Nunca precisamos tanto dos 800 Gondomar como agora

Em maio, escrevi na 41ª Revista Sound que os 800 Gondomar já tinham cumprido o “seu caminho”. Estava errado. Precisamos dos 800 Gondomar e esperamos que eles precisem de nós também.Os 800 Gondomar são uma banda de culto para os fãs de música independente portuguesa. Os seus concertos, antes do hiato que se iniciou em 2018 (dizem as histórias que o seu último concerto foi uma jarda de arromba na garagem de um dos membros) e durou até meados de 2023, têm fama de lendários. A sua música, punk irreverente e jovem, deixou impacto no universo alternativo português. Das bandas que brotaram do caldeirão de rock de garagem portuense de meados dos 2010, os 800 Gondomar são a com o maior estatuto. Quando se afastaram dos palcos e lançamentos, a tristeza foi imensa. Mais imenso foi o burburinho em torno do anúncio que Alô Farooq (guitarra), Frederico Ferreira (baixo e voz) e Rui Fonseca (bateria e voz) estavam de regresso às guitarradas em abril deste ano.

Em 2014, quando lançaram o mui-cru EP de estreia 800 Gondomar, o power-trio afirmou-se como uma das “revelações nacionais” desse ano, escrevia a Threshold Magazine na altura. Dois anos volvidos, e com o nome em crescente ascensão dentro do circuito independente, o curta-duração Circunvalação consolidou-os como uma das bandas mais excitantes do país. Ao vivo, a sua energia era igualada por poucos – a sua visita à Porta 253 ainda é lendária. Em estúdio, apesar de muita crueza, canções como “Cabeçudo” ou “Faz o Flip” tornaram-se hinos para um público que clamava por mais bandas como os 800. Bandas que, perante o seu aborrecido quotidiano, lhes apresentassem canções prontas a servirem de escape.

Contudo, foi com o seu longa-duração de estreia, Linhas de Baixo (2017) – editado, tal como os dois EPs anteriores, pela O Cão de Garagem, editora e coletivo portuense criada pelos Sunflowers –, que a banda deu o salto de qualidade prometido. Tomaram o cuidado de aprimorar fórmulas e temáticas, mas sem perder nenhuma da vitalidade e crueza, características essenciais da sua sonoridade. “Neste novo disco continuam a ceder, em algumas canções, ao garage-rock mais formulaico e óbvio, mas há um dardejar e uma carícia punk que apontam noutras direções.”, escreveu Mariana Duarte no Ípsilon na altura.

De Linhas de Baixo, brotaram canções como “Coração” – um dos grandes hinos do punk rock português –, “Cordoaria”, “Preguiça” (“És a minha gotinha de água/Sem ti perco o ar” nunca deixará de ser um verso lindo), “Cedofeita”. Canções eternas, portanto. Odes a calhambeques, subúrbios, putos aborrecidos divididos entre o Porto, Rio Tinto e Ovar a tocarem com a velocidade e energia sempre a alta rotação para libertarem todas as suas frustrações. Essa sempre foi a máxima por detrás da banda.

Descobri os 800 Gondomar com Linhas de Baixo. Não acompanhei diretamente a sua ascensão até ao Olimpo do rock português, mas segui de perto os meses que se sucederam ao lançamento do disco (curiosamente, apesar da minha obsessão com Linhas de Baixo, não assisti a nenhum concerto dos 800 durante esse período). Lembro-me de ver ao vivo na RTP Play o concerto que deram no NOS Alive de 2018 e de o rever várias vezes nos anos seguintes. Esse concerto, de certa forma, foi o pico para uma determinada era do circuito independente português. Uma era onde o Sabotage era casa de eleição para bandas emergentes, onde do Porto a Barcelos bandas e festivais se multiplicavam, onde o Barreiro Rocks era o destino de eleição a sul de Lisboa para qualquer fã de fuzz. Seis anos volvidos, o circuito independente está em sentido inverso. Há menos salas, tanto para tocar como para ensaiar, o espaço para artistas emergentes é cada vez menor, o capital necessário para começar a tocar e singrar é cada vez maior.

Talvez tenha sido pelo estado das coisas ser tal que o regresso dos 800 Gondomar aos palcos tenha sido um bálsamo tão grande para tanta gente. Os concertos na Grécia e na Macedónia do Norte (será que aconteceram mesmo?) e no Ano Malfeito, em Fafe, reavivaram as memórias de uma banda cuja influência já se escuta no circuito independente de 2023. MÁQUINA., Meia/Fé, gatafunho, bcc (da qual Rui faz também parte) são todos projetos que pegam algo emprestado aos 800. E a história podia ter ficado por aí, mas , ainda bem que não ficou. Os 800 Gondomar regressaram este novembro para três concertos – em Lisboa (Galeria Zé dos Bois), em Évora (Black Bass) e Porto (Auditório CCOP) – e até lançaram uma nova malha, “Ax Gti” (sim, é sobre haxixe), que só podia ser feita por eles. Quatro acordes a ecoar Peste & Sida, refrão pronto a ser cantado. Se agora vão desaparecer outra vez? Só o tempo dirá.

Fui à ZdB na passada noite de 11 de novembro para assistir a um concerto de 800 Gondomar pela primeira vez. Durante essa hora de barulho e suor, pensei em momentos aos quais tinha associado a música dos 800. Escutei muito Linhas de Baixo durante um bom período de 2017 e 2018, quando senti a minha vida desmoronar à minha volta pela n-ésima vez. Imaginei-me várias vezes num moshpit de “Coração”, a libertar todas as mágoas e frustrações. Agora, quando estive nesse mesmo moshpit, não senti nada disso. Não existiu mágoa nem frustração. Apenas carinho. Devoção para com a música de uma banda que significa tanto para mim e para outros tantos. São estas as noites em que nos sentimos vivos. Poeirentas, suadas, calorosas. Como as Linhas de Baixo que os 800 Gondomar ainda hoje nos fazem percorrer.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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De regresso, mas sempre presentes no coração.

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