calor e as cores daquele espaço. Sem dar por isso, adormeci e isso só tornou o concerto ainda mais maravilhoso. Quando acordei, já estava a terminar, mas não abri os olhos: fiquei deitado até ao fim. Levantei-me com as costas a queixarem-se do sacrifício da pedra dura, mas com o estômago musical completamente satisfeito.

Para fechar a manhã chegaram os berlinenses Gordan. Mais uma vez, eu não tinha grandes expectativas, mas a curiosidade bateu forte: era o primeiro concerto do dia com bateria, algo que até aquele momento achava ser proibido no festival. Os Gordan são um trio de várias nacionalidades (Sérvia, Alemanha e Áustria) que faz música experimental algures entre a repetição pesada dos Swans e a espiritualidade dos Dead Can Dance. Essa mistura ganhou ainda mais força com a voz de cortar a respiração de Svetlana Spajic.

Embora eu seja um apreciador de me deitar e deixar o noise embalar-me, aqui foi diferente: era hora de esticar as pernas e, mesmo antes do almoço, abanar bem a cabeça. O público estava dividido: alguns já a ceder ao cansaço e a sonhar com uma sesta, outros a resistir firmes, a absorver a energia do trio. O instrumental criava texturas perfeitas para a voz brilhar e arrepiar até a espinha. Mas não era só a voz de Svetlana que impressionava: fiquei completamente rendido ao que Andi Stecher (bateria) e Guido Möbius (baixo e eletrónica) faziam. Jogavam com o feedback de uma forma artesanal. Houve momentos em que tudo se reduzia a uma tarola e a um microfone a mover-se, produzindo ruído para acompanhar a voz. O som soava imenso, ocupando todos os cantos do espaço e com tão pouco, conseguiram criar algo tão grandioso. A secção de manhã do Extremo terminou por aqui – os concertos só regressaram ao final da tarde, pelas 18 horas.

O sol deita-se na montanha

Quando pensei que já tinha visto todos os cenários possíveis do festival, eis que a próxima paragem me deixou novamente rendido: a igreja de Santa Maria Madalena. Imponente por fora e delicada por dentro, revelava-se como mais um espaço perfeito para prolongar o espanto que o Extremo vinha a provocar. Foi ali onde assisti, ou melhor, ouvi, o concerto de Luís Antero.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

À entrada, o artista sugeriu que todos colocássemos uma venda nos olhos, fornecida pela organização. Depois de um bom almoço e de muito sol, não havia hipótese. Mesmo numa cadeira desconfortável, não resisti. Assim que começou a música ambient, entrei num estado de limbo, a oscilar entre o sono e a vigília, sem perceber bem onde estava. A venda só intensificava essa sensação e saí derrotado sem qualquer hipótese de vencer o sono. Seria injusto da minha parte fazer grandes observações sobre o concerto, mas fiquei com a impressão de que lhe faltava substância. Digo isto porque, logo a seguir, no concerto de Clothilde, também de música ambient, não senti o mesmo e nesse, mesmo deitado no chão da igreja, de olhos fechados (por iniciativa própria), não adormeci. Foi um fim de tarde muito agradável.

O espaço exterior da igreja estava especialmente convidativo: árvores, mantas e almofadas espalhadas pela organização criavam um ambiente tão acolhedor que até custava entrar e deixar aquele cenário para trás. Deitado sobre uma almofada, enquanto o sol de verão se escondia atrás das árvores, deixei-me ficar em silêncio a pensar: se o festival tivesse terminado ali, já teria sido um dos melhores a que fui.

A noite ganha cor

A noite aproximava-se e com ela chegou o segundo, e último concerto, com formato mais “convencional”. Às 22h voltamos à entrada da capela de Santa Marta do Leão para o concerto do trio Oren Ambarchi, Johan Berthling e Andreas Werliin – mais conhecido como Ghosted. Equipados com bateria (a cargo de Andreas), baixo (nas mãos de Johan), guitarra e ainda eletrónica (Oren é o dono), rapidamente trouxeram outro ritmo ao festival experimental. Entregaram uma sonoridade experimental e minimalista, mas decididamente ritmada com grooves hipnóticos. Naquelas horas, o palco ganhou outra identidade, e as luzes que refletiam nas folhas traziam uma energia quase angelical, que acompanhou na perfeição esta atuação. O público estava satisfeito e as novas caras que chegaram – quem não foi capaz de acordar cedo -estavam bem fresquinhas para o resto da noite. Quem estava cansado de cedo erguer conseguiu ganhar um ímpeto extra tão necessário para o concerto que se avizinhava – o mais aguardado da noite e do festival inteiro.

William Basinski, figura mítica da música ambient (o seu The Disintegration Loops é seminal do género), tomou o palco. Confesso que não conhecia profundamente o seu trabalho, mas saí completamente conquistado. Mal apareceu em palco, com um casaco cravejado de brilhantes e ostentando um belo bigode, senti que estava na presença de alguém especial. Pediu ao público poeticamente que relaxasse, se sentasse sem medo de sujar-se e se preparasse para uma mudança de paradigma. Sentei-me e, mesmo depois de um dia cheio, consegui encontrar as energias para mais um momento de introspecção e viagem interior. Embora inicialmente fosse difícil o público ceder ao pedido do artista e ficar em silêncio, o ruído acabou por acalmar e a viagem conjunta da audiência teve início.

Fotografia: Inês Aleixo

A música de Basinski soa como uma ponte para a nostalgia, mas não aquela nostalgia melancólica ou pesada e sim uma espécie de conciliação com o tempo que passou. Cada loop parecia resgatar memórias esquecidas, permitindo senti-las sem dor, apenas com uma suavidade contemplativa. Foi uma experiência muito terapêutica e tê-la naquele local, sentado no chão de pedra no meio de tanta gente, só a tornou mais bonita.

Quando o concerto terminou, o silêncio quebrou-se imediatamente, pois afinal de contas era um sábado à noite e os aplausos rapidamente chegaram para abrir espaço para o convívio e para o live act de Miguel Mestre (aka M3STR) que veio trazer a energia que os recém-chegados tanto queriam. Ainda dei um passinho de dança, mas quando olhei para o relógio e percebi que faltava só uma hora para eu estar oficialmente de direta, achei que seria acertado descansar e regressar a casa.

As memórias que ficaram gravadas

O Extremo foi uma experiência sensorial completa. Cada concerto, cada intervenção artística, parecia estar profundamente enraizado nos espaços que o acolhia, desde o topo da Falperra até à serenidade das capelas, passando pelas clareiras da floresta. Houve um cuidado notável em equilibrar a presença humana com a preservação da natureza, em tornar os ambientes confortáveis e convidativos, sem jamais comprometer a autenticidade do local.

Fotografia: Inês Aleixo

A curadoria foi, sem dúvida, exímia: cada artista escolhido acrescentava uma camada única à narrativa do festival, proporcionando momentos de introspecção, energia e comunhão coletiva. Houve música que desafiou, que envolveu, que nos fez sentir tempo e espaço de formas inesperadas. Música que acalmou, que conduziu a experiências quase meditativas. Música que simplesmente nos levou a abanar a cabeça sem pensar.

O Extremo foi um convite à atenção plena e a viver o som da forma mais imersiva possível. Depois de tudo, só consigo pensar que quero repetir esta experiência e espero mesmo que haja mais edições. Sair de lá foi sentir o privilégio raro de viver um festival que não se repete todos os dias.

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Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

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