Obrigada, black midi, e até breve.

Lembram-se de onde estavam quando viram a primeira sessão na KEXP dos black midi? Parece que foi há imenso tempo, mas ainda “só” se passaram cinco anos. Eu tinha 20 anos e os black midi nem isso. Estava ainda na licenciatura de engenharia informática no Técnico e achava que o rock não estava morto, mas a precisar de ser agitado. Aquela sessão na KEXP era essa agitação, a onda a bater no barco. Os primeiros cinco segundos de “Near DT, MI” revelaram-no imediatamente.

Eu acredito que, como tantos outros, conheci os black midi através dessa gravação da KEXP na Islândia (fomos burros e não sabíamos que em 2018 tinham tocado no Mucho Flow, em Guimarães). Já tinha ouvido bandas como os Slint ou titãs do pós-hardcore como os At The Drive-In ou Drive Like Jehu, mas os black midi não soavam nada como as suas influências. Eram quatro putos britânicos escanzelados – Geordie Greep (voz e guitarra), Cameron Pincton (baixo e voz), Matt Kwasniewski-Kelvin (guitarra e voz) e Morgan Simpson (bateria) – a tocarem rock hipercinético, virtuoso, mutável, diferente. Nada soava como os black midi e os black midi não soavam particularmente a nada do passado. Soavam, sim, a futuro.

Em Londres, quando essa sessão da KEXP saiu, já os black midi tinham nome. Eram a principal banda a surgir num ecossistema triangular que ligava a BRIT School, a sala de espetáculos londrina Windmill e a editora independente Speedy Wunderground, de Dan Carey. Os black midi conheceram-se na BRIT School, escola de música financiada pelo governo britânico. Começaram a tocar ao vivo em Windmill, onde fizeram residência e aprimoraram o som que apresentariam na KEXP. Num dos muitos concertos que deram em Windmill, Dan Carey reparou na banda e convidou-os a gravarem um single – “bmbmbm” (mais tarde incluído na quarta compilação anual da Speedy Wunderground). Foi com “bmbmbm”, um devaneio funk desconstruído através de ruído, que nasceu a relação entre Dan Carey e os black midi que elevou o hype em torno do quarteto. Seria Carey quem produziria os próximos singles da banda e o álbum de estreia da banda, Schlagenheim (2019).

Quando a sessão da KEXP foi lançada, pouco ou nada se sabia sobre os black midi fora do circuito londrino onde operavam. Numa era onde a informação estava (e está) constantemente a um desbloquear de ecrã, era refrescante o quão misteriosos eram os black midi. Como mais tarde escreveu Jeremy D. Larson na Pitchfork, tudo o que se sabia sobre os black midi era que todos os seus membros “pareciam ter oito anos” e que o baterista “era uma lenda”. Não precisávamos de saber mais do que isso, mas queríamos. Dias antes da sessão na KEXP ter sido lançada, os black midi tinham lançado um novo single, “Speedway”. Era a demonstração de que os black midi funcionavam como um coletivo, uma força unida com o objetivo de repensar aquilo que poderia ser a música feita com guitarras. Em “Speedway”, Pincton cantava: “This new ground / And old gripes / Cup ties”. Estavam oficialmente apresentados.

Passei grande parte de 2019 à espera do álbum de estreia dos black midi. Era preciso saber: seria possível transpor aquela energia da sessão da KEXP para um álbum inteiro? Os singles lançados antes do disco pareciam antecipar que sim. “crow’s perch” introduziu uma sensibilidade eletrónica no caos sonoro da banda, enquanto “Talking Heads” soava como se a banda de David Byrne tivesse tomado banho num caldeirão de ácido com Frank Zappa. Ambas as canções só adicionavam à excitação em torno dos black midi, mas quando Schlagenheim foi lançado em junho de 2019 (mesmo antes do meu 21º aniversário) fiquei desapontado. Soava demasiado virtuoso, e a excitação da sessão da KEXP tinha-se diluído na tradução para disco. Parecia tudo, de alguma forma, demasiado pastiche daquilo que os black midi aparentemente significavam – a destruição da ideia do que podia ser música feita à base de guitarras. Quando os vi em Paredes de Coura dois meses mais tarde, escutei uma banda mais próxima daquilo que apresentaram na KEXP. Um caos descontrolado, uma banda mais próxima do free jazz do que de outra coisa, a arrebentar o rock pelas costuras.

Hoje, sinto que fui demasiado duro para com Schlagenheim. Gosto bastante do álbum, mas continuo a preferir o trabalho que os black midi desenvolveram a seguir (já lá vamos). Mas em 2019 tinha expectativas demasiado altas para os britânicos. Além disso, quando os black midi lançaram o seu álbum de estreia, melómanos como eu já andavam pela Internet fora a cuscar por outras bandas que soassem como black midi e – pior – tínhamos conseguido encontrá-las. O virtuosismo dos black midi já não era o único prato servido à mesa.

Foi entre 2018 e 2019 que muitas bandas britânicas explodiram: os IDLES, os Shame, os Dry Cleaning, os Courting, os Sleaford Mods. Muitas pessoas estavam a tentar entender o que estava a acontecer no Reino Unido e falou-se muito na Internet de um movimento que, na altura, foi apelidado de crank wave (bandas cujo vocalista cantava “como se estivesse a ter um ataque psicótico”, definiu a NME em 2019) ou “pós-brexit punk” (nome auto explicativo). 

Contudo, os black midi e os seus pares experimentais de Windmill, particularmente os Black Country, New Road (saudades de ouvir “Sunglasses” pela primeira vez), Squid ou Caroline, não soavam como as outras bandas que estavam a ser colocadas na mesma caixinha que eles. Soavam a bandas que tinham crescido na era da Internet, com milhares de artistas e influências obscuras à distância de um número mínimo de cliques. Eram devotos dos Slint, de Ornette Coleman, dos Battles (com quem os black midi gravaram um Boiler Room) duns Cardiacs. Não tinham medo de serem irónicos (os black midi têm uma diss track ao Ed Sheeran que é tão terminalmente online que doi) ou de gostarem de coisas comerciais. Os black midi, por exemplo, têm uma versão de “Love Story” de Taylor Swift e declaravam-se fãs confessos de ZZ Top ou AC/DC – coisas não muito fixes para alguns dos pretensiosos devotos dos britânicos. Os Black Country, New Road tocavam ABBA ou Billie Eilish nos seus concertos e tinham uma música chamada “Kendall Jenner”. Que isto eram bandas de rock constituídas por zoomers, não havia dúvida.

Desde aí, todavia, todas estas bandas acabaram por se distanciar muito do som de pós-punk experimental que as colocou no mapa. No caso dos black midi, bastante mudou entre o primeiro e o seu segundo álbum, Cavalcade (2021). Carey não regressou para produzir, Matt Kwasniewski-Kelvin deixou de tocar com os colegas devido a problemas de saúde mental e, por causa disso, os black midi transformaram-se de um quarteto num trio… só que não exatamente. 

Quando a banda se apresentou para tocar novamente numa sessão da KEXP em abril de 2021, fê-lo em formato big band, com sopros e teclados a acompanhar (a versão de “Hogwash and Balderdash” dessa sessão é incrível). A voz de Geordie Greep, tão característica de Schlagenheim, soava agora mais profunda e grave, mas não com menos sotaque de classe. As canções contavam agora histórias surrealistas, adornadas por instrumentais que soavam tão controlados quanto caóticos. Os black midi já não eram uma (excelente) banda de noise rock – a fantástica “Sweater” ditou esse fim. Eram, sim, uma banda de rock progressivo. Já não eram a melhor banda de tributo aos Slint, mas a melhor banda de tributo aos King Crimson. E que banda eram.

Cavalcade é o meu disco favorito dos black midi porque condensa a energia daquela primeira sessão na KEXP em canções que funcionam. Em cada faixa, acontecem mil e uma coisas, mas todas essas coisas servem algum propósito. Há personagens, há histórias a serem contadas e a canção pinta os cenários destas batalhas, cidades, aldeias. A bateria de Morgan Simpson, tão crucial para o som dos black midi, está também mais presente comparativamente com as cantigas de Schlagenheim. Pode-se argumentar que os black midi perderam alguma da sua imprevisibilidade com a evolução da banda, mas sempre discordei desse argumento. Basta ouvir uma canção como “Slow” para entender que os black midi tinham era passado a saber utilizar a sua imprevisibilidade e virtuosismo como adorno extra a canções com pés e cabeça. Essa passou a ser a arma de eleição da banda. “Dethroned” é outro exemplo disso. O trabalho de guitarra nessa faixa ecoa o ruído de Schlagenheim, mas não existe nenhuma distração em seu redor. “Ascending Forth” é o culminar disso tudo – é por isso que é a melhor canção dos black midi.

Hellfire (2022), por outro lado, falha ligeiramente nesse aspeto. Não tem tanto espaço para respirar como o disco do qual é “irmão”. Prossegue várias das narrativas apresentadas em Cavalcade e mostra uns black midi mais aventureiros a nível sonoro e lírico. As histórias ficam mais complexas e as canções, por consequência, também. Nem sempre isso é bom, contudo – olá “The Race Is About To Begin”.

Em Hellfire, Greep adota em definitivo uma performance vocal cada vez mais próxima dos cantores de swing (o quanto Greep gosta de Frank Sinatra torna-se óbvio neste álbum). A própria forma de cantar de Greep é algo que levou a que as canções da banda tivessem cada vez mais estrutura, com os instrumentais a servirem aquilo que ele canta e não tanto a sua voz a servir como mais uma arma no improviso jazzístico que definiu os primeiros tempos da banda. “Welcome To Hell”, malha de rock pesadíssimo e hiperativa, é um grande exemplo disso, mas é “27 Questions” que define Hellfire. A última faixa do álbum é o culminar desta fase dos black midi pela narrativa e pela forma como evolui entre momentos caóticos e controlados, entre prog rock desorientante e jazz carregado de sentimento. No final, os black midi eram assim. Tão capazes de nos arrebatar com malhas potentíssimas como nos emocionar com a sua ternura (“Still”, a carta definitiva de Pincton enquanto vocalista e autor).

Não estaria a escrever este texto se, em agosto, os black midi não tivessem anunciado que iriam entrar em hiato durante tempo indeterminado, confirmando um rumor que já circulava no círculo de fãs há algum tempo. E é curioso; a razão pela qual os black midi acabaram por confirmar o rumor – uma mini-briga online entre Greep e Pincton – é tão Gen-Z que me leva a indicar: os black midi só podiam acabar assim porque nasceram também assim. São uma banda hipermoderna. Se não fosse a Internet, os black midi não existiriam, e a sua música provavelmente só seria descoberta anos mais tarde. Seriam uma banda de culto, a banda favorita da tua banda favorita. Com a Internet, os black midi tornaram-se uma referência, a banda mais relevante de uma cena musical que, neste momento, já parece mais distante que próxima. 

O “fim” dos black midi marca, de certa forma, o fim do sonho utópico ligado à efervescência de Windmill do final da década passada. Hoje, o ecossistema britânico é muito mais difícil de furar e de navegar. Há menos sítios para tocar e, por causa do Brexit e do aumento de custos associados à vida de ser músico, é muito mais complicado uma banda britânica fazer uma digressão que anteriormente. Isso é uma tristeza – mas são outros quinhentos.

O que não é uma tristeza, porém, é o futuro dos black midi. Tenho sérias dúvidas que isto seja o fim definitivo dos três enquanto banda, mas a pausa irá fazer-lhes bem. Os Linda Martini bem dizem que estar numa banda é “como estar numa relação”. Há altos e baixos e há momentos em que é preciso espaço para descobrir e explorar coisas novas.

No caso dos black midi, esta pausa na sua história permite aos seus membros irem explorar novos caminhos artísticos. Pincton vai gravar um disco a solo, Greep já anunciou um disco a solo a sair no último trimestre deste ano cujo magnífico primeiro single, “Holy Holy”, procede a mesma linha de continuidade dos dois últimos álbuns de black midi. Morgan Simpson, por outro lado, já andava a emprestar os seus dotes a outros artistas ainda antes do final dos black midi (Loyle Carner, Injury Reserve, Sampha) e a possibilidade de o escutarmos em mais projetos, como é o caso do próximo disco de Nala Sinephro, deve deixar-nos com água na boca. A mim, pelo menos, deixa. 

Só podemos, eu e vocês, agradecer por termos existido ao mesmo tempo que os black midi. Por agora, dizemos: au revoir. Porém, nesta despedida agridoce, não deixamos de soltar um beijo final e dizer baixinho para nós: até breve.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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