O Áudio no Visual Pt.2 (Aftersun)

No mês passado, escrevi sobre memórias e como essas são o fundamento daquilo que somos. Com uma edição playbackiana pelo meio, regresso a esse tema. Mas ao invés de falar sobre as minhas últimas experiências musicais – que por acaso até foram algumas, pois acabo de chegar do Super Bock Super Rock -, escrevo, como prometido, sobre o filme Aftersun, de Charlotte Wells, para completar este díptico “O Áudio no Visual”.

Antes de embarcarmos na viagem audiovisual que é a estreia de Wells na realização, permitam-me justificar – ou contextualizar –  a existência deste duplo-artigo, já que não o fiz na primeira parte. Na área “Quem Somos” da Playback, pode-se ler “onde há vida, há música, e onde há música, há apaixonados com urgência em comunicar o que os sons de todos os espectros e feitios lhes fazem sentir”. Esse é o mote para tudo o que para aqui teclamos. Daí, praticamente duas sextas por mês, surge o resultado dessa urgência em comunicar aquilo pelo qual nos apaixonamos. Eu, coitado, tal como o Marco Paulo, tenho dois amores: o cinema e a música. Ambos coabitam no meu coração e discutem para ver em qual devo depositar mais tempo e atenção. Claro está que escrever sobre estas artes é das coisas que mais me reconforta o âmago. Sempre que tiver pretextos para juntar as duas, assim o farei.

A ideia de escrever sobre a banda sonora de Aftersun deve ter surgido após uma das três visualizações que fiz do filme. Entretanto, foram-se priorizando outros artigos e este foi sendo arquivado para um dia (talvez) escrever. Até que, umas semanas a esta parte, não me surgia nada que quisesse comunicar sobre música, mas tinha uma incessante vontade de digerir e proclamar o meu apreço pela série de televisão The Bear. Como, de momento, não tenho nenhuma plataforma para escrever sobre cinema e televisão, e como a série tem uma bela banda sonora, fez-se luz. Na altura, quis a minha cachimónia delinear um diálogo entre a série da FX com Aftersun, porque ambas são retratos distintos de humanidade, conflitos interiores e traumas, para além de que têm a música como um dos impulsionadores da carga emotiva das narrativas. Em The Bear, acontece via needle drops; em Aftersun, apesar de também o fazer, o destaque vai para a banda sonora de Oliver Coates, que é por si só, um excelente álbum de ambient. Falemos agora então da forma como Aftersun usa o áudio no visual.

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Percorrer memórias é navegar no nosso próprio ser. A nostalgia tem em si inerente um sabor agridoce. É doloroso pensar no que já se viveu por saber que já não se volta lá mais, mas aquece-nos (estranhamente) saber que já vivemos tanta coisa. “Ignorance is bliss” e no passado fomos sempre mais ignorantes do que somos hoje.

Há algo no verão que me deixa nostálgico. Pensar como em tempos olhava para esta altura do ano como sendo sinónimo de liberdade. Aquelas sempre insuficientes férias de verão. Os dias passados na praia, primeiro somente com família, e depois até ir com compinchas e por lá crescer, descobrir e enfim, partir na aventura de se ser jovem. Irrequieto, saltimbanco, jovial e inocente. Pairar em pensamentos nostálgicos é frustrante, pois há sempre uma tristeza que se imiscui pelo meio dessa saudade idílica.

Frame de Aftersun
Frame de Aftersun

Aceder às memórias está à distância de um mero “parar para pensar”. Mas há um costume de tirar fotos e vídeos, pela consciência que mais tarde ou mais cedo, vamos querer, por momentos, transportar-nos mentalmente para os períodos que vivemos. Hoje em dia (era digital) quase que se banalizou – e fragilizou a conservação – o conceito de gravar e tirar fotos, mas não deixará de haver um elo que as liga à perpetuação de memórias. Desfolhar um álbum de memórias ou ver vídeos de cassetes antigas é um prazer doloroso. É por esses mesmos prazeres desprazerosos que Charlotte Wells nada em Aftersun.

Acompanhamos o mergulho de Sophie na nostalgia de infância de umas férias que passou com o seu pai na Turquia. Depressa percebemos que este regresso tem um motivo tenebroso, um trauma ou um moto de decifração daquilo que em jovem, não se traduziu ou compreendeu. Pelas cassetes e vivências da rapariga – interpretada em criança pela estreante e mui-talentosa Frankie Corio e em adulta, menos presente, por Celia Rowlson-Hall – percorre-se a difusão de amor conturbado entre pai e filha, mas especialmente em dissecar a sombra complexa que se sobrepunha sob Calum – o jovem pai de Sophie, interpretado de forma sublime por Paul Mescal.

O que para aqui teclo pretende focar-se na música e, por isso, vou tentar ser breve em falar cinematograficamente sobre a obra (e sim, é preciso um travão, quiçá uma epopeia fosse escrita não quisesse eu focar-me nos sons da longa-metragem). Portanto, aqui fica: Aftersun é um milagre. Banhei esta frase a hipérbole, mas há muito por onde se pode justificar esse carimbo. Primeiro, é uma estreia, o que é incrédulo de pensar, pois trata-se dos trabalhos mais maduros e competentes dos últimos anos. Uma visão distinta, jovem e astuta, com um particular embevecimento de delicadeza e simplicidade. Podemos fascinar-nos com os pincéis impressionistas que pintam estas excursões pelo imaginário de Sophie, alimentadas pelos vídeos gravados sob aquele sol turco e com o azul aquático como pano de fundo. Ali se avistam os primeiros descobrimentos das fragilidades de Calum, para a filha.

O que Wells cria com Aftersun é além-cinema. Revelando-nos, constantemente, a importância do meio pelo qual as emoções se propagam – o cinema – a nostalgia é quase um estado de existência à parte onde, num presente que se interregna, transporta-nos psiquicamente para um local ao qual não temos acesso, mas onde por vezes nos abrigamos, ou regressamos para tentar encontrar respostas para as dúvidas que nos deixam despertos à noite. Atente-se as cenas da discoteca. Metafisicamente, o que transmitem, não é transcrevível. Só com o cinema se traduzem em significado através da narrativa emotiva e inocentemente plácida do filme e pelo transporte movido a luz estroboscópica e bem adornada de, espante-se, música.

Falamos de um fenómeno transcendente e por isso, para que a nossa aura seja devidamente elevada, precisamos de sons que nos levantem. Que nos rejubilem a alma. Pelo esplendor ínfimo da música, várias podem ser as opções. Tantos géneros e artistas que preenchem essas mesmas necessidades. Mas há um género que vigoriza consoante esse transporte, ou essa elevação de estado que proporciona ao ouvinte: ambient. Ouvir Tim Hecker, Nils Frahm, algum Burial, Ryuichi Sakamoto, Grouper, The Caretaker ou, claro, Brian Eno, é meio caminho andado para levitarmos para onde nos levarem com as suas (subtis) melodias. Ora o produtor, compositor e violinista Oliver Stone, que já brincara  com este tipo de sonoplastia em projetos como os levemente experimentais Remain Calm, que concebeu ao lado de Mica Levi, ou skins n slime, e ainda no mais brusco Shelley’s on Zenn-La, ou no versátil e virtuoso Upstepping, estes dois últimos de electrónica, aborda este universo veranil e nostálgico com a tenacidade necessária.

Coates é capaz de nos transportar para esse estado hipnótico, mesmo quando o visual já não está lá. Evidente que após a visualização, estas melodias requintadas ficam tatuadas com a emoção da película e vem-nos à cabeça a dor que se esconde entre aquela química tão tenra de pai e filha – numa sinergia arrepiante de Mescal e Corio – e o regressar às cassetes que perpetuaram aqueles (que se subentendem, últimos) momentos. Mas essa mesma emoção é enaltecida pelos violinos pujantes e a eletrónica imersiva numa plena simbiose que a nós se amarra. Oiça-se a harmonia que ao repetir-se ao longo da trama, quase funciona como theme, de “One Without”, com violinos chorosos que vêm surgindo como ondas de um mar a dar à costa. O mar que persiste em fazer-se ouvir, como na submarina “Ocean>Rave”, ou então a água, como é a subaquática “Sophie pool with guys”.

O teor meditativo (e terapêutico) do filme estende-se também na banda sonora, como na celeste “Tai Chi” ou na dualmente obscura e cintilante “Night”. Esta homogeneidade de violinos e sintetizadores só se refina com a detalhada textura que se lhe subjuga, fazendo alguns dos nomes supracitados como referências do género roerem-se de inveja. Exemplo disso é “DVCAM”, “Swimming Pool – Sky”, “Gilders Peace of Mind” ou “Limit”. Destaque ainda para a dissonância que se liberta em “Boat” ou para a imersão proporcionada pela abertura “Memory Opening”. É de facto um espetáculo harmónico, que emana tristeza, ao mesmo tempo que reconforta e jovializa, típica mixórdia de emoções que sentimos ao visualizar o passado na nossa mente. Talvez o expoente máximo e exemplo da catarse emocional que o filme provoca seja mesmo na cena final, com a fusão de “Last Dance”, vinda da banda sonora, e do needle drop de “Under Pressure” enquanto interpolamos entre a dita discoteca além-vida e a última noite de férias de Calum e Sophie, que ora dançam efusivamente, ora se abraçam. Aquando do clímax, ouve-se David Bowie e Freddie Mercury a cantarem em uníssono enquanto vemos flashes da face de Sophie, inocente em criança, desesperada em adulta, a tentar agarrar-se ao pai, que não quer ver perder.

Frame de Aftersun
Frame de Aftersun

O Áudio no Visual. Nome nada criativo que decidi dar a estes devaneios que se improvisaram a partir destes diálogos descabidos que surgiram neste agregado de faculdades (ou falta delas) que paira na minha cabeça. Mas aqui demonstro que o Visual também afeta o Áudio. Mais uma vez, é simbiótico. Nunca mais irei ouvir “Under Pressure” da mesma forma – que até parece ter sido escrita propositadamente para Aftersun. Também nunca me esquecerei do que doeu ver Frankie Corio (Sophie, portanto) a interpretar, sozinha, num karaoke, a canção “Losing My Religion” (mais uma referência aos R.E.M. nestes artigos), que, mais uma vez, também diz muito sobre o que vemos.

O que quis dizer com este texto? Não sei bem. Gosto muito de cinema. Gosto muito de música. Valorize-se as bandas sonoras, pois essas fazem do cinema uma arte mais bonita, mas por si só, também conseguem ser produtos igualmente enternecedores.

Nascido e criado em Faro, divide o seu coração entre as suas duas grandes paixões, o cinema e a música. Aspirante a cientista da comunicação, já passou pelo Espalha-Factos onde foi um dos autores do À Escuta. Conseguem apanhá-lo em festivais de música e em cineclubes!
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Banda sonora para navegar memórias.

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