10 anos de …Like Clockwork (ou a história da minha relação com o meu disco favorito)

Vou ser direto: …Like Clockwork é o meu disco favorito de sempre. É o álbum que moldou muitos dos meus gostos musicais e moldou-me como pessoa. Se não fosse …Like Clockwork, não estaria aqui a escrever-vos. A minha vida teria sido diferente. Eu seria diferente. Tenho plena noção que isto é 100% clichê, mas precisava de o reforçar.

A primeira vez que tentei escrever este texto saiu bodega. Escrevi-o durante um ataque de ansiedade provocado pelo trabalho (abolir para quando, mesmo?) e rodava o vinil de …Like Clockwork no fundo. Foi o refúgio que encontrei para o momento. Do nada, tinha escrito quase 800 palavras sobre esse instante. Apaguei tudo. Não podia ser assim que escrevia sobre …Like Clockwork, cujo décimo aniversário foi celebrado no último sábado (3).

Algures aí numa edição perdida da Revista SOUND, já escrevi sobre o porquê dos Queens of The Stone Age, o projeto/banda liderado por Josh Homme, serem a banda da minha vida. Não sei se o texto envelheceu bem – tenho um enorme problema em reler coisas que escrevi –, mas o sentimento está lá. Quick recap: quando era puto descobri, na banda sonora do videojogo Gran Turismo 4, muitas das bandas que acabariam por formar muito do meu gosto musical. Franz Ferdinand, Jet (credo), The Hives, Jimmy Eat World, Kasabian, Fischerspooner… E claro, os QOTSA, com a faixa “Go With The Flow”, que rapidamente me agarrou pelo seu refrão orelhudo e ritmos acelerados que pareciam insurgir-se do inferno. Era dançável, sensual e barulhento. O meu jovem cérebro ficou viciado. Corria o final da década de 2000.

A partir daí, a música dos QOTSA tornou-se uma fiel amiga. Em particular, gostava bastante de Songs for The Deaf (escolha básica, eu sei, mas é um clássico; lançado em 2002) e Rated R (2000), e ouvia os discos no meu velhinho Alcatel com afinco. As canções transportavam-me para o deserto da Califórnia, libertavam-me do aborrecimento da minha vida. Colocavam-me a levar com o som de amplificadores gigantes no meio da areia enquanto caminhava em direção a Joshua Tree e ao Rancho De La Luna. O imaginário era agradável à vista. Ainda hoje sonho visitar esses locais emblemáticos (*aquele* episódio de No Reservations do Anthony Bourdain por lá só cimentou ainda mais a lenda do sítio na minha cabeça).

Em 2013, os QOTSA já não lançavam música nova fazia sete anos. Existia alguma expectativa para ver o que grupo formado por Homme, Troy van Leeuwen, Michael Shuman (sonhava ter o cabelo dele), Dean Fertita e Jon Theodore – que substituía Joey Castillo na bateria – iria revelar após terem anunciado um novo disco em meados de 2012.

Muita dessa expectativa vinha em consequência do contraste entre a receção aos primeiros quatro discos da banda – a culminar no excelente Lullabies to Paralyze (2005) – e aquele que era o seu mais recente trabalho discográfico à altura, Era Vulgaris (2007). Na minha exploração inicial da discografia dos QOTSA, Era Vulgaris soava enigmático, como um quebra-cabeça. Hoje em dia é menos, mas não deixa de ser. É um disco caótico, hiper ruidoso, marcado pela influência de música industrial e eletrónica, e que, apesar de algumas excelentes canções, peca por às vezes não soar exatamente como QOTSA. Acho ainda hoje o disco mais estranho da discografia da banda.

Os QOTSA sempre funcionaram melhor a escrever canções pop dançável escondidas por trás de rock demoníaco e sexy. Em Era Vulgaris, o demónio estava bem vivo – só que as canções nem sempre. Ainda é essa um bocadinho a minha opinião sobre esse disco. Nos seus picos, como “Misfit Love” ou “I’m A Designer”, é fenomenal; nos seus pontos mais baixos, como “River In The Road”, sente-se a falta de algum tempero extra. Mas é um bom disco. Até porque os QOTSA não têm maus discos – nem Villains (2017) o é, apesar de ser claramente o “pior”. Veremos o que o novo, In Times New Roman…, a sair no próximo dia 16 de junho, tem para oferecer.

Em 2013, lembro-me da excitação quando “My God Is The Sun” saiu cá para fora. Aquele riff. Depois da experimentação de Era Vulgaris, os QOTSA regressavam àquilo que faziam melhor: rock do demónio. Conturbado. Excitante. Os QOTSA não só estavam de volta como regressavam com uma das melhores canções da sua discografia. Sentia-se que algo de especial estava a ser cozinhado. As artworks de Boneface só ajudavam à excitação (os corvos do clipe de “I Appear Missing” foram durante anos o meu fundo de computador) e a curta-metragem animada que acompanha o disco era a cereja no topo do bolo. Isto era especial.

…Like Clockwork é o disco mais straight-forward dos Queens of the Stone Age. Talvez se possa argumentar que Queens of The Stone Age (1998) seja bastante direto, mas o som polido de …Like Clockwork torna-o num outro tipo de monstro. É um disco de rock sem grandes rodeios, que carrega em si uma enorme pujança emocional, muito inspirado pelos transtornos pessoais que Homme vivia na altura. Como o próprio disse numa entrevista em 2013: “Eu estava perdido e à procura de algo no meio da escuridão. E foi nessa escuridão que encontrei …Like Clockwork”.

Adoro o título …Like Clockwork. Não sei muito bem explicar a sensação que me provoca, mas é algo assim: o tempo é contado, mas infinito, e tudo acaba por voltar a um certo estado. Quando passamos grande tempo da nossa vida com o peso da tristeza nos ombros e a não gostarmos de nós próprios, causa mossa. Sabemos que, no momento em que podemos estar felizes, a seguir regressamos (sempre) ao estado de tristeza. O loop parecia infinito. O destino sempre óbvio.

Hoje já não sou tão assombrado por esses pensamentos negativos – apesar de garantir-vos que as minhas ansiedades se mantêm vivas –, mas em 2013, certamente o era. Tinha 15 anos – dêem-me um desconto pelo melodrama –, sentia-me imensamente triste, sem me identificar com nada à minha volta. A Internet era o meu refúgio principal e, de repente, no meio da escuridão, encontrava algo com que me identificava imenso: …Like Clockwork.

Pode-se dividir as canções de …Like Clockwork em duas categorias. De um lado, encontramos as canções rock, pujantes, que preenchem o lado mais eufórico do disco; do outro, as faixas mais lentas, as baladas, que é onde o disco realmente brilha. Não me entendam mal, as canções rock de …Like Clockwork são excelentes: “I Sat By The Ocean” é banda sonora para beber margaritas à beira-mar; “My God Is The Sun” é classic QOTSA, riffs para dar e vender (Dave Grohl + Josh Homme é *sempre* especial de se ouvir); “Smooth Sailing” é a banda sonora para uma noite destrutiva. E “If I Had a Tail”? É a “pior” canção de …Like Clockwork, estendendo-se claramente demais. Não há groove que salve. Vale pelos coros de Mark Lanegan (saudades, eterno), Nick Oliveri (de regresso à banda pela primeira vez desde que foi expulso em 2004) e Alex Turner.

Mas é verdade que o álbum ganha outra dimensão e dinâmica quando se afunda nos pianos de “The Vampire of Time and Memory”, na escuridão imensa de “Kalopsia” (a canção mais estranha do repertório dos QOTSA), no solo lindíssimo de “I Appear Missing” (a melhor canção dos QOTSA). Há ali qualquer coisa de especial a acontecer, e é um espelho quase perfeito do que se sente quando nos encontramos sem rumo e em alerta para todos os perigos à nossa volta. Caímos num estado de paranóia. Isto é logo aparente nos primeiros momentos do álbum, na pesadíssima “Keep Your Eyes Peeled”: “Don’t look, just keep your eyes peeled”. A partir daí, é por aí abaixo até à escuridão imensa. Só se pára no abismo. Mas depois do abismo… Luz. Esperança. Bela esperança. Somehow.

Porém, mesmo quando …Like Clockwork se apresenta no seu lado mais rock, existe sempre uma espécie de inquietação por trás. Escute-se “Fairweather Friends”, com as teclas de Elton John a darem uma camada de ansiedade à canção. Ou a turbulência de “Smooth Sailing”, cujos riffs parecem antecipar que algo de péssimo vai acontecer. És um badass a caminhar rua abaixo, mas atrás de ti vêm forquilhas na forma dos teus medos. Não é fácil. “Fear is the hand that pulls your strings”, canta suavemente Homme na antepenúltima canção do disco.

Muita desta inquietação provém da forma como Homme canta a sua poesia. E aqui quero dar ênfase a esta palavra: poesia. Nos trabalhos pré-…Like Clockwork, creio que a palavra “poesia” não pode ser aplicada às letras que Homme escreveu. Não estou a dizer que não existia nenhuma profundidade, mas uma faixa como “Feel Good Hit Of The Summer” não é propriamente Sophia de Mello Breyner. Em …Like Clockwork, há um step-up na escrita de Homme, e na forma como este transmite o que sente. Não é só sobre sexo, drogas e rock’n’roll – é sobre as consequências de tanto ano disso. Essas consequências continuam a fazer-se ouvir em Villains e no primeiro avanço de …In Time New Roman, “Emotion Sickness”. …Like Clockwork mudou os QOTSA. E mudou-me a mim.

Há canções com letra lindíssima em …Like Clockwork, como “Kalopsia” (“Far, far from shore / The land of nightmares/Gone forever more”) ou “The Vampire of Time and Memory” (“Ain’t no confusion here, it is as I feared / The illusion that you feel is real / To be vulnerable is needed most of all / If you intend to truly fall apart”). Mas é nas duas últimas faixas do disco onde tudo acontece. É onde todas as emoções acabam, efetivamente, por ser libertadas. Onde chegamos ao abismo e encontramos uma nova luz. Renascemos.

Podia escrever milhares de palavras sobre o impacto que “I Appear Missing” teve em mim quando a ouvi pela primeira vez na íntegra. Que ainda hoje tem. É uma faixa cuja única descrição possível é: catártica. Quando *aquele* solo começa… Não sei. É mesmo uma música perfeita. Pelo menos é assim que a vejo. O refrão, na minha opinião, é a estrofe mais bonita e poderosa que Homme já escreveu:

Shock me awake
Tear me apart
Pinned like a note in a hospital gown
Prison of sleep
Deepened now
A rabbit hole never to be found
Again

Em 2013, isto abalou o meu mundo. Foi como se “I Appear Missing” me tivesse rasgado as vestes até ao osso. Tripas e tudo. O que restava, excrementos e escórias, estavam prontos a ser devorados por abutres no meio do deserto. Na última faixa do disco, que lhe confere o título, “…Like Clockwork”, é isso que se sente na pele. É uma balada carregada de emoção que termina com um último suspiro: “One thing that is clear, it’s all downhill from here”. À nossa volta, escuridão total. Mas vemos uma luz ao fundo do túnel.

Estas duas últimas faixas de …Like Clockwork são ainda hoje canções que me arrepiam até à espinha. São um duplo murro no estômago que em nada perderam o seu poder sobre mim e são duas canções fantásticas. Quando tocadas logo a seguir à rebaldaria noturna de “Smooth Sailing” soam como a ressaca infinita após a destruição total. Faz sentido.

Ao longo da sua carreira, Homme sempre dominou o jogo de se encontrar no fio da navalha da destruição maciça. Da sua. Sempre admirei isso, de alguma forma. Durante muito tempo, também me senti assim. Ao mínimo clique, podia ir rumo ao abismo. Não sei como não fui. Se não fui, muito foi devido ao conforto encontrado em …Like Clockwork ao longo desta década. Digo sem problemas: este disco salvou-me.

Mas há algo que me frustra. Passei este artigo inteiro a bajular …Like Clockwork e a escrever sobre a minha relação com este disco e com a música dos Queens of the Stone Age. Mas como tudo na vida, as relações são mutáveis. Consigo ver que …Like Clockwork mudou-me para melhor, mas com o tempo, a minha relação com o disco alterou-se, especialmente após toda a história em torno do seu divórcio de Josh Homme e Brody Dalle (dos The Distillers) e consequente bagunçada (que parece ainda não ter terminado).

Homme não é novo nestas controvérsias. Ele próprio o cantou em “New Fang”, faixa dos Them Crooked Vultures, há uns quantos anos: “I think you’ve got me confused for a better man”. Há uns anos, pontapeou uma fotógrafa na cabeça, e os seus problemas com álcool e drogas ao longo do tempo estão bem documentados. É o clichê de rockstar idiota a vir ao de cima. O cânone do rock – particularmente o branco – está cheio destas merdas e destes merdas. Mas não tem de ser assim – obviamente.

Estas coisas fizeram-me reconsiderar o que sentia por …Like Clockwork. Comecei este artigo a dizer que o álbum era o meu favorito. Ainda é. Contudo, durante os dois últimos anos, mal consegui ouvir o disco. Só recentemente o voltei a escutar. Os ouvidos eram os mesmos, a sensação *quase* a mesma. O conforto continua lá, o ombro amigo também. Mas sei que algo, mesmo que mínimo dos mínimos, mudou. It’s not the same.

Se num disco como Songs for The Deaf ou Era Vulgaris conseguimos ouvir, de forma algo óbvia, o lado degenerado e idiota de Homme, o de sexo, drogas e rock’n’roll, em …Like Clockwork isso não se escuta. Pelo contrário; o disco é de uma enorme sensibilidade. No meio de toda aquela escuridão, vejo luz. Esperança. Um abraço. É isso que me faz regressar uma e outra vez para o meio deste universo. Mesmo que este tenha sido criado, muito provavelmente, por idiotas chapados. Enfim.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Rock demoníaco e sensível – mas a que custo?

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