A minha experiência de pós-emigrante diz-me que, além da língua, são três as coisas que unem portugueses de praticamente qualquer idade, região, ou contexto sócio-económico: a comida, a seleção nacional de futebol e a música pimba. Arrisco dizer que é a única linguagem musical partilhada por comunidades fugidas da guerra colonial e outras da era Troika ou até mais recentes.

Baseada no ritmo da chula do Minho, “Pimba, Pimba” (1995) de Emanuel foi a canção inaugural desse movimento de revivalismo da música popular portuguesa, que ganharia novo rótulo precisamente graças a si. No rescaldo deste êxito, muitos artistas que orbitavam as esferas da música ligeira e romântica começaram a acumular tempo de exposição televisiva e radiofónica, levando a sua música para dentro de casa de quase toda a gente. Dos ritmos pseudo-latinos de “O Burrito” (Fernando Correia Marques, 1995) ao proto-techno de “Chama o António” (Toy, 1996), passando pela balada “Sonhos de Menino” (Tony Carreira, 1997), a etiqueta PIMBA definia mais uma perceção de público do que propriamente um estilo musical – excetuando os sintetizadores infernais, não parece haver qualquer elemento sónico que una estas canções. Apesar da explosão desencadeada pelo sucesso inicial de “Pimba, Pimba”, o movimento não surgiu num vácuo. Pelo menos desde o início da década que uma corrente dançante e galhofeira contrastava com uma vaga de refrões extra sentimentais. No ano anterior, já Ágata lançara o primeiro grande hino feminino deste lote. “Perfume de Mulher” (1994) vendeu mais de 300 mil cópias, tornando-se uma das valsas mais conhecidas da música nacional.

Ágata tinha vinte anos de carreira quando alcançou a cobiçada platina. Graças a esse primeiro mega single, encabeçaria o posicionamento feminino do movimento pimba, ocupando quase sempre o lugar da mulher madura. Em 1995, Sou Mãe Solteira” dá voz a centenas (milhares?) de mulheres, descrevendo uma gravidez adolescente e o abandono por parte do seu companheiro aquando do anúncio de um filho conjunto a caminho, numa história de empoderamento pessoal – “Sou mãe solteira / mas não me sinto só / E não preciso que de mim tenham dó / tenho o meu filho não quero mais ninguém / mesmo solteira não deixo de ser mãe [ ] Não me arrependo / de ter feito o que fiz / fiquei sozinha / mas muito mais feliz”. No ano seguinte, assume o protagonismo no “We Are The World” português – “Mãe Querida” (1996), single homónimo de uma compilação da Espacial que juntava vários pesos-pesados do movimento (como Luís Filipe Reis, Graciano Saga ou um Tony Carreira ainda na viragem para o sucesso) e se mantém como refrão incontornável dessa época. Em “Comunhão de Bens” (1997), imprime mais versos na cultura popular, centrando-se no processo de divórcio e na separação de bens consequente, com foco na custódia do filho em comum – “Podes ficar com as jóias, o carro e a casa, Mas não fiques com ele”. Do mesmo álbum, Escrito no Céu, saiu ainda De Mulher para Mulher”, um dueto com Romana, em que ambas as personagens partilham as mágoas que o mesmo homem lhes causou embrulhando-as em traição e promessas vãs, numa demonstração rara (na música nacional) de sororidade feminina.

O relato da mulher traída é um dos temas centrais na construção da narrativa feminina através da música pimba. Em “Na minha cama com ela” (1999), Mónica Sintra recupera o testemunho na primeira pessoa inaugurado por Ágata, mas é na perspetiva da amante iludida que conquista o público, graças a “Afinal havia outra” (1998). Anos mais tarde, num programa dos Gato Fedorento, David Fonseca recriá-la-ia numa versão meio punk-rock e em inglês, demonstrando o poder da reinterpretação na receção de uma canção; em entrevista no 5 para a Meia-Noite, Mónica Sintra revelaria como ganhou novos fãs nesse momento.

Mesmo em canções mais mexidas, a perspectiva feminina ganha contornos particulares. “Só à Estalada” (Ruth Marlene, 1996) denuncia o desrespeito que alguns homens têm pelo consentimento. No single que lhe sucedeu, “A Moda do Pisca, Pisca” (1997), mantém a temática das técnicas de engate masculinas, apelidando-as de “artimanhas” que já não enganam as mulheres. Já Micaela, em “Desliga a Televisão” (1997), reclama pela falta de atenção que recebe do seu companheiro, “assim tão colado ao ecrã”. Esta falta de apreço ou dedicação também é denunciada por Mónica Sintra em “Há Quanto Tempo (Quando Dizes que me Amas)” (1999), que interroga “Pensa bem: há quanto tempo nem um beijo me dás?”.

É quase irónico escrever sobre uma grande narrativa feminina da música pimba, quando quase todas (senão todas!) as canções que referimos até agora foram escritas pelo omnipresente Ricardo Landum. Talvez seja precisamente essa escrita, vinda de um olhar masculino e absolutamente heteronormativo, que reduz tantas vezes a experiência e o sentimento femininos à sua relação com o homem e, nalguns casos, em termos problemáticos. Por exemplo, no seu single de estreia, “Já Não Sou Bebé” (1996), uma Romana de catorze anos afirma-se “mulher com fantasias”, interpelando o que é claramente um homem adulto. Já no eurodance de “Gu-gu, Da dá” (2000), Micaela problematiza a sua relação com um homem infantil, que se recusa a crescer e assumir um compromisso, mas toda a canção parece infantilizar a própria artista.

No entanto, seja pela interpretação que as várias artistas lhes deram, pelo relato na primeira pessoa de idiossincrasias decorrentes da performance de género, ou simplesmente pelos versos que acabaram no imaginário transgeracional, a expressão destes temas na voz feminina trouxeram alento e conforto a muitas mulheres pelo país (e mundo) fora. Importa não esquecer que, a par da música romântica, os segundos sentidos, a objetificação da mulher e as insinuações de cariz sexual (nesta altura, ainda quase exclusivamente proferidas por homens) prevaleciam no estilo, pelo que uma perspetiva feminina, ainda que enviesada pela letra masculina, assume um contrapeso importante neste equilíbrio. Daí que ainda hoje muitos destes versos ecoem pelas experiências de milhares de mulheres, numa lógica transversal de empoderamento e autodeterminação. Quando Romana cantou “Não és homem p’ra mim, eu mereço muito mais / Não és homem p’ra mim, eu mereço bem melhor / Não és homem p’ra mim, se não ouves os meus ais e só a ti tens amor“, verbalizou uma superação que valia em 1997 tanto quanto vale ainda hoje. Porque, afinal, a mulher da música pimba somos todas nós, reivindicando um discurso objetificante de forma quase acidental para o transformar em ferramenta de emancipação. 

Foto de destaque: Baú da Ágata

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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