Sentir prazer até à última gota com Beatriz Pessoa

Pra·zer |ê| (latim placeo, -ere, agradar, aprazer) verbo intransitivo

  1. Sentimento agradável que alguma coisa faz nascer em nós.

São tempos turbulentos: vivemos numa constante correria contra o relógio que parece não ter fim. Sinto a nossa sociedade a moldar-se cada vez mais a um estilo de vida frenético que se propaga como uma doença contagiosa. Não sobra tempo para parar, refletir, sentir – nem mesmo para respirar. É-nos colocada uma pressão diária segundo a qual a vida é uma luta incessante para provarmos sistematicamente o nosso valor; por vezes, nem o fazemos por nós próprios, mas sim pelos outros. Parece que as nossas conquistas só se tornam reais se obtivermos a aprovação do próximo – não tem que (nem deve!) ser assim. Ao fim e ao cabo, deixamos as nossas vidas escapar-nos por entre os dedos, como se de areia se tratasse, porque não nos permitimos simplesmente contemplar e aproveitar cada momento.

Parece-me que o foco está, muitas vezes, na quantidade de coisas que fazemos, quando devia estar no prazer que sentimos independentemente dos dias correrem de forma voraz. Cada vez mais acho que estamos neste mundo para sentir – sentir o prazer, aquele que dá vida ao nosso corpo e alma. Estes dois últimos anos vividos à sombra da angústia e do medo são mais uma razão para desfrutarmos cada segundo que nos é concedido. Seguindo esta perspetiva hedónica, trago-vos, desta vez, um disco que me tem acompanhado muito nos últimos dias. Um disco que me tem feito perspectivar a vida como um livro aberto através de canções recheadas ora de melancolia ora de cor, que cruzam MPB, bossa nova, jazz e indie com uma nova sensibilidade pop. Refiro-me ao segundo longa-duração da cantora e compositora Beatriz Pessoa, lançado no mês passado, intitulado PRAZER PRAZER e editado pela Discos Submarinos. É composto por dez faixas originais, a maioria assinadas pela própria e por Marcelo Camelo (este também a cargo da produção e direção artística), e contando ainda com o contributo de Ana Cláudia, Margarida Campelo, Mallu Magalhães, Momo e Wado.

Beatriz Pessoa
Beatriz Pessoa. Fotografia: Maria Bicker

Beatriz Pessoa é um dos nomes mais frescos da atual cena pop portuguesa, e tem vindo a habituar-nos a obras de beleza sumptuosa. Depois de um semestre em Paris, começou a compor e, em 2016, editou o seu primeiro trabalho em formato curta-duração, Insects. Dois anos mais tarde lançou o EP II. Seduzida pelo aconchego que a música brasileira lhe proporciona, a cantora e compositora portuguesa atravessou o Oceano Atlântico para gravar o seu primeiro longa-duração, Primaveras, no Rio de Janeiro em 2019 – ainda que só tenha sido lançado em 2021, em plena pandemia. Para quem não está familiarizado, resta-me elucidar que se trata de um disco de estreia sólido. Contudo, é em março de 2023 que nos chega a sua maior afirmação artística até ao momento.

Mencione-se também, desde já, a intenção de gerar uma ponte musical com o Brasil enquanto símbolo de cumprimento através do título do disco: geralmente quando conhecemos alguém dizemos “prazer” e vice-versa – um termo que por vezes carrega consigo um peso negativo associado a um certo sentimento de culpa, e que Beatriz conseguiu desconstruir como poucos o fariam.

Entramos com a canção que carrega o nome do disco (“PRAZER PRAZER”). Com um refrão instantaneamente orelhudo, sumariza tudo o que se vai ouvir ao longo da obra. Beatriz canta sobre sentir prazer e sobre alcançarmos a felicidade com aquilo e com quem nos faz bem. Os arranjos bem animados surgem como um convite para dançar e tirar os pés do chão enquanto ecoa na nossa cabeça:

“Vai, dá-te mais
Sente mais, quem te quer
Quem te vê, dá-te mais
Sente mais, o prazer”

Segue-se “Passou Pequeno”, uma das mais belas canções assinadas por Beatriz e uma das mais relacionáveis. Qualquer recanto da natureza me faz sentir que posso respirar fundo e, portanto, é lá que tento sempre refugiar-me quando me sinto mais angustiada e perdida. Ir ver o mar é um hábito que trago comigo desde há muito tempo e, curiosamente, é isso mesmo que a artista nos sugere, soando q.b. a uma cantiga de embalar: “Despe das costas esse peso chato, passa/Vai ver o mar e vê como és pequeno”. De repente, tudo parece mais calmo: é uma autêntica cura para a ansiedade.

De seguida, ouve-se “Roda Gigante”. Cria-se, do início ao fim, um ambiente sonoro que é altamente contagiante e arrebatador, culminando numa energia simultaneamente poética e entusiástica. Nuances de bossa nova e salpicos de mar pontuam o tema seguinte, “Dona da Verdade”, carregando consigo o refresco da “brisa doce” de verão. Com a ginga de uma guitarra bem disposta, capaz de sarar feridas, Beatriz convida-nos a embarcar numa viagem mágica e apaixonante em busca pela liberdade de deixar fluir a vida e o desconhecido, alavancada pelo balanço do tempo: “Vem viver o que valer/Deixa o tempo se perder/Na vida nada é p’ra levar/É só viagem”, atenta-se no refrão da faixa. “Deixar fluir” no sentido de fazer tudo o que está ao nosso alcance para nos sentirmos bem e, só depois, permitir sermos levados pela corrente natural da vida, procurando o seu sentido – o que realmente nos realiza e nos traz conforto. É a vez de “Dente D’Ouro”, onde a artista surge meramente enquanto intérprete (escrita por Marcelo Camelo, Momo e Wado), tal como em “Valente” e “Valsa D’Água” (ambas escritas por Marcelo Camelo). Do primeiro ao último acorde, são todas canções que nos fazem levitar e sonhar todos os sonhos do mundo, e se há algum timbre capaz de amplificar esta sensação é, sem dúvida alguma, o doce timbre de Beatriz.

“Tranças”, uma das faixas mais contagiantes do disco, é uma canção dedicada às mulheres. Ouve-se “Solta do cabelo a trança” no sentido de soltar as amarras que nos são impostas – a nós, mulheres – desde sempre. Com uns arranjos ora delicados, ora fervorosos, a abrirem espaço para uma voz que tem tanto de tranquilizante como de sedutora, a artista vai forjando a sua sonoridade largamente imersiva. É com “Um Segundo” que nos aproximamos da reta final do álbum, marcada pela tentativa (bem sucedida) de Beatriz de espalhar magia e amor. Recheada de ritmos encantadores, ideal para ser escutada num ambiente caloroso e íntimo, esta é uma canção que nos faz atingir um estado profundo de conforto. Em “Eu Perdoo”, a faixa que encerra este longa-duração, são emanadas tonalidades calmas e contemplativas, conduzindo-nos a uma introspecção pessoal.

Desde a estética e as melodias até à escrita, Beatriz Pessoa aproveitou tudo o que funcionou na perfeição no seu LP de estreia e reinventou-se através de novos revestimentos de instrumentação e dinâmicas de composição materializadas ao longo da obra. Desta forma, acaba por traçar uma identidade sonora firme que, olhando para todo o seu percurso profissional e pessoal, faz todo o sentido. Como se isto não bastasse, a sua escrita em português soa ainda mais caprichada e poética (até parece ter incorporado o poeta e escritor que carrega no nome) comparativamente a quando escrevia em inglês.

Mergulhado numa estética sonora a trazer à tona ambiências coloridas em contraste com os sons soturnos das inseguranças que a vida adulta acarreta, PRAZER PRAZER é um disco imensamente eclético que mistura no mesmo caldeirão uma produção irrepreensível e uma conjugação de ritmos infalível, indo buscar influências a um espectro alargado de estilos sem soar nem por um segundo dissonante. O álbum que chegou para abrir portas à Primavera mostra uma Beatriz Pessoa a desconstruir-se e reinventar-se. Resultado: PRAZER PRAZER é um disco de uma beleza descomunal, extremamente necessário nestes dias em que o prazer é cada vez mais subvalorizado. É esperar que nos continue a presentear com música deste calibre nos próximos tempos.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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MPB, bossa nova, jazz, indie e pop com toque de cetim.

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